Atrasou o relato de Teresa de Sousa a respeito da oportuna intervenção do
governo na concretização da greve dos motoristas de materiais perigosos, o que
não é impedimento de aproveitarmos o seu discurso de equilíbrio e ponderação para
aclarar uma questão ainda não extinta, de resto. Não façamos, pois, greve, a
mais uma excelente análise de TS.
OPINIÃO
Sobre o direito à greve e o significado das palavras
Esta greve comportava um enorme risco
para o Governo, justamente porque estamos em vésperas de eleições.
PÚBLICO, 25 de Agosto de 2019
1.
Independentemente da justiça das reivindicações salariais dos motoristas de
materiais perigosos, o debate que se gerou em torno desta greve e da forma como o
Governo lidou com ela merece alguma reflexão. Sobre os novos sindicatos que fogem ao controlo
das velhas centrais sindicais, sobre o direito à greve, sobre a utilização de
serviços mínimos ou da requisição civil por parte do Governo ou sobre o
comportamento dos partidos à esquerda e à direita.
No
calor dos acontecimentos, é natural que se procurem novas palavras para tentar
caracterizar as novas realidades e os novos fenómenos sociais com que nos
confrontamos, num tempo de profundas transformações como aquele que vivemos
hoje. É natural, mas também contém seus perigos.
Nas
últimas semanas, neste país relativamente tranquilo e ainda a coberto da vaga
de populismo que varre os nossos parceiros europeus, a tentação de
classificar de “populista” o comportamento do Governo foi, aparentemente,
irresistível.
António
Costa foi o alvo principal da acusação, ou não fosse ele o primeiro responsável
pelo que se passa no país, de bom ou de mau. Se levarmos em conta que estamos
em vésperas de eleições legislativas, nas quais o que está em causa para os
partidos da oposição, à direita como à esquerda, não é tanto ganhá-las, mas
reduzir ao mínimo a quase certa vitória do PS, a crispação política e mediática
em torno desta greve é compreensível. Mas não justifica tudo. Houve quem comparasse António Costa ao seu homólogo
britânico Boris Johnson,
justificando a comparação com o facto de aparecer constantemente em público
durante a crise dos combustíveis, apresentando-se como o garante “da lei e da
ordem”, alegadamente como tem feito o primeiro-ministro britânico. Daqui até
concluir que Portugal não precisa de esperar pelo surgimento de um partido
verdadeiramente populista porque já tem um governo populista é um salto
demasiado grande para que esta acusação possa ser levada a sério.
A
outra acusação recorrente ao primeiro-ministro desde a primeira hora foi a sua
intenção “escondida” de transformar a greve num trampolim para a maioria
absoluta. O mais
curioso é que esta interpretação das intenções de Costa teve a sua origem no
Palácio de Belém, antes de se espalhar como um rastilho no debate mediático,
como se fosse atribuição presidencial a análise política dos acontecimentos
e não o zelo pelo bom funcionamento das instituições. É, de novo, um salto
demasiado grande para merecer alguma credibilidade. Esta
greve comportava um enorme risco para o Governo, justamente porque estamos em
vésperas de eleições. A sua
evolução era absolutamente imprevisível. Tudo poderia correr bem, como até
agora correu, mas também tudo poderia ter corrido mal. Qualquer manifestação
de violência por parte dos grevistas ou qualquer excesso do uso da força por
parte do Governo poderia facilmente gerar uma escalada que em nada beneficiaria
os objectivos eleitorais do PS.
2. Houve
também quem acusasse António Costa de “thatcherismo” ou de encarnar uma nova
versão de “socialismo musculado”, pela dureza com que tratou os sindicatos,
lembrando o tempo em que Margaret Thatcher chegou ao poder (1979) e
enfrentou uma vaga de greves desencadeadas pelas poderosas trade unions britânicas
que, na altura, tinham a força necessária para ditar a chuva e o bom tempo.
Só quem não se lembra das imagens de Londres, com o
lixo acumulado nas ruas a chegar ao primeiro andar dos prédios e o aquecimento
das casas em risco, é que não compreende as razões pelas quais o pêndulo virou
rapidamente em sentido contrário. Como acontece em democracia, o resultado
final foi um novo equilíbrio entre o poder dos sindicatos e o normal
funcionamento da sociedade, que não pôs em causa a democracia britânica e o seu
Estado de Direito. Aliás,
só com Tony Blair, em
1997, o poder dos sindicatos perdeu o seu último reduto, quando o então líder
do New Labour pôs fim a uma cláusula dos estatutos do partido que dava às trade
unions um poder enorme sobre a escolha dos seus líderes em congresso,
através do controlo de uma parte substancial dos votos. Os sindicatos nem
sempre têm razão. O seu papel não deve condicionar a independência dos partidos
políticos.
