Um interessante texto de RITA
CARREIRA, que aborda o tema do racismo nesses países ricos e
das grandes oportunidades, onde a cor da pele teve - e continua a ter, de certo
modo – importância na aceitação do dogma da igualdade, apesar dos Direitos
Humanos que uma Declaração Universal consagrou.
Por cá, julgo que o sistema de anonimato
das provas dos exames, em Portugal, é há muito tempo indicativo de que tal
segregação não existe, o que se nota também no desporto, em grupos musicais, no
cinema, prova de que a educação, sobretudo, é fundamental para o esbatimento
das diferenças. É certo que os países de “apartheid” foram contundentes nessas
discriminações, mas não impediram que a educação se praticasse superiormente
entre essas raças de pele mais escura. Nunca me esqueço do resultado dos exames
de Português e Francês do meu 2º ano do liceu, no Liceu Salazar. Os resultados
eram afixados, eu tive, respectivamente, 16,6 e 16,8 e reparei que foram as
segundas melhores notas da pauta, as primeiras foram superiores a 18 valores e
pertenciam a um africano, vim a saber que pessoa mais velha, que provavelmente
fizera os seus exames como aluno externo. Não sei o destino desse africano, mas
fixei para sempre esse caso, demonstrador de lisura classificativa que o
anonimato favorecia entre nós.
É claro que por cá, ultimamente, a
opinião sobre o racismo miserabilista português tem sido facilmente mastigado e
escarrado sobre a sociedade que os partidos mais conservadores representam,
opinião favorável, naturalmente a uma dada esquerda que se propõe governar. E
na questão do ingresso ao ensino superior, por quotas, refiro um artigo do
OBSERVADOR, de 13/7/2019 :
«Um
terço dos estudantes entra no ensino superior através de concursos especiais» (São seis os concursos especiais que garantiram o acesso ao ensino superior
a um terço do total dos estudantes que entraram em 2018. As quotas já existem e
garantem a milhares de alunos a entrada….) – e os comentários irónicos de revolta
contra a redução de critérios selectivos num ensino que se chama de superior:
De Ana Maia: Então se calhar o melhor é interditar o ensino
superior publico nacional a todos os que tenham algum mérito a estudar ou
trabalhar, podemos também excluir os brancos, heterossexuais, cristãos e
contribuintes portugueses (no geral aqueles que acreditam que para se ter um
curso superior é preciso trabalhar) e assim facilita-se a coisa e sairia sempre
mais barato a todos.
De Liberal Impenitente a Ana Maia: Após a inscrição pede-se a carta de curso, é
mais económico, sem dúvida! Mas talvez as raças mais débeis possam logo pedir a
carta de curso, assim evitam-se dificuldade na inscrição devidas ao
analfabetismo...
De Jose Silva, 14/07/2019: Com as actuais quotas e com as quotas pedidas pelo BE, em breve, os alunos
normais passarão a não ter condições para entrar na Universidade mesmo com
classificações elevadas. Terão de arranjar quotas também para esses. É ridículo
mas para aí caminhamos...
O pior que tem a sociedade americana
Vivemos mudanças profundas nos EUA. O
período actual será um dia visto como tendo sido tão transformativo como foram
os anos 50 e 60 do século passado.
RITA CARREIRA
PÚBLICO, 15 de Agosto de 2019
Tem-se discutido a questão da introdução
de quotas e de perguntas sobre etnia/raça como políticas de correcção de
racismo e xenofobia. Na peça de Rui Ramos intitulada "A Máquina de Inventar Racistas" estas medidas foram descritas como
uma das piores coisas que a sociedade americana tem, o que pode levar alguns a
pensar que a discriminação que existe nos EUA seja o resultado de tais medidas.
Penso haver desconhecimento sobre os EUA e, como é o país onde vivo há mais de
20 anos, gostaria de abordar alguns pontos.
A segregação racial nos EUA começou
com uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça em 1896, Plessy vs. Ferguson, em que se disse que a
existência de instalações separadas para brancos e negros não violava a
Constituição, desde que as instalações fossem iguais. Para compreender a dimensão do problema racial nos
EUA, basta lerem o poema Strange Fruit, publicado em 1937, ou ouvirem-no pela voz de Billie Holiday, naquela que foi considerada pela revista Time,
em 1999, a melhor canção do século. Deixo-vos o início:
"Southern trees bear strange fruit / Que estranha a fruta das
árvores do sul
Blood on the leaves and blood at the root / Sangue nas folhas e nas raízes
Black bodies swinging in the southern breeze / Corpos negros balouçam na brisa do sul
Strange fruit hanging from the poplar trees / Fruta estranha pendurada nos álamos”
Blood on the leaves and blood at the root / Sangue nas folhas e nas raízes
Black bodies swinging in the southern breeze / Corpos negros balouçam na brisa do sul
Strange fruit hanging from the poplar trees / Fruta estranha pendurada nos álamos”
Apesar de se iniciarem na década de
1950, as políticas americanas de não-discriminação activa inserem-se no que se
chama de “affirmative action”, uma expressão que surgiu com uma executive order
do Presidente Kennedy, em 1961, onde se instruía o governo federal a ter
negócios com fornecedores de bens e serviços que contratavam e davam condições
de trabalho a indivíduos sem levar em conta a raça, crença, cor de pele e país
de origem destes. Após o
assassinato de Kennedy, Johnson continuou
a avançar esta agenda, promovendo a passagem do Civil Rights Act de 1964,
e que foi reforçado com uma executive order de 1965 que proibia o
governo federal de discriminar pessoas com base em raça, sexo, crença,
religião, cor de pele e país de origem.
Vivemos mudanças profundas nos EUA. O período actual será um dia
visto como tendo sido tão transformativo como foram os anos 50 e 60 do século
passado. Há sinais de progresso, que vão além da eleição de Barack Obama. As
últimas eleições intercalares nos EUA tiveram a maior diversidade de candidatos
de sempre e tudo indica que as próximas eleições de 2020 irão ter uma
participação ainda mais alargada de minorias demográficas. Os candidatos a
Presidente do lado democrata também são bastante diversos do ponto de vista
étnico.
Apesar
de se discutir bastante sobre se ainda fazem sentido medidas de “affirmative
action”, como quotas,
o processo de recolha de dados sobre etnia/raça não é visto como problemático
porque é normal os americanos recolherem dados demográficos sobre a ascendência
dos indivíduos. Também não é uma vacina contra a discriminação, nem
permite observar o problema por inteiro. Foi só com o aparecimento dos
telemóveis com capacidade de captar vídeo que a sociedade americana se
apercebeu que os não-brancos estão sujeitos a um nível de violência policial
que não é comum com os brancos.
Os
EUA são um país onde as pessoas têm três raízes: ou descendem de americanos
nativos, ou de quem imigrou para os EUA voluntariamente, ou dos que foram
trazidos contra a sua vontade como escravos (note-se que, perante a lei
americana, a condição de escravo era passada da mãe para os filhos). Esta diferenciação é decisiva para o futuro de uma
criança. Perante
esta realidade, fazia sentido que o governo federal americano implementasse um
sistema de quotas no acesso a escolas e universidades, porque quem controla o
financiamento e a qualidade da educação são os governos dos estados e os
estados discriminavam com base na origem das pessoas. Para além disso, no
acesso à universidade nos EUA há uma componente discricionária, que não é
baseada em notas.
Portugal é um país onde ninguém chegou contra a sua vontade e o
critério de entrada na universidade é completamente objectivo. É um país que, na teoria, valoriza a transparência
acima da privacidade; os americanos valorizam mais a privacidade e as notas não
são públicas. A única forma de um aluno ser discriminado por via da sua
etnia/raça em Portugal é se os professores do ensino secundário lhe derem notas
abaixo do que merece, mas nesse caso há grande probabilidade de o aluno
compensar essas notas fracas com melhor desempenho nas provas nacionais. Já os
alunos que são favorecidos indevidamente pelos professores correm o risco de
ter pior nota nos exames nacionais. O sistema português não é completamente
desprovido de lógica ou virtude e tem a vantagem de ser entendido por todos.
Há
quem ache que os alunos não-brancos são discriminados se vierem de famílias e
escolas de parcos recursos, o que justificaria a introdução de quotas,
mas essa explicação não colhe porque o financiamento das escolas é decidido
pelo governo central. Se há escolas pobres, onde os alunos estão sujeitos a
situações de injustiça e de falta de acesso a recursos, a decisão de preservar um
sistema desse tipo é do Estado português, que as poderia dotar de melhores
meios, e não das universidades. E essa discriminação por parte do Estado é uma
violação da lei portuguesa e pode e deve ser corrigida pelo Estado.
Devemos
perguntar-nos que mensagem queremos dar aos jovens portugueses. Se temos a
convicção de que estão sujeitos a discriminação no secundário, será que a
nota de acesso é a melhor forma de corrigir o problema? Ou será que deixar os
alunos serem discriminados durante todo o ensino e depois favorecê-los na
entrada na universidade cria algum benefício para o alunos e para a sociedade?
E os alunos que, de tão discriminados, não chegam a candidatar-se à
universidade? Que mensagem temos para esses? Que Portugal acha que os danos que
sofreram não são dignos de compensação? Esses são os que potencialmente foram
mais prejudicados.
Em Portugal, um sistema de quotas não resolve a questão,
nem sequer oferece reparação às vítimas, e pode até ter o efeito perverso de
aumentar a discriminação dos que, mesmo com quotas, não chegam a entrar no
sistema universitário.
Rita Carreira é doutorada em Economia,
analista de commodities agrícolas e vive em
Memphis, Tennessee (EUA)
COMENTÁRIOS:
Jonas Almeida; Vivo
nos EUA há os mesmos 20 anos que Rita Carreira e dessa experiência retiro a exacta
mesma conclusão deste artigo: o sistema de cotas não obviaria a
descriminação em Portugal, talvez mesmo a acirre. Como a autora, fico com a
impressão de que a discussão do tema em Portugal é influenciada pelo racismo na
América onde essa solução foi congeminada como defesa do indivíduo e da
equidade perante regiões e estados com historiais de discriminação localmente
institucionalizada.
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