sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Os tubarões



Nos meus tempos do liceu nunca se falou de tubarões nas nossas praias do Índico, nem mais tarde nos anos sessenta, altura dos meus três primeiros filhos, em que íamos à praia aos domingos de manhã, sem, contudo, fazermos aí piqueniques, como durante a infância, em que a praia era ladeada por longa estrada, que ia até à Costa do Sol, e onde os macacos, que saltavam nas árvores das sombras frescas, guinchando, vinham comer as nossas bananas e beber a água das torneiras, postas ali, junto do pavilhão da praia, que tinha um largo espaço de mar protegido de rede, a qual, pelos anos setenta, um tubarão rasgou, vitimando um nadador, além de um ou outro caso, em mar livre, os tubarões vindo, com as mudanças climáticas, favorecidas pelas mudanças políticas, talvez, embora não tivéssemos dado conta. Costumávamos ir por vezes à praia, nesses anos setenta, com os dois filhos mais novos, os mais velhos preferindo ficar na rua, com os seus amigos e as suas bicicletas, com que percorreram os espaços da sua adolescência livre, apesar dos ventos de rebelião lá pelo norte, que as tropas portuguesas da metrópole e da “colónia”, termo já desusado então, defendiam. Mas de facto, a praia da Polana não era fina nem branca, como a do Bilene e a do Xai Xai, mas eram um encanto as suas águas mornas, e, na maré baixa, os extensos areais que se formavam, e onde se jogava a bola ou o voleibol. Sim, também ia à piscina do Desportivo, nos anos cinquenta, onde havia uma prancha de três, cinco e dez metros, e onde cometi a proeza de me lançar da de três, mas apenas duas ou três vezes na minha vida, o fiz, satisfeita a curiosidade das sensações do feito, para admirar todos os jovens que o faziam e fazem com autêntica perícia, que admiro hoje, do sofá da minha comodidade visual.
Boas informações nos traz mais este capítulo das evocações de SF, deixando a pergunta no ar a respeito dos pretos do nosso racismo, em maior quantidade, é bem de ver, e menos educação, naturalmente, dadas as discrepâncias sociais que na Metrópole segregavam igualmente o povo não alfabetizado, nessas épocas de menos cultura política. Mas eu não esqueço o Dr. Torres – da Académica – que assistiu ao nascimento de um dos meus filhos mais novos, nem os colegas docentes que tive, que a sua elevação social permitiu que estudassem, nem todos aqueles alunos bem comportados, que começaram a frequentar as aulas nocturnas, quando as políticas enveredaram, embora tarde, pela necessidade de literacia construtora de cidadãos mais autênticos. Não esqueço as lágrimas da minha prima Celeste, a evocar os seus criados na Beira, um dos quais lhe pedia que o trouxessem. Não esqueço o meu Finias, sério e estudioso, que tive que levar no meu carro quase à força, para fazer o seu exame da 4ª classe, que ele, impecável nos seus ditados sem erros e nos problemas de matemática, entendia que não devia fazer, por não estar bem preparado em História e Geografia, e afinal passou brilhantemente no seu exame. Não, não esqueço o meu Salvador nem a minha Marta, que tanto medo tinha da tal descolonização, porque o marido era polícia, talvez vítima futura da sanha dos seus conterrâneos, porque pertenceu aos quadros portugueses Não esqueço o Armando da minha infância, de quem guardo uma foto que ele quis que os meus pais me enviassem quando estudei por cá. Gente de outra cor que se ia erguendo do seu chão, como por cá foi acontecendo com a gente da mesma cor, e que respeitávamos ou não, como acontece em toda a parte do mundo. Mas… cala-te boca, que o racismo é que colhe hoje em dia, porque melhor calha às eficiências de quem quer mandar. E tubarões há muitos... como os chapéus.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 01.08.19
Muito antes de alguma vez me passar pela cabeça que um dia conheceria Moçambique, já sabia que em Lourenço Marques quase ninguém ia à praia por causa do matope (lodo) e porque, quando este acabava, começava o perigo do tubarão. A solução, eram as piscinas. Excepção às soluções familiares, a norma era a das colectivas nos muitos clubes que foram sendo constituídos ao longo dos tempos. Assim, rapidamente, lembro-me dos maiores como, por exemplo, o «Clube Ferroviário», o dos «Velhos Colonos», do «Clube Naval», do «Grémio», do dos «Antigos Estudantes de Coimbra», do «Clube Militar». E de mais não me lembro. Submisso, aceito puxões de orelhas por algum esquecimento imperdoável. Numa dimensão muito mais modesta, o «meu» «Centro Hípico de Lourenço Marques» que então não tinha piscina (o actual «Centro Hípico de Maputo» tem piscina) mas sim picadeiro coberto. Claro está que a génese destes Clubes era a da estruturação da sociedade civil, não a da prática da natação em que as piscinas fossem parte essencial. As piscinas foram acrescentos que acabaram por ser motivo de agregação social e, desse modo, ajudaram à estruturação da sociedade civil. O mesmo se diga de outras actividades clubísticas tais como o hóquei em patins cuja equipa do Ferroviário chegou a ser campeã mundial da modalidade.
