Dois textos que têm a ver, sobretudo,
com os comburentes, que alimentam as combustões que a greve aos combustíveis
estranhamente – ou talvez não – produz: Um de PAULO TUNHAS, outro de MANUEL VILLAVERDE CABRAL
Ambos
põem a mão na “queimadura”, e bem assim o comentário ao último, de TIAGO QUEIRÓS. Leiamos e reflictamos. E
ardamos, embora sem o combustível adequado. Baste-nos o substituto.
I: COMBUSTÍVEL
Uma história de hipocrisia /premium
PAULO TUNHAS. OBSERVADOR,
15/8/19
António
Costa precisa,
quanto mais não seja por causa da dúbia origem do seu poder, de afirmar
constantemente a sua autoridade. Daí também ter encenado um espectáculo sem
par.
A
actual greve dos camionistas coloca pelo menos uma questão interessante: até
onde é que se pode lixar democraticamente a vida dos outros? E, ao mesmo tempo,
oferece-lhe uma resposta provisória: até esse direito entrar em conflito com os
interesses do poder, que podem, ou não, coincidir com os interesses da maioria
das pessoas. Se as
greves não afectarem o poder e aqueles que directa ou indirectamente o detêm,
então, como todos sabemos, constituem um direito indisputável, inteiro e
universal, por mais danos que provoquem à vida de um número muito substancial
de indivíduos. Se afectarem o poder, adquirem magicamente uma
legitimidade apenas relativa e pronta a ser condicionada ao gosto desse mesmo
poder.
Ora, a presente greve corre sem
dúvida o risco de perturbar gravemente a vida de praticamente a população
inteira. Mas, além disso, afectaria estrondosamente, caso fosse bem sucedida, o
poder, já que o seu sucesso seria inequivocamente visto como uma perda de
autoridade sem conserto possível. É claro que qualquer primeiro-ministro não
aceitaria esse risco e teria de reagir energicamente. Mas António Costa não é
um primeiro-ministro qualquer. Precisa, quanto mais não seja por causa da dúbia
origem do seu poder, da sua “solução governativa”, de afirmar constantemente a
sua autoridade. Daí ter visto a célebre “janela de oportunidades” que, antes
das eleições, esta greve lhe colocava à frente para formar bem na cabeça dos
portugueses a imagem dessa tal autoridade, muito apreciada entre nós, embora
não sob todas as formas. E daí também ