quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Combustíveis, combustões, comburentes


Dois textos que têm a ver, sobretudo, com os comburentes, que alimentam as combustões que a greve aos combustíveis estranhamente – ou talvez não – produz: Um de PAULO TUNHAS, outro de MANUEL VILLAVERDE CABRAL Ambos põem a mão na “queimadura”, e bem assim o comentário ao último, de TIAGO QUEIRÓS. Leiamos e reflictamos. E ardamos, embora sem o combustível adequado. Baste-nos o substituto.

Uma história de hipocrisia /premium
PAULO TUNHAS. OBSERVADOR, 15/8/19
António Costa precisa, quanto mais não seja por causa da dúbia origem do seu poder, de afirmar constantemente a sua autoridade. Daí também ter encenado um espectáculo sem par.
A actual greve dos camionistas coloca pelo menos uma questão interessante: até onde é que se pode lixar democraticamente a vida dos outros? E, ao mesmo tempo, oferece-lhe uma resposta provisória: até esse direito entrar em conflito com os interesses do poder, que podem, ou não, coincidir com os interesses da maioria das pessoas. Se as greves não afectarem o poder e aqueles que directa ou indirectamente o detêm, então, como todos sabemos, constituem um direito indisputável, inteiro e universal, por mais danos que provoquem à vida de um número muito substancial de indivíduos. Se afectarem o poder, adquirem magicamente uma legitimidade apenas relativa e pronta a ser condicionada ao gosto desse mesmo poder.
Ora, a presente greve corre sem dúvida o risco de perturbar gravemente a vida de praticamente a população inteira. Mas, além disso, afectaria estrondosamente, caso fosse bem sucedida, o poder, já que o seu sucesso seria inequivocamente visto como uma perda de autoridade sem conserto possível. É claro que qualquer primeiro-ministro não aceitaria esse risco e teria de reagir energicamente. Mas António Costa não é um primeiro-ministro qualquer. Precisa, quanto mais não seja por causa da dúbia origem do seu poder, da sua “solução governativa”, de afirmar constantemente a sua autoridade. Daí ter visto a célebre “janela de oportunidades” que, antes das eleições, esta greve lhe colocava à frente para formar bem na cabeça dos portugueses a imagem dessa tal autoridade, muito apreciada entre nós, embora não sob todas as formas. E daí também ter encenado um espectáculo sem par. Como se um golpe militar com origem em Aveiras de Cima, comandado por um raivoso general, émulo de Pinochet, Pardal Henriques, procurasse subverter a ordem democrática e restaurar o fascismo. Um espectáculo que os portugueses seguem, quase de mapa na mão, ao sabor das conferências de imprensa nos telejornais, confiantes que Costa não sucumbirá ao destino de Allende.
Toda a gente com dois dedos de testa percebeu, dado o patente exagero da operação, o teatral da coisa. Ora, tudo isto é muito lindo, mas mostra várias coisas estranhas que não assinalam nada de bom. Em primeiro lugar, por que carga d’água não fez o governo tudo para evitar que a situação chegasse onde chegou? Manifestamente não o fez. Basta ouvir o representante da Antram, André Matias Almeida, para perceber que não tem tido conversas minimamente desagradáveis com o governo. E não foi certamente por faltar ao governo apetência para usar o seu poder no domínio dos privados ou por um virginal pudor nestas matérias. Em várias circunstâncias anteriores usou-o e não foi pouco. Quaisquer que sejam as razões, há aqui um indisfarçável falhanço.
Depois, nunca numa greve tão pouca simpatia se sentiu na cobertura jornalística pelas razões dos grevistas. E essas razões não são menos legítimas, longe disso, do que as da maioria das greves que regularmente perturbam a nossa vida. Pelo contrário, elas colocam em evidência o problema bem real do dinheiro que é pago àqueles trabalhadores e não conta para as suas reformas, que resultam declaradamente baixas, porque as empresas (com as suas razões) não querem pagar ainda mais impostos ao Estado. O sábio Dr. Centeno é que explicaria isto bem, se estivesse para aí virado.
