quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Viajar é bom, traduzi-lo, é prazer



E assim vamos conhecendo breves excertos do mundo, na pena dos que passeiam e gostam de se debruçar sobre esse mundo, com mais ou menos sentido descritivo, com mais ou menos sentido crítico. Era Manuel Luís Pombal um jornalista do Jornal Notícias de Lourenço Marques, meu conhecido nos anos 60, que punha humor nas suas crónicas, que um dia versaram sobre o mundo europeu por conta de um seu passeio de férias que me divertiu. Aliás, o tema das viagens é bastamente explorado em todos os tempos, já o fez Marco Polo e igualmente Júlio Verne, Montesquieu traduzindo graça irónica na visão divertida de uns persas sobre os costumes europeus, o próprio Sartre, no seu “A Náusea”, descrevendo com humor de uma seriedade cómica, um passeio ao domingo, salvo erro em Paris, de fazer “rir às lágrimas”. Também lembro os descritivos de Ramalho, Eça preferindo deter-se sobre o mundo humano, nas Cartas de Londres ou nos Ecos de Paris, Garrett dando conta do estado do país, numa simples viagem a Santarém…
Paulo Rangel o fez, sentado à mesa de um café em Salónica, aproveitando o tempo para contar das novas perspectivas de se viajar, hoje, em voos aéreos mais baratos, que nos levam ao mundo, à sua geografia e à sua história. Humor um tanto sombrio o seu, fixando-se no tema da morte, no respeito e no desrespeito, na pompa e grandeza, ou no desprezo e insensibilidade bastamente alardeados já. Uma reflexão, todavia, que define o político Rangel, sério e aguerrido, sensível aos valores e às cores do mundo. Cracóvia e Salónica, gostei de conhecer.
OPINIÃO
Cracóvia e Salónica, Auschwitz e Vergina – a questão do sentido
A riqueza inabarcável da cultura europeia só se pode palpar, aquilatar e sentir quando saímos do circuito expectável das cidades incontornáveis.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 20 de Agosto de 2019
1. Sentado numa esplanada de Salónica, diante do mar Egeu, junto à Avenida Aristóteles, desespero por um café. Escrevo estas linhas, pensando na enorme mudança que as companhias aéreas de baixo custo e o alojamento local trouxeram à cultura europeia, à identidade europeia. A Europa das capitais – e de mais algumas metrópoles e atracções turísticas – transformou-se rapidamente na Europa das cidades. Gente do Porto ou de Dubrovnik, que nunca se lembraria de ir a Gotemburgo ou a Lyon, passou a inscrever as cidades médias nos seus roteiros mais prováveis. A riqueza inabarcável da cultura europeia só se pode palpar, aquilatar e sentir quando saímos do circuito expectável das cidades incontornáveis. Esta transumância das cidades improváveis cria rede, cria espessura, fabrica identidade. Só nestas cidades é possível a “Europa dos cafés” de George Steiner. Só nestas cidades se pode compreender o mundo de ontem de Stefan Zweig.
2. Neste Agosto, voltei a Cracóvia e descobri Salónica. Cracóvia, hoje largamente tomada pelo frenesim turístico, que aqui e ali a mascara e disfarça, mostra a Polónia que nunca poderia ser apreciada em Varsóvia. Salónica, cheia de autenticidade, entalada entre os Balcãs e a Ásia Menor, apresenta a Grécia que Atenas dificilmente pode mostrar. Ambas exibem com orgulho uma história densa e rica, ambas se perfilam como “reservas” da identidade nacional. Cracóvia e Salónica são as segundas cidades da Polónia e da Grécia; não por acaso, fazem o contraponto às capitais e revelam por que razão a Europa não pode dispensar o lastro genético da cultura eslava e da cultura helénica, a semente espiritual do catolicismo, da ortodoxia e do judaísmo.
Cracóvia é belíssima, Salónica nem tanto. A história de ambas é também uma história de sofrimento e de sufocação: Cracóvia por largo tempo sob domínio austríaco, Salónica sob o jugo otomano. A narrativa da resistência e da resiliência é o músculo que dá força à identidade das duas cidades. Curiosamente, a população judaica teve um papel determinante na história de cada uma delas – e, em Salónica, em especial, a comunidade sefardita, provinda da expulsão da península ibérica –, embora ambas tenham sido largamente dizimadas pela ocupação nazi.
No simplismo da mensagem turística, as duas cidades projectam-se em torno das personalidades míticas. Salónica, capital da Macedónia, vive em volta de Alexandre o Grande e do seu legado para a expansão da civilização helénica. Cracóvia organiza-se em redor de João Paulo II e do seu combate ao nazismo (alemão) e em especial ao comunismo (russo). Cracóvia também reclama para João Paulo II o epíteto de “Grande”, que, até ao presente, só quatro papas ostentam. Os dois merecem decerto uma especial atenção, mas seria redutor e mesmo enganador julgar as cidades pelos méritos dos seus heróis.
