sábado, 17 de agosto de 2019

“Je m’en fous”



Como não tenho paciência para escutar meia hora de noticiário sobre a questão da greve dos combustíveis, que mal entendo, e a que, naturalmente, tenho zanga, vou fazendo zapping e entretendo-me a buscar filmes nos canais próprios. Hoje à tarde prendi-me com um filme francês que já ia a meio, e retomei-o todo de princípio, perdendo os noticiários, que, aliás, pouco divergiam dos de ontem. Um filme meio policial, meio de horror, que uniu duas almas de artistas e de pessoas bem formadas, que logo me interessou, mas não deixei de seguir, por vezes, as traduções, que, tal como os relatos enjoativos dos escândalos das nossas misérias noticiosas, revelam a mesma faceta de atraso sem apelo nem agravo, pela falta de qualidade das ditas traduções que os que têm a seu cargo os tais canais, implicando traduções, deixam passar, sem respeito. Foram muitos os pretéritos perfeitos transformados em presentes pronominais – “ficas-te” por”ficaste”, o asnático “ouvis-te” por “ouviste” e tantos mais exemplos, o futuro “mantereia” por “mantê-la-ei”, o infinitivo pronominal “vernos”, em vez de “ver-nos”, um chorrilho de asneiras morfológicas comprovativas da nossa parca dimensão cultural e brio moral. Por isso, leio JMT que deslinda um pouco os nós desta algazarra das greves e respectiva hipocrisia dominadora e eficaz de A. Costa, que os comentadores mais simpatizantes - os menos, deixo-os de lado – apoiam na tarefa esclarecedora.
I - OPINIÃO
António Costa: razão e musculação
A gestão política que o Governo está a fazer desta greve pode ter resultados menos previsíveis do que se pensa.
PÚBLICO, 13 de Agosto de 2019
Tempos houve em que o PS espalhava cartazes pelo país com o famoso slogan“razão e coração”. Foi assim que António Guterres foi eleito, após dez anos de cavaquismo. O novo António não vai nisso. Costa é todo ele “razão e musculação”. Nem por um segundo duvida da necessidade de ter mão firme enquanto primeiro-ministro e conhece bem o velho fascínio português pelo exercício da autoridade. Neste particular, António Costa tem a mesma escola de José Sócrates — ambos aprenderam, a partir da primeira fila, que não chega ter uma grande cabeça (como Guterres tinha) para ser um grande líder (que Guterres nunca foi), e as fraquezas e indecisões do actual secretário-geral da ONU foram uma eficientíssima vacina para a geração de socialistas que se lhe seguiu.
Mas a gestão política que o Governo está a fazer desta greve pode ter resultados menos previsíveis do que se pensa. Eu acho, tal como António Costa, que os músculos dão votos, por isso, o raciocínio que subjaz ao endurecer de posições por parte do Governo (concretizado numa requisição civil escassas 18 horas após o início da greve) é muito racional: a greve é extremamente impopular, a maioria dos portugueses está distante das reivindicações dos motoristas, e o Governo tem campo aberto para mostrar quem manda, o que costuma agradar a uma direita cada vez mais órfã de qualquer vestígio de liderança.
Costa aposta num remake da crise dos professores, onde o “não” ruidoso teve como consequência uma subida assinalável nas sondagens e o xeque-mate ao PSD e ao CDS. Aliás, é esse espectro que justifica o absoluto eclipse da direita ao longo desta crise, sem que se vislumbre uma alminha que se atreva a meter o nariz de fora. Não fosse essa cobardia estrutural e a ausência de uma dose mínima de convicções, e muito haveria a dizer a propósito da greve dos motoristas, sobretudo pelo acumular de várias camadas de hipocrisia, que uma oposição decente já estaria a desmontar.
Querem exemplos? Hipocrisia 1: não há qualquer equidistância do Estado neste conflito entre privados. O Governo pôs-se ao lado da Antram, e ouvir o porta-voz do Conselho de Ministros ou o porta-voz da Antram vai dar ao mesmo: os argumentos são iguais. Hipocrisia 2: o facto de o advogado André Matias Almeida, porta-voz da Antram, ser muitíssimo próximo do PS não pode ser desvalorizado, porque ele está a actuar como ponta-de-lança oficioso do Governo nesta guerra. Hipocrisia 3: a história de que a Antram impõe como única condição para voltar à mesa de negociações o levantamento do pré-aviso de greve “porque não negoceia com uma espada na cabeça” é treta. A Antram quer a espada e quer a cabeça – a cabeça de Pedro Pardal Henriques. O secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Tiago Antunes, chegou a sugerir na segunda-feira que a requisição civil poderia vir a ser feita sindicato a sindicato, porque uns associados estariam a cumprir os serviços mínimos, outros não. Hipocrisia 4: a cabeça de Pardal Henriques interessa a todos, incluindo ao Partido Comunista, que quer os sindicatos debaixo do chapéu da CGTP e não nas mãos de cavaleiros solitários que o partido não controla.