Em terceiro lugar, o PC e o Bloco aceitam tudo, com apenas umas ténues simulações de protestação, porque, primeiro, não são greves deles e, portanto, não lhes interessam, e, sobretudo, porque nada farão de consequente, em situação alguma, que os afaste da parte do poder que detêm, e essa parte depende por inteiro do PS, quer dizer, de António Costa. A artificialidade (a pura instrumentalidade) de certas crenças políticas vê-se muito bem quando a necessidade do poder nos obriga a calá-las ou, pelo menos, a transformá-las em sussurros imperceptíveis.
Por fim, o PS goza do direito extravagante de dizer uma coisa e fazer o seu contrário sem que ninguém lhe leve isso a mal. O direito à greve é absoluto e relativo ao mesmo tempo. É uma infelicidade que, por causa do papel decisivo que Mário Soares teve no combate ao PC em 1975, nos esqueçamos que (à semelhança do seu agora quase extinto congénere francês, por exemplo) ele se construiu sobre o sonho de uma democracia mais profunda, real e verdadeira do que a mera “democracia formal”, que teria assim de ser, de uma maneira ou de outra, “ultrapassada”. É essa crença, ainda hoje discernível em muita gente, que lhe dá espaço para toda a espécie de tropelias, imediatamente absolvidas pela superioridade moral que se encontra, por definição, estabelecida. Mais vale enganarmo-nos com a esquerda do que ter razão com a direita.
O que toda a atmosfera que rodeia esta greve revela é a gigantesca hipocrisia que envolve a nossa sociedade. Um governo que exagera propositadamente e da forma mais despudorada a sua acção para estrito benefício eleitoral. A extrema-esquerda que apoia o governo e que se toma de toda a prudência para dizer muito baixinho e com muitas dobrinhas e esquininhas aquilo que em qualquer outra circunstância gritaria desalmadamente. O partido do governo que obedece caninamente ao chefe, porque vê no chefe a condição essencial dos seus interesses. E todos nós, que queremos é que esta chatice acabe o mais depressa possível, independentemente da razão ou da falta dela dos grevistas.
Mas: e se tudo correr diferentemente do que o poder espera – e do que nós, por razões não totalmente coincidentes, esperamos?
Ah, e há o PSD. Há? Certos adeptos da percepção extra-sensorial asseguram que sim.
Teorias da conspiração /premium
OBSERVADOR, 15/8/19
A única coisa que não sabemos ao certo acerca da greve dos camionistas é se o governo a combate a sério, servindo-se para isso da implantação do PS na organização do patronato, ou se finge combatê-la.
Entre a desordem crescente que reina no mundo e as «fake news» que não nos deixam saber ao certo o que se passa, neste momento a “opinião pública” nacional está ameaçada, pelo menos, por três teorias da conspiração ao mesmo tempo: a “greve estival” que nos afecta à pequena escala quotidiana; a de uma «extrema-direita» anónima que ameaçaria o «governo da caranguejola»; até àquela conspiração universal de todos a favor da China comunista e contra os jovens combatentes da liberdade em Hong-Kong.