3. Não se pode ir a Cracóvia sem andar umas poucas dezenas de quilómetros para visitar o campo de morte de Auschwitz-Birkenau. Não se pode ir a Salónica sem fazer outros tantos quilómetros para visitar Vergina (antiga Aigai), onde está o túmulo de Filipe II da Macedónia. Este complexo funerário, pertencente ao sítio arqueológico de Aigai (primeira capital da Macedónia), é uma das mais vibrantes descobertas culturais que fiz nos últimos anos. Em Aigai, podem ver-se as ruínas do palácio real (talvez o maior edifício do mundo grego) e do teatro em que foi assassinado Filipe II; mas nada se compara ao seu túmulo. Neste complexo, há quatro tumbas, das quais duas estão em perfeito estado de conservação (entre elas, a de Filipe II). Não só os “templos” de mármore estão em admiráveis condições como é possível ver todo o espólio que ali estava depositado. As armas, escudos e armaduras; as coroas, jóias e caixas funerárias em ouro; os serviços de cozinha e de jantar em prata; os utensílios de banho em bronze e ferro, nas cores originais; as pinturas das paredes com enorme grau de nitidez; as peças de cerâmica em estado admirável. E – note-se – um vasto conjunto de lápides funerárias de cidadãos comuns, com relevos e estatuária, onde figuram inscrições pungentes e arrepiantes.
4. O grande contraste deste verão, marcado pela morte, foi mesmo entre Auschwitz e Aigai. No campo de morte, tudo foi feito para a ocultar e esconder. À medida que as vítimas chegavam aos milhares, eram rapidamente desapossadas dos seus sinais identitários, devidamente numeradas e depois encaminhadas para as câmaras de gás. Em seguida, eram incineradas nos fornos crematórios, as suas cinzas atiradas ao rio e o remanescente dos ossos triturado e destruído. Ao invés do que imporia a norma nazi de organização rígida, não havia registo de nomes nem de identidades; não havia registo de nada. Nada se passara afinal. A morte em massa como morte de anónimos, desconhecidos, não pessoas. Nem um só vestígio. A morte era o ponto final, o fim, para lá do qual não havia nada nem podia sobrar nada.
Em Aigai, para todos e cada um, mas, muito ostensivamente, para a família real, havia a celebração da morte e a crença na eternidade. O funeral do pai de Alexandre o Grande foi o mais espectacular de que havia memória: pelos túmulos construídos, pelas riquezas ali deixadas, pelos relatos que existem da cerimónia de cremação e de depósito no túmulo. Como provam as lápides das pessoas comuns, para os macedónios, a morte não era uma banalidade. Mesmo pondo de parte a fé na eternidade, a morte era celebrada, assinalada, documentada. A morte era um momento de identidade, consubstanciava o reconhecimento do valor da pessoa. A morte era produtora de sentido; de sentido e de valor.
5. A Europa não pode hesitar entre o aniquilamento da pessoa, através da ocultação, ignorância e descaso da morte e a valorização da pessoa, por via do reconhecimento e do respeito da morte. Há que escolher entre Auschwitz e Aigai. A mais humana das condições é o culto dos mortos. Onde não há contemplação da morte, não há humanidade.
SIM. Alexandre Soares dos Santos. A Fundação que deixou, a intervenção livre e independente e o seu sentido cívico mostram bem que não perdemos apenas um grande empresário.
“Ameaças”, no P2 de Domingo, retrata fielmente a cedência do PS ao populismo e ao politicamente correcto. Costa tomou o gosto ao controlo político e social.
Colunista
COMENTÁRIOS
Colete Amarelo: Belo texto de viagem. Não compreendo por que termina com aqueles dois SINS finais.
Aqueu: Lamento discordar do autor. Gosto muito de Cracóvia onde passei duas semanas e não dois ou três dias como a grande maioria. Gosto da praça (Rynek Glowny) com o belíssimo Mercado de Tecidos, do castelo, das muralhas, do rio e sobretudo do bairro judeu de Kazimierz. Mas não fui ao deprimente Auschwitz. Ao contrário do autor, achei Salónica a mais linda cidade da Grécia e cativou-me muito mais que Cracóvia. E claro que também fui a Vergina e outros lugares arqueológicos da zona. Mas a Paralía (a marginal Leof. Nikis) é uma beleza e consola os olhos vê-la sentados, mas muito mais passeando ao longo dela. E não existe nenhuma avenida Aristóteles. Existe uma (grande) praça com esse nome e onde começa a dita marginal ou Paralía, como lhe chamam os locais.

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