É esta camada de hipocrisia que poderá sempre estalar no meio do conflito. Para já, para já, António Costa só tem uma coisa para festejar: o passamento definitivo da direita, que ficou sem combustível em Maio e não cumpre os serviços mínimos há meses e meses. A 6 de Outubro, o povo português tratará de chamar o reboque.
COMENTÁRIOS:
JDF, 13.08.2019: Por vezes visamos quem podemos, ou quem queremos, ao invés de visarmos quem devemos. A decisão de requisição civil pode ser controversa, quem sabe até ilegal. Ou legal mas tardia. Não obstante, é o governo a trabalhar. Tal como foi com os enfermeiros e outros tantos. Desviando o assunto, o comportamento da oposição é que me levanta critica. Como um outro comentário constatou, possivelmente se isto fosse no tempo de passos coelho, teríamos visto parte da esquerda mais fervorosa. Das duas uma: ou só se vêem notícias sobre a greve dos transportadores e mais nada, ou não há mesmo mais nada para ver para além disto (sobre este assunto). A direita portuguesa está mesmo amansada, para não falar da esquerda. Espero que isto corra bem. Ps: jmt, assunto de treta!
Nuno Silva, 13.08.2019: O Costinha de Alfama e Madragoa foi mesmo obrigado a fazer musculação e alteres para assegurar a nossa segurança, porque estes novos sindicatos e bastonárias(os) (a alegria da direita), abandonam negociações depois de firmados acordos históricos de aumentos nos salários dessas profissões. Não se compreende, ainda mais nos motoristas de pesados, com aquela paciência de andarem milhares de kms na autoestrada só a 90km/h...
Rebelde, 13.08.2019 1: Os líderes do PSD e CDS não merecem ser oposição num país democrático. Foram para políticos mas não têm coragem nenhuma. Imagino que se houvesse uma tentativa de imposição de uma ditadura seriam os primeiros a fugir.
AA,  13.08.2019: Nas próximas eleições uma coisa estará garantida: a abstenção será alta. A análise de JMT só peca por defeito. O PS está tranquilo, pois, os seus sócios da geringonça estão completamente anestesiados e assobiam para o lado quando uma greve não é controlada por eles, sobretudo pelo PCP. Se juntarmos a tudo isto, a total inércia dos chamados partidos da direita, estará mais que visto, que o trabalhador assalariado não tem ninguém que o represente. E portanto, não há (ou haverá) ilusões. É o país que temos.

II -OPINIÃO
Hoje estou a sentir-me um bocado motorista
Como todos os portugueses, espero que a greve acabe depressa. Mas se o pessoal só é verdadeiramente de esquerda com gasóleo no depósito, então Marx precisa de reescrever O Capital.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 15 de Agosto de 2019
No país dos dois pesos e das duas medidas, há certas coisas que me encanitam. Em relação a greves, tenho algumas regras que já repeti várias vezes, mas que vale a pena relembrar.
Regra 1: As greves na função pública ou em empresas do Estado dizem respeito a todos, porque somos nós, contribuintes, que pagamos os salários de professores, enfermeiros ou trabalhadores da CP.
Regra 2: As greves no sector privado dizem respeito, em primeiro lugar, aos empregados e aos empregadores, ainda que possam afectar toda a população, como é o caso presente.
Regra 3: As greves no sector do Estado são demasiado fáceis de fazer, porque o trabalhador não arrisca nada.
Regra 4: As greves no sector privado são difíceis, porque o trabalhador arrisca todos os dias o seu emprego, seja porque a sua empresa pode deslocalizar-se (como no caso da Volkswagen e da Autoeuropa), seja porque a empresa pode fechar portas, o que não acontece com o Estado.
