E assim vamos conhecendo breves excertos
do mundo, na pena dos que passeiam e gostam de se debruçar sobre esse mundo,
com mais ou menos sentido descritivo, com mais ou menos sentido crítico. Era Manuel Luís Pombal um jornalista do
Jornal Notícias de Lourenço Marques, meu conhecido nos anos 60, que punha humor
nas suas crónicas, que um dia versaram sobre o mundo europeu por conta de um
seu passeio de férias que me divertiu. Aliás, o tema das viagens é bastamente
explorado em todos os tempos, já o fez Marco Polo e igualmente Júlio Verne, Montesquieu traduzindo
graça irónica na visão divertida de uns persas sobre os costumes europeus, o
próprio Sartre, no seu “A
Náusea”,
descrevendo com humor de uma seriedade cómica, um passeio ao domingo, salvo
erro em Paris, de fazer “rir às lágrimas”. Também lembro os descritivos de Ramalho, Eça preferindo deter-se sobre o mundo humano, nas Cartas de Londres ou nos Ecos de Paris, Garrett dando conta do estado do país, numa simples viagem a
Santarém…
Paulo Rangel o fez,
sentado à mesa de um café em Salónica,
aproveitando o tempo para contar das novas perspectivas de se viajar, hoje, em
voos aéreos mais baratos, que nos levam ao mundo, à sua geografia e à sua
história. Humor um tanto sombrio o seu, fixando-se no tema da morte, no respeito
e no desrespeito, na pompa e grandeza, ou no desprezo e insensibilidade
bastamente alardeados já. Uma reflexão, todavia, que define o político Rangel,
sério e aguerrido, sensível aos valores e às cores do mundo. Cracóvia e Salónica, gostei de
conhecer.
OPINIÃO
Cracóvia e Salónica, Auschwitz e Vergina
– a questão do sentido
A riqueza inabarcável da cultura europeia
só se pode palpar, aquilatar e sentir quando saímos do circuito expectável das
cidades incontornáveis.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 20 de Agosto de 2019
1.
Sentado numa esplanada de Salónica, diante do mar Egeu, junto à Avenida Aristóteles,
desespero por um café. Escrevo estas linhas, pensando na enorme mudança que
as companhias aéreas de baixo custo e o alojamento local
trouxeram à cultura europeia, à identidade europeia. A Europa
das capitais – e de
mais algumas metrópoles e atracções turísticas – transformou-se rapidamente na Europa das cidades.
Gente do Porto ou de Dubrovnik, que nunca se lembraria de ir a Gotemburgo ou
a Lyon, passou a inscrever as cidades médias nos seus roteiros mais prováveis.
A riqueza inabarcável da cultura europeia só se pode
palpar, aquilatar e sentir quando saímos do circuito expectável das cidades
incontornáveis. Esta
transumância das cidades improváveis cria rede, cria espessura, fabrica identidade.
Só nestas cidades é possível a “Europa dos cafés” de George Steiner. Só nestas
cidades se pode compreender o mundo de ontem de Stefan Zweig.
2.
Neste Agosto, voltei a Cracóvia e descobri Salónica. Cracóvia, hoje
largamente tomada pelo frenesim turístico, que aqui e ali a mascara e disfarça,
mostra a Polónia que nunca poderia ser apreciada em Varsóvia. Salónica, cheia de autenticidade, entalada entre os Balcãs e a
Ásia Menor, apresenta a Grécia que Atenas dificilmente pode mostrar. Ambas exibem com orgulho uma história densa e rica, ambas
se perfilam como “reservas” da identidade nacional. Cracóvia e Salónica
são as segundas cidades da Polónia e da Grécia; não por acaso, fazem o
contraponto às capitais e revelam por que razão a Europa não pode dispensar o
lastro genético da cultura eslava e da cultura helénica, a semente espiritual
do catolicismo, da ortodoxia e do judaísmo.
Cracóvia
é belíssima, Salónica nem tanto.
A história de ambas é também uma história de sofrimento e de sufocação: Cracóvia
por largo tempo sob domínio austríaco, Salónica sob o jugo otomano. A narrativa da resistência e da resiliência é o
músculo que dá força à identidade das duas cidades. Curiosamente, a
população judaica teve um papel determinante na história de cada uma delas – e,
em Salónica, em especial, a comunidade sefardita, provinda da expulsão da
península ibérica –, embora ambas tenham sido largamente dizimadas pela
ocupação nazi.
No
simplismo da mensagem turística, as duas cidades projectam-se em torno das
personalidades míticas. Salónica, capital
da Macedónia, vive em volta de Alexandre o Grande e do seu legado para a
expansão da civilização helénica. Cracóvia
organiza-se em redor de João Paulo II e do seu combate ao nazismo
(alemão) e em especial ao comunismo (russo). Cracóvia
também reclama para João Paulo II o epíteto de “Grande”, que, até ao presente,
só quatro papas ostentam. Os dois merecem decerto uma especial atenção, mas
seria redutor e mesmo enganador julgar as cidades pelos méritos dos seus
heróis.