Esta última é, possivelmente, a mais plausível dessas «teorias», como se deduz dos graves inconvenientes que o Financial Times antevê naquela «típica insurreição juvenil» que se apresta a ser esmagada pela China, segundo o FT, «bastião da globalização» contra o «isolacionismo» de Donald Trump! Deixemos por ora o que se está a passar em Hong Kong, pois haverá inevitavelmente motivos para voltar ao assunto e à profunda incerteza que reina nas relações internacionais a prazo previsível. Acerca da teoria da conspiração imaginária contra o governo português a fim de derrubar o «único governo de esquerda da UE», apenas vale a pena anotar que, segundo o autor da tese, já haveria um «agente em campo», o bizarro líder do Sindicato dos Camionistas de Matérias Perigosas…
Falemos então da greve do combustível, que não só afecta a nossa vida quotidiana como tem a consequência, nesta época do ano, de servir para a catadupa noticiosa da comunicação social esconder, momentaneamente, o facto de a nossa vida ser gravemente afectada há anos pela crise do SNS e pela do sistema público de ensino, para não falar de outros sectores públicos, como os transportes e os incêndios florestais. Pode parecer conspiratório mas não se pode negar que a única coisa que não sabemos ao certo acerca da greve dos camionistas é se o governo a combate a sério, servindo-se para isso da implantação do PS na organização do patronato, ou se finge combatê-la, deixando a greve arrastar-se de tal maneira que a população fique farta e vote
a favor do actual governo nas eleições de Outubro…
Se há conspiração ou não e, se há, quem é o maior conspirador, eis o que há toda a probabilidade de nunca virmos a sabê-lo. Correndo o risco de parecer agir como o defensor dos interesses do patronato, depois de muita hesitação e de muito palavreado, o governo assumiu politicamente a defesa dos consumidores e dos veraneantes, assim como do pretenso bom funcionamento dos serviços públicos, com vista a ser recompensado daqui a pouco menos de dois meses com uma vitória eleitoral que poria o PS à vontade para fazer o que lhe desse na gana! Com ou sem conspiração, é certo que haverá quem apreciará a actuação do governo e recompensará por isso o partido, sobretudo aqueles que já tinham uma vaga intenção de votar PS ou abster-se, como irá acontecer em grande escala.
O interessante, todavia, nestas teorias conspiratórias que todos fazemos, cada um à sua escala, é que alguns eleitores daqueles que não gostaram de ver o governo e os próprios partidos da «caranguejola» virar-se contra os trabalhadores e apoiar os patrões, não hesitando em limitar o direito de greve, pensarão que o governo e os seus acólitos se portaram mal, decidindo fugir para outras siglas partidárias ou para a abstenção com uma só ideia na cabeça: «Eles são todos iguais»…
Mais provavelmente ainda, muitos eleitores dos que já não tencionavam votar nos partidos da actual «maioria», pensando porventura abster-se, interpretarão o apoio do governo ao patronato como mais um «truque» para nos enganar e optarão por votar contra o governo, dificultando a vitória do PS e impedindo, porventura, a maioria absoluta dos deputados que o partido ambiciona a fim de não ter de partilhar o poder com os «caranguejos». Ou seja, a mesma táctica do PS, seja ela qual for, produzirá três respostas diferentes da parte do eleitorado que poderão eventualmente anular-se entre elas…
As teorias da conspiração são inevitáveis neste género de situações, sobretudo numa época do ano em que os «media» não têm nada para dizer e repetem hora a hora os mesmos dados incertos, que alimentarão as especulações assim como influenciarão as decisões de voto ou de abstenção até às eleições. É conhecido dos especialistas de sondagens eleitorais que uma percentagem muito significativa dos eleitores só decide por quem votar ou abster-se nas últimas semanas das campanhas e nem sempre diz a «verdade» aos inquiridores… Sei por observação que, se houvesse sondagens em 1987, não é certo que Cavaco Silva tivesse tido a maioria absoluta; inversamente, há um estudo pós-eleitoral de 2002 segundo o qual, «verdade», o vencedor seria outro!
COMENTÁRIO:
Tiago Queirós: O chamado Corporativismo à Socialista. Se o PS cravou, ou pretende cravar, fundo os seus tentáculos no seio do patronato, eu não sei; mas sei que o marmanjo do representante da ANTRAM foi convidado pela SIC (que está para o PS e para o Bloco tal como a RTP estava para o Estado Novo) para efeitos propagandísticos e, não fosse uma peça do Observador, provavelmente teríamos todos ficado no escuro acerca dos seus verdadeiros desígnios. Tratou-se a requisição civil de uma isolada manobra de protecção de um camarada face a possíveis sublevações laborais, ou encontrar-se-á de facto o Partido Socialista em vias de estender a sua influência a, rigorosamente, tudo aquilo que mexe? Não seria de rejeitar a segunda opção. O contexto laboral é, de facto, óptimo para a promoção de propaganda, sobretudo porque coloca do lado dos patrões o trunfo do possível despedimento. Em qualquer caso, ficamos cada vez mais esclarecidos acerca dos motivos que conduziram Santos Silva a indagar acerca da necessidade de empreender interpretações literais da Lei, no que particularmente diz respeito a práticas como o nepotismo.


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