3.
Convém olhar para as coisas com alguma frieza. O direito
à greve, como qualquer outro direito, não é absoluto, porque não há direitos
absolutos em democracia e todos eles têm os limites que a lei impõe, definidos
a partir do interesse geral. As greves
não são todas iguais, justamente pelo impacto nulo ou desmesurado que podem ter
na vida colectiva. A maioria das greves visa penalizar os patrões de uma
determinada empresa ou sector da economia, para obrigá-los a negociar em
condições mais equilibradas com os trabalhadores. Há
greves, como as dos transportes públicos, que afectam muito mais gente, mas são
geralmente feitas contra o Estado, que é o proprietário dessas empresas. São
uma forma de pressão bastante eficaz pela elevada perturbação que causam, mas
não põem em risco nem a segurança das pessoas nem a economia nacional.
A greve dos camionistas de matérias perigosas, decretada por tempo
indeterminado – é bom recordá-lo – tem a capacidade para afectar o conjunto da
economia e a vida de todos os cidadãos. Pode espalhar facilmente o caos no
funcionamento normal da sociedade. Pode pôr em risco a segurança fundamental
das pessoas, nomeadamente aquela que diz respeito ao socorro imediato. Ao ser
convocada para Agosto, poderia ter afectado o legítimo direito ao gozo de
férias de muitos portugueses. Dir-se-á que uma greve tem de prejudicar alguém
para ter resultados. É verdade. Mas prejudicar toda a gente não é a mesma coisa
que prejudicar os empresários deste ou daquele sector ou o próprio Estado, no
seu normal funcionamento.
Imagine-se
o que aconteceria se, por hipótese, alguém tivesse morrido por falta de
assistência, provocada pelo efeito descontrolado da greve. De quem seria a
responsabilidade? A quem toda a gente apontaria o dedo? O Governo tinha o dever
de encará-la desta maneira e era sua responsabilidade garantir a segurança e a
liberdade das pessoas e as condições mínimas de funcionamento da economia, de
forma a não lesar muita gente pelo direito de alguns a exigir melhores
condições de trabalho. Podia ter feito de outra maneira? Em teoria, poderia.
Com que consequências? Não sabemos. Jogou pelo seguro e obteve os resultados pretendidos.
Evitou o caos que estava ao virar da esquina. As negociações foram o caminho
encontrado por dois dos sindicatos envolvidos directa ou indirectamente no
conflito. A natureza política da greve do sindicato nacional dos motoristas de
cargas perigosas ficou demonstrada para além de qualquer dúvida. E é aqui que
também vale a pena reflectir.
Este
novo sindicalismo independente tem a sua razão de ser: libertar-se das
velhas centrais sindicais que fizeram muitas vezes dos sindicatos a correia de
transmissão dos objectivos políticos deste ou daquele partido. Mas isso não
significa que os seus motivos sejam inocentes. Ficou mais do que provado que Pardal Henriques, o porta-voz do sindicato, quis fazer da greve um
trampolim para as suas ambições políticas. Não teve grande sucesso. Com Marinho e Pinho
não irá certamente muito longe e isso apenas abona em favor do sistema
partidário português.
4. O direito à
greve ficou afectado? A direita deve regozijar-se com a forma como
um governo de centro-esquerda lidou com esta greve, abrindo um precedente?
Responder que sim é mais uma vez demasiado fácil. Haverá greves noutros
sectores de actividade sem as implicações desta, que a lei protegerá contra
qualquer abuso de poder dos governos. Haverá governos de diferentes cores
políticas que reagirão à sua maneira à contestação social. Em democracia é
assim mesmo, desde que tudo acontece num quadro legal estabelecido. O
direito à greve não está em risco. O verdadeiro risco que as democracias
enfrentam é o dos movimentos populistas e nacionalistas que tiram partido do
medo do futuro, do agravamento das desigualdades ou do enquistamento das elites
políticas em torno de velhas ideias. Ou do caos social, no caso de se instalar
com demasiada frequência. Apesar de tudo, o cuidado dos partidos políticos em
manterem alguma distância desta greve é revelador de que percebem os riscos que
as democracias atravessam e preferem não ir por aí.
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