Como não tenho paciência para escutar
meia hora de noticiário sobre a questão da greve dos combustíveis, que mal
entendo, e a que, naturalmente, tenho zanga, vou fazendo zapping e
entretendo-me a buscar filmes nos canais próprios. Hoje à tarde prendi-me com
um filme francês que já ia a meio, e retomei-o todo de princípio, perdendo os
noticiários, que, aliás, pouco divergiam dos de ontem. Um filme meio policial,
meio de horror, que uniu duas almas de artistas e de pessoas bem formadas, que
logo me interessou, mas não deixei de seguir, por vezes, as traduções, que, tal
como os relatos enjoativos dos escândalos das nossas misérias noticiosas, revelam
a mesma faceta de atraso sem apelo nem agravo, pela falta de qualidade das
ditas traduções que os que têm a seu cargo os tais canais, implicando
traduções, deixam passar, sem respeito. Foram muitos os pretéritos perfeitos
transformados em presentes pronominais – “ficas-te”
por”ficaste”, o asnático “ouvis-te” por “ouviste” e tantos mais exemplos, o futuro “mantereia” por “mantê-la-ei”, o infinitivo pronominal “vernos”, em vez de “ver-nos”, um chorrilho de asneiras morfológicas comprovativas da
nossa parca dimensão cultural e brio moral. Por isso, leio JMT que deslinda um pouco os nós desta algazarra das
greves e respectiva hipocrisia dominadora e eficaz de A. Costa, que os
comentadores mais simpatizantes - os menos, deixo-os de lado – apoiam na
tarefa esclarecedora.
I - OPINIÃO
António Costa: razão e musculação
A gestão política que o Governo está a
fazer desta greve pode ter resultados menos previsíveis do que se pensa.
PÚBLICO, 13 de
Agosto de 2019
Tempos
houve em que o PS espalhava cartazes pelo país com o famoso slogan“razão e
coração”. Foi assim que António Guterres foi eleito, após dez anos de
cavaquismo. O novo António não vai nisso. Costa é todo ele “razão
e musculação”. Nem por um
segundo duvida da necessidade de ter mão firme enquanto primeiro-ministro e
conhece bem o velho fascínio português pelo exercício da autoridade. Neste
particular, António Costa tem a mesma escola de José Sócrates — ambos
aprenderam, a partir da primeira fila, que não chega ter uma grande cabeça
(como Guterres tinha) para ser um grande líder (que Guterres nunca foi), e as
fraquezas e indecisões do actual secretário-geral da ONU foram uma
eficientíssima vacina para a geração de socialistas que se lhe seguiu.
Mas
a gestão política que o Governo está a fazer desta greve pode ter
resultados menos previsíveis do que se pensa. Eu acho, tal como António
Costa, que os músculos dão votos, por isso, o raciocínio que subjaz ao
endurecer de posições por parte do Governo (concretizado numa requisição civil escassas 18 horas após o início
da greve) é muito racional: a greve é extremamente impopular, a
maioria dos portugueses está distante das reivindicações dos motoristas, e o
Governo tem campo aberto para mostrar quem manda, o que costuma agradar a uma
direita cada vez mais órfã de qualquer vestígio de liderança.
Costa
aposta num remake da crise dos professores, onde o “não” ruidoso teve como
consequência uma subida assinalável nas sondagens e o xeque-mate ao PSD e ao
CDS. Aliás, é
esse espectro que justifica o absoluto eclipse da direita ao longo desta crise,
sem que se vislumbre uma alminha que se atreva a meter o nariz de fora. Não
fosse essa cobardia estrutural e a ausência de uma dose mínima de convicções, e
muito haveria a dizer a propósito da greve dos motoristas, sobretudo pelo
acumular de várias camadas de hipocrisia, que uma oposição decente já estaria a
desmontar.
Querem
exemplos? Hipocrisia 1: não
há qualquer equidistância do Estado neste conflito entre privados. O Governo
pôs-se ao lado da Antram, e ouvir o porta-voz do Conselho de Ministros ou o
porta-voz da Antram vai dar ao mesmo: os argumentos são iguais. Hipocrisia
2: o facto de o advogado André Matias
Almeida, porta-voz da Antram, ser muitíssimo próximo do PS não pode ser
desvalorizado, porque ele está a actuar como ponta-de-lança oficioso do Governo
nesta guerra. Hipocrisia 3: a
história de que a Antram impõe como única condição para voltar à mesa de
negociações o levantamento do pré-aviso de greve “porque não negoceia com uma
espada na cabeça” é treta. A Antram quer a espada e quer a cabeça – a cabeça de Pedro Pardal Henriques. O secretário de Estado da Presidência do Conselho
de Ministros, Tiago Antunes, chegou a sugerir na segunda-feira que a requisição
civil poderia vir a ser feita sindicato a sindicato, porque uns associados
estariam a cumprir os serviços mínimos, outros não. Hipocrisia
4: a cabeça de Pardal Henriques interessa a todos,
incluindo ao Partido Comunista, que quer os sindicatos debaixo do chapéu da
CGTP e não nas mãos de cavaleiros solitários que o partido não controla.
