Uma leitura desopilante, esta de AG, mas não libertadora, naturalmente. Os comentadores
justificam. A maioria – não silenciosa - ajavardando, como lhe compete. Por cá,
pelo menos. “Cá por aqui é honra”
(citação já mais vezes utilizada, extraída de “Lenda de S. Frei Gil” de Eça
de Queirós.
O
poder, o poder absoluto e o poder socialista /premium
PÚBLICO, 3/8/2019
Não deveria ser necessário notar que o
assunto não é tanto do domínio da lei quanto do da decência. E se mudar a lei é
simples, abandonar a indecência congénita é tarefa de elevada complexidade.
Não
gosto de usar citações. Em primeiro lugar, porque atrapalham a cadência do
texto e, de brinde, conferem-lhe um mofo escusado. Em segundo lugar, porque
pretendem demonstrar uma erudição que, dado que qualquer pateta consegue catar
frases na internet, não deslumbra ninguém. Em terceiro lugar, porque é uma maneira fácil de
uma pessoa trocar a origem da frase, espalhar-se ao comprido e exibir uma
ignorância de alto calibre. Há dias, uma “jornalista” que escreve num jornal
extinto atribuiu o “Proletários de todo o mundo, uni-vos…” a Lenine. Além de o
texto não ser bem assim (“todos os países” em vez de “todo o mundo”), o autor
também não é bem esse. A pobre “jornalista”, que conviveu anos com um famoso
trafulha sem suspeitar das trafulhices, tem lata, mas não tem jeito nem sorte.
Serve
o maçador intróito para justificar o recurso a uma citação na presente crónica
e, enfim, ajudá-la a arrancar: “O poder corrompe, o poder absoluto corrompe
absolutamente”. A autoria é evidentemente de Engels – estou a brincar: é de
Lord Acton. E a citação está incompleta: o poder corrompe, o poder absoluto
corrompe absolutamente e a rapaziada do PS já nasce corrompida. Na opinião de
Lord Acton, e na prática dos partidos comuns, a corrupção é uma decorrência. No
Partido Socialista parece ser critério de admissão, ou pelo menos de progressão
na carreira.
Na
semana anterior, a trapalhada com uns protectores “antifumo” que afinal não
protegiam vivalma levou à descoberta de que a empresa que os vendeu à Protecção
Civil pelo dobro ou o triplo do preço de mercado pertence ao marido de uma
autarca do PS. Isto inaugurou a caça aos contratos entre familiares de
socialistas e o Estado. E o que se apanhou constituiu um choque, um choque,
claro, para quem andava cego ou vive na Tasmânia. O filho de um secretário de Estado possui 20% de uma
firma de serração de madeira que serra para câmaras municipais e tal. Duas
empresas do pai do ministro das Infraestruturas (aquele Pedro que manda nas
“bases” e, consta, no dr. Costa) mantêm uma relação próspera com os dinheiros
públicos, não apurei em que ramo. O marido da ministra da Justiça, que é
advogado, emite pareceres, decerto vitais para a pátria, para diversos
ministérios. E empresas do pai, da mãe, do irmão e da própria ministra da
Cultura (juro, ou juram os noticiários) celebraram contratos com o Estado. Etc.
Acho que a busca seria abreviada se se invertesse o objectivo e se procurasse
apenas os socialistas que não embarcam nas negociatas. Ficaríamos com uma lista
pequenina, idêntica à das “Lendas Desportivas Judaicas” do filme “Aeroplano”
(nova citação, mas despretensiosa e logo aceitável). Ou até sem lista nenhuma.
Há
uma lei, dita das incompatibilidades, que prevê a demissão dos governantes
envolvidos em semelhantes arranjos.
Há ou havia. Ou é indiferente. Na quarta-feira, o ministro Santos Silva
considerou “absurdo” cair numa “interpretação literal da lei da 95” No
mesmo dia, publicou-se no Diário da República uma versão revista da lei,
talhada à medida para ilibar essa gente. Ou, nas palavras do dr. Santos
Silva, uma versão “clarificada”, com a aprovação de nove décimos dos
deputados.
Não deveria ser necessário notar que
o assunto não é tanto do domínio da lei quanto do da decência. E se mudar a lei é simples, abandonar a indecência
congénita é tarefa de elevada complexidade. Investem-se fortunas para tentar
encontrar a cura das mais terríveis doenças. Não se
arrisca um cêntimo para extirpar do sangue socialista a vocação para a trapaça,
das maiores pestes do nosso tempo.