Aquilo de que não estou a gostar nem um bocadinho na condução da actual greve é de ver estas minhas queridas regras totalmente subvertidas, e sempre a favor dos mesmos. Eu acho tanta graça ao senhor Pardal como qualquer português, e esta ideia de estar em 2019, nas vésperas das eleições, a fazer greves sobre aumentos para 2021 é claramente um oportunismo, muito pouco bonito.
Mas isso não significa que aquelas pessoas não mereçam ganhar mais do que ganham, e que oferecer ordenados pouco acima do salário mínimo, vitaminados por alcavalas que existem para pagar o que muitas vezes são 60 horas de trabalho semanais, não deixa de ser uma prática altamente duvidosa e merecedora de protesto. Sobretudo num sector de lucros bilionários, com uma regulação patética, e cuja liberalização resulta em sinais informativos nas auto-estradas em que os preços das marcas A, B, C e D são iguaizinhos até à milésima parte do euro.
De repente, ver tanta gente à minha volta, muito de esquerda, muito pró-professor, pró-CGTP, pró-PCP, pró-Bloco e pró-Boaventura, defender que estes motoristas são a matilha do sindicalista do Maserati, e que o Governo lhes devia pôr uma trela ainda mais curta, digamos que é daquelas coisas que me começam logo a provocar pontadas na úlcera. A razão é a do costume: uma hipocrisia olímpica.
Está a parecer-me que esta suposta irritação colectiva, na qual o Governo apostou todas as fichas (porventura demasiado cedo), está muito mais ancorada na pinta do Pardal e na irritação provocada pela falta de gasóleo do que na análise fria daquilo que está a acontecer e nos direitos – antes tão valorizados – dos trabalhadores.
Como dizia um sábio motorista de barbas e óculos escuros à televisão, os técnicos dos registos e notariado estão em greve e ninguém se chateia com isso. Discute-se à saciedade que os funcionários públicos só podem trabalhar 35 horas semanais e estamos a criticar gente que chega a trabalhar 14 horas num dia para o país não parar. Somos todos sensibilidade social quando os sacrifícios não nos tocam, mas achamos razoável impor serviços mínimos de 100% numa vasta lista de locais, e de 50% fora dela. E quando faltam motoristas ainda pagamos os salários dos militares que conduzem os camiões da Antram.
Assim de repente, estou a ver demasiados entorses à lógica para ficar repousado. Como todos os portugueses, espero que a greve acabe depressa. Mas se o pessoal só é verdadeiramente de esquerda com gasóleo no depósito, então Marx precisa de reescrever O Capital.
COMENTÁRIOS
A. Miguel Santos, 14:35: Sou de esquerda mas não sou hipócrita. Concordo plenamente com o JMT que as actuais esquerdas (BE e PCP e amigos) estão a portar-se muito mal, considerando que só os "seus" trabalhadores merecem esse nome. Os motoristas pertencem à verdadeira classe trabalhadora, mesmo que possam não ser votantes de esquerda e o seu sindicato não pertença à CGTP. Tentar denegrir estes trabalhadores atacando o Dr. Pardal é muito mesquinho da parte da esquerda, do PS e do Governo, que assim se revela de direita. O pagamento de complementos fora do salário base, prejudica não só os trabalhadores mas todo o Povo Português. Isso, o Governo não quer ver ou finge não ver.
Caetano Brandão: JMT tem razão mais uma vez, estamos no mesmo barco contra a hipocrisia e incoerência.
fernando jose silva,: um governo de esquerda do lado do patronato não tem classificação, parece-me um governo de Salvini. mas estes pelo menos têm o mérito de não enganar ninguém definindo bem o que são, por isso são sérios. Mas mais espantoso é esse mesmo patronato de bilionários e afilhados negociar com uns e isolar os outros perante um governo acomodado à impotência e ao encosto que lhes convém, o do dinheiro... o primeiro, uma espécie de padre em cuecas, dispara para o mesmo lado e deixa de ter razão , num país sério, ia ao ar....como dizia um grevista á televisão, prende o trabalho pago a preços de miséria e solta os gatunos que nos levaram á pré-bancarrota em que se vive....Nas situações difíceis vê-se a civilização e aqui não se vê nada...Governo e justiça um saco esburacado.
Novo Humbo, FS, 15.08.2019: Bingo, JMT. O governo sabe que pode estar a uns milhares de votos da maioria absoluta e por isso tudo fará para que ninguém se chateie até às eleições. Isto é eleitoralismo puro, simples e barato, sendo certo que, como diz JMT, não é bonito usar as eleições para ter benefícios reivindicativos para 2000 e troca o passo.


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