É
esta camada de hipocrisia que poderá sempre estalar no meio do conflito. Para
já, para já, António Costa só tem uma coisa para festejar: o
passamento definitivo da direita, que ficou sem combustível em Maio e não
cumpre os serviços mínimos há meses e meses. A 6 de Outubro, o povo português
tratará de chamar o reboque.
COMENTÁRIOS:
JDF, 13.08.2019: Por vezes visamos
quem podemos, ou quem queremos, ao invés de visarmos quem devemos. A decisão de
requisição civil pode ser controversa, quem sabe até ilegal. Ou legal mas
tardia. Não obstante, é o governo a trabalhar. Tal como foi com os enfermeiros
e outros tantos. Desviando o assunto, o comportamento da oposição é que me
levanta critica. Como um outro comentário constatou, possivelmente se isto
fosse no tempo de passos coelho, teríamos visto parte da esquerda mais
fervorosa. Das duas uma: ou só se vêem notícias sobre a greve dos
transportadores e mais nada, ou não há mesmo mais nada para ver para além disto
(sobre este assunto). A direita portuguesa está mesmo amansada, para não falar
da esquerda. Espero que isto corra bem. Ps: jmt, assunto de treta!
Nuno Silva, 13.08.2019: O
Costinha de Alfama e Madragoa foi mesmo obrigado a fazer musculação e alteres
para assegurar a nossa segurança, porque estes novos sindicatos e
bastonárias(os) (a alegria da direita), abandonam negociações depois de
firmados acordos históricos de aumentos nos salários dessas profissões. Não se
compreende, ainda mais nos motoristas de pesados, com aquela paciência de
andarem milhares de kms na autoestrada só a 90km/h...
Rebelde, 13.08.2019 1: Os líderes do
PSD e CDS não merecem ser oposição num país democrático. Foram para políticos
mas não têm coragem nenhuma. Imagino que se houvesse uma tentativa de imposição
de uma ditadura seriam os primeiros a fugir.
AA, 13.08.2019: Nas próximas eleições uma coisa estará garantida: a
abstenção será alta. A análise de JMT só peca por defeito. O PS está tranquilo,
pois, os seus sócios da geringonça estão completamente anestesiados e assobiam
para o lado quando uma greve não é controlada por eles, sobretudo pelo PCP. Se
juntarmos a tudo isto, a total inércia dos chamados partidos da direita, estará
mais que visto, que o trabalhador assalariado não tem ninguém que o represente.
E portanto, não há (ou haverá) ilusões. É o país que temos.
II -OPINIÃO
Hoje estou a sentir-me um bocado
motorista
Como todos os portugueses, espero que
a greve acabe depressa. Mas se o pessoal só é verdadeiramente de esquerda com
gasóleo no depósito, então Marx precisa de reescrever O Capital.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 15 de Agosto de 2019
No
país dos dois pesos e das duas medidas, há certas coisas que me encanitam. Em
relação a greves, tenho algumas regras que já repeti várias vezes, mas que vale
a pena relembrar.
Regra 1: As greves na função pública ou em empresas do Estado
dizem respeito a todos, porque somos nós, contribuintes, que pagamos os
salários de professores, enfermeiros ou trabalhadores da CP.
Regra 2: As greves no sector privado dizem respeito, em
primeiro lugar, aos empregados e aos empregadores, ainda que possam afectar
toda a população, como é o caso
presente.
Regra 3: As greves no sector do Estado são demasiado fáceis de
fazer, porque o trabalhador não arrisca nada.
Regra 4: As greves no sector privado são difíceis, porque o
trabalhador arrisca todos os dias o seu emprego, seja porque a sua empresa pode
deslocalizar-se (como no caso da Volkswagen e da Autoeuropa), seja porque a
empresa pode fechar portas, o que não acontece com o Estado.
Aquilo
de que não estou a gostar nem um bocadinho na condução da actual greve é de ver
estas minhas queridas regras totalmente subvertidas, e sempre a favor dos
mesmos. Eu acho tanta graça ao senhor Pardal como qualquer português, e
esta ideia de estar em 2019, nas vésperas das eleições, a fazer greves sobre aumentos
para 2021 é claramente um oportunismo, muito pouco bonito.