3.
Não se pode ir a Cracóvia sem andar umas poucas dezenas de quilómetros para
visitar o campo de morte de Auschwitz-Birkenau. Não se pode ir a Salónica sem fazer outros tantos
quilómetros para visitar Vergina (antiga Aigai), onde está o túmulo de Filipe II da Macedónia. Este complexo funerário, pertencente ao sítio
arqueológico de Aigai (primeira capital da Macedónia), é uma das mais vibrantes
descobertas culturais que fiz nos últimos anos. Em Aigai, podem ver-se as
ruínas do palácio real (talvez o maior edifício do mundo grego) e do teatro em
que foi assassinado Filipe II; mas nada se compara ao seu túmulo. Neste
complexo, há quatro tumbas, das quais duas estão em perfeito estado de
conservação (entre elas, a de Filipe II). Não só os “templos” de mármore estão
em admiráveis condições como é possível ver todo o espólio que ali estava
depositado. As armas, escudos e armaduras; as coroas, jóias e caixas funerárias
em ouro; os serviços de cozinha e de jantar em prata; os utensílios de banho em
bronze e ferro, nas cores originais; as pinturas das paredes com enorme grau de
nitidez; as peças de cerâmica em estado admirável. E – note-se – um vasto
conjunto de lápides funerárias de cidadãos comuns, com relevos e estatuária,
onde figuram inscrições pungentes e arrepiantes.
4. O
grande contraste deste verão, marcado pela morte, foi mesmo entre Auschwitz e Aigai.
No campo de morte, tudo foi feito para a ocultar e esconder. À medida que as
vítimas chegavam aos milhares, eram rapidamente desapossadas dos seus sinais
identitários, devidamente numeradas e depois encaminhadas para as câmaras de
gás. Em seguida, eram incineradas nos fornos crematórios, as suas cinzas
atiradas ao rio e o remanescente dos ossos triturado e destruído. Ao invés do
que imporia a norma nazi de organização rígida, não havia registo de nomes nem
de identidades; não havia registo de nada. Nada se passara afinal. A morte
em massa como morte de anónimos, desconhecidos, não pessoas. Nem um só
vestígio. A morte era o ponto final, o fim, para lá do qual não havia nada nem
podia sobrar nada.
Em
Aigai, para todos e cada um, mas, muito ostensivamente, para a família real,
havia a celebração da morte e a crença na eternidade. O funeral do pai de Alexandre o Grande foi o
mais espectacular de que havia memória: pelos túmulos construídos, pelas
riquezas ali deixadas, pelos relatos que existem da cerimónia de cremação e de
depósito no túmulo. Como provam as lápides das pessoas comuns, para os
macedónios, a morte não era uma banalidade. Mesmo pondo de parte a fé na
eternidade, a morte era celebrada, assinalada, documentada. A morte
era um momento de identidade, consubstanciava o reconhecimento do valor da
pessoa. A morte era produtora de sentido; de sentido e de valor.
5. A Europa não
pode hesitar entre o aniquilamento da pessoa, através da ocultação, ignorância
e descaso da morte e a valorização da pessoa, por via do reconhecimento e do
respeito da morte. Há que escolher entre Auschwitz e Aigai. A mais humana das
condições é o culto dos mortos. Onde não há contemplação da morte, não há
humanidade.
SIM. Alexandre
Soares dos Santos. A Fundação
que deixou, a intervenção livre e independente e o seu sentido cívico mostram
bem que não perdemos apenas um grande empresário.
“Ameaças”, no P2 de Domingo, retrata fielmente a cedência do PS
ao populismo e ao politicamente correcto. Costa tomou o gosto ao controlo
político e social.
Colunista
COMENTÁRIOS
Colete Amarelo: Belo texto de viagem. Não compreendo por que termina
com aqueles dois SINS finais.
Aqueu: Lamento
discordar do autor. Gosto muito de Cracóvia onde passei duas semanas e não dois
ou três dias como a grande maioria. Gosto da praça (Rynek Glowny) com o
belíssimo Mercado de Tecidos, do castelo, das muralhas, do rio e sobretudo do
bairro judeu de Kazimierz. Mas não fui ao deprimente Auschwitz. Ao contrário do
autor, achei Salónica a mais linda cidade da Grécia e cativou-me muito mais que
Cracóvia. E claro que também fui a Vergina e outros lugares arqueológicos da
zona. Mas a Paralía (a marginal Leof. Nikis) é uma beleza e consola os olhos
vê-la sentados, mas muito mais passeando ao longo dela. E não existe nenhuma
avenida Aristóteles. Existe uma (grande) praça com esse nome e onde começa a
dita marginal ou Paralía, como lhe chamam os locais.
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