Provavelmente, tem-se a noção de que seria dinheiro deitado fora. E então, de
trapaça em trapaça, chegamos a isto. Uma coisa é o regabofe, já instituído
há muito. Outra é o regabofe descarado, hoje em plena vigência. O dr. Costa e o
bando do dr. Costa fazem literalmente o que querem.
A rédea solta é impossível em
democracia? Não é impossível no tipo de regime que, como a noite, tem descido
sobre nós. Com a bênção de um presidente da República que não merece
comentários, temos no centro, obviamente não ideológico, o PS. À
extrema-esquerda, obviamente não demasiado distinta do PS, três “forças”
dispostas a servir onde não lhes dói para lucrar onde lhes convém. À direita do
PS, obviamente o vazio. O CDS, sob controlo remoto do dr. Portas, empenha-se em
“passar mensagens” que nem os seus dirigentes imaginam quais sejam.
Recentemente, a hipotética chefe daquilo apresentou-se com quatro penteados
para que o público do Instagram escolhesse um.
No
mundo dos adultos, restaria o PSD, se o PSD não tivesse sido tomado pela
vontade de transformar um partido de governo numa agremiação dócil que sonha,
provavelmente em vão, com as migalhas do banquete socialista. O drama das “listas”, afinal aprovadas quase por
unanimidade, foi um mero episódio da novela que terminará com a redução do
partido à irrelevância total. O que convenceria um cidadão que abomina
justamente a desvergonha coordenada pelo dr. Costa a votar num aspirante a
simulacro deste? Falo do dr. Rio. Poucos falam do dr. Rio. O dr. Rio não conta
e, não tarda, o PSD segue-lhe os passos. É com o PSD. E, se
não se importam, é com o país. Ao desistir de ser oposição, o PSD abdicou de
ser alternativa. E um regime sem alternativa não é democrático: é uma coisinha
má, cuja entrega nas mãos vorazes e balofas do PS torna ainda pior.
COMENTÁRIOS
Adelina Maria Ribeiro Ribeiro: Brilhante. Mais uma vez todos os pontos nos
respectivos is!
homo liber: Eis como simular um exercício de reflexão sobre
o poder, sem uma única sustentação e referência às principais teorias
do poder desenvolvidas por Hegel, Schmitt, Arendt, Honneth, Habermas,
Byung-Chul Han, para enquadrar argumentativamente seja o que for que o escriba
pretendia expressar...
Surge,
assim, mais um estado de alma...
José Ramos >homo liber: Infelizmente, "o escriba" alinhavou apenas
uma crónica semanal de algumas linhas e não a opus magnum em vinte ou trinta tomos sobre Hegel,
Schmitt, Arendt, Honneth, Habermas, Byung-Chul Han e outros, com que o estimado
Professor Liber certamente nos brindará. Não se esqueça do nosso José Vilhena.
Também ele, a seu modo, discorreu largamente sobre o poder.
André Silva: Após um interregno de registo
mais pessoal (não intimista, felizmente...) de uma semana, Alberto Gonçalves
regressa ao seu nível habitual e a que nos habituou: ARRASADOR DE TÃO VERDADEIRO. E isto apenas e só porque este país socialista de factum infelizmente que já há
muitos anos perdeu por completo a noção do que é a mínima decência, o sentido
de honra, confunde lealdade com fidelidade , mas acima de tudo deixou de saber
(ou de querer saber) o que é o princípio de tudo: a VERDADE. E é este o maravilhoso
legado comunista-socialista do pós 25/Abril/1974 (mais justamente e cada vez
mais reconhecido como a “Rouboluçao dos Cravas”)
Maria Alva: Excelente, com a ironia q.b. É claro que os
avençados do Rato estão cá todos a defender o que é indefensável, grande parte
deles, quiçá, articulados na "famiglia" e amigos socialistas também a
"sacar o deles". Todos eles, infantilmente, defendem a tramoia com os
"pecados" (muitos deles simples calúnias) dos outros. É o que
temos! Até prá semana, AG.
Marie de Montparnasse: A história dirá que Alberto Gonçalves esteve sempre
na vanguarda das lutas pelo lado certo da vida. Será essa a sua marca. O mesmo
não será dito de um PR seu contemporâneo em exercício contrário.
José Carlos Lourenço: Crónica genial, que combina a ironia inteligente com a
realidade abjecta e manhosa do poder geringonceiro. A pérola da "indecência congénita"
como critério de admissão e progressão na carreira vai deixar os avençados de
serviço ao poder a tremelicar de raiva e a fumegar pelas orelhas. E a pobrezita ex-namorada do trafulha-mor leva
uma estrondosa e bem merecida trombada.
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