Mas
isso não significa que aquelas pessoas não mereçam ganhar mais do que ganham, e
que oferecer ordenados pouco acima do salário mínimo, vitaminados por
alcavalas que existem para pagar o que muitas vezes são 60 horas de trabalho
semanais, não deixa de ser uma prática altamente duvidosa e merecedora de
protesto. Sobretudo num sector de lucros bilionários, com uma regulação
patética, e cuja liberalização resulta em sinais informativos nas auto-estradas
em que os preços das marcas A, B, C e D são iguaizinhos até à milésima parte do
euro.
De
repente, ver tanta gente à minha volta, muito de esquerda, muito pró-professor,
pró-CGTP, pró-PCP, pró-Bloco e pró-Boaventura, defender que estes motoristas
são a matilha do sindicalista do Maserati, e que o Governo lhes devia pôr uma
trela ainda mais curta, digamos que é daquelas coisas que me começam logo a
provocar pontadas na úlcera. A razão é a do costume: uma hipocrisia olímpica.
Está
a parecer-me que esta suposta irritação colectiva, na qual o Governo apostou
todas as fichas (porventura demasiado cedo), está muito mais ancorada na pinta
do Pardal e na irritação provocada pela falta de gasóleo do que na análise fria
daquilo que está a acontecer e nos direitos – antes tão valorizados – dos
trabalhadores.
Como
dizia um sábio motorista de barbas e óculos escuros à televisão, os técnicos
dos registos e notariado estão em greve e ninguém se chateia com isso.
Discute-se à saciedade que os funcionários públicos só podem trabalhar 35 horas
semanais e estamos a criticar gente que chega a trabalhar 14 horas num dia
para o país não parar. Somos todos sensibilidade social quando os
sacrifícios não nos tocam, mas achamos razoável impor serviços mínimos de 100%
numa vasta lista de locais, e de 50% fora dela. E quando faltam motoristas
ainda pagamos os salários dos militares que conduzem os camiões da Antram.
Assim
de repente, estou a ver demasiados entorses à lógica para ficar repousado. Como
todos os portugueses, espero que a greve acabe depressa. Mas se o pessoal só
é verdadeiramente de esquerda com gasóleo no depósito, então Marx precisa de
reescrever O Capital.
COMENTÁRIOS
A. Miguel Santos,
14:35: Sou de esquerda mas não sou hipócrita. Concordo
plenamente com o JMT que as actuais esquerdas (BE e PCP e amigos) estão a
portar-se muito mal, considerando que só os "seus" trabalhadores
merecem esse nome. Os motoristas pertencem à verdadeira classe trabalhadora,
mesmo que possam não ser votantes de esquerda e o seu sindicato não pertença à
CGTP. Tentar denegrir estes trabalhadores atacando o Dr. Pardal é muito
mesquinho da parte da esquerda, do PS e do Governo, que assim se revela de
direita. O pagamento de complementos fora do salário base, prejudica não só os
trabalhadores mas todo o Povo Português. Isso, o Governo não quer ver ou finge
não ver.
Caetano Brandão: JMT tem razão mais uma
vez, estamos no mesmo barco contra a hipocrisia e incoerência.
fernando jose silva,: um
governo de esquerda do lado do patronato não tem classificação, parece-me um
governo de Salvini. mas estes pelo menos têm o mérito de não enganar ninguém
definindo bem o que são, por isso são sérios. Mas mais espantoso é esse mesmo
patronato de bilionários e afilhados negociar com uns e isolar os outros
perante um governo acomodado à impotência e ao encosto que lhes convém, o do
dinheiro... o primeiro, uma espécie de padre em cuecas, dispara para o mesmo
lado e deixa de ter razão , num país sério, ia ao ar....como dizia um grevista
á televisão, prende o trabalho pago a preços de miséria e solta os gatunos que
nos levaram á pré-bancarrota em que se vive....Nas situações difíceis vê-se a
civilização e aqui não se vê nada...Governo e justiça um saco esburacado.
Novo Humbo, FS, 15.08.2019: Bingo, JMT. O governo sabe
que pode estar a uns milhares de votos da maioria absoluta e por isso tudo fará
para que ninguém se chateie até às eleições. Isto é eleitoralismo puro, simples
e barato, sendo certo que, como diz JMT, não é bonito usar as eleições para ter
benefícios reivindicativos para 2000 e troca o passo.
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