Quem não se integrasse num Clube, tinha sempre a «vala comum» que era a esplanada do Polana, essa passerelle du tout Paris. No que me disse respeito, o Clube Militar e o Centro Hípico foram muito importantes para o meu enquadramento social à chegada a Lourenço Marques.
Mas, não nos enganemos, a «vida de clube» também lá mais não era do que uma diletância. A vida séria era feita nas diversas actividades profissionais a que já me referi em crónica anterior: função publica em todas as suas vertentes desde o professorado à medicina passando pela justiça, etc., profissões liberais de que destaco a advocacia e a arquitectura, actividades empresariais públicas e privadas e, claro está, todas as profissões ligadas à actividade bancária. O turismo crescia como cogumelos, a construção civil não tinha mãos a medir, as obras públicas estendiam-se por todo o território e as sedes em Lourenço Marques fervilhavam de actividade. Naqueles tempos, o crescimento era real e o mercado de trabalho estava sôfrego. Eu sabia que, mal concluísse o serviço militar, encontraria posto de trabalho. E assim foi. A vida sorria…
A política económica era quase mercantilista: - Queres isto ou aquilo? Fabrica-o porque não terás licença de importação. E, nas aflições, não seria «gato por lebre» mas talvez «tubarão por bacalhau».
Nós, economistas residentes em Lourenço Marques e redondezas, reuníamo-nos num almoço na primeira quarta feira de cada mês e essa mais uma forma de organização da sociedade civil. Não se tratava de criar uma Ordem profissional pois isso implicaria meter o Governo Geral e o de Lisboa no assunto, para além de que era mais fácil o liberalismo do que o corporativismo. E como seria encarada tal hipótese se nem na Metrópole existia uma Ordem dos Economistas? Não seria pôr o carro moçambicano à frente dos bois metropolitanos? Estávamos muito bem assim, não quisessem alguns (poucos) estabelecer regras muito rígidas.
Foi nestes almoços que conheci dois moçambicanos que já então davam nas vistas pela ilustração: Eneias Dias Comiche que veio a ser Vice-Primeiro Ministro num Governo de Joaquim Chissano; Mário da Graça Machungo que veio a ser Primeiro Ministro também nos tempos de Chissano. Exacto, Caro Leitor, ninguém queria saber se cada um de nós era branco, preto ou às riscas. Éramos economistas e esse era o critério único de admissão no grupo. Em cada almoço havia um orador que dizia umas coisas a que alguns prestavam atenção mas o mais importante eram as conversas informais entre nós, os que estávamos na «plateia». Desde professores universitários até principiantes na profissão, havia de tudo passando por gente muito conhecedora da realidade moçambicana.
Creio que os advogados tinham também alguns encontros deste género e que os médicos se reuniam mais para temas científicos. Quem me ler e souber melhor, faça o favor de nos ensinar.
Pois é isso mesmo: uma sociedade aberta, liberal e em grande progresso.
- E os pretos? – perguntará o Leitor.
- De que cor, Caro Leitor? – pergunto eu.
Amanhã há mais.
Henrique Salles da Fonseca
Junho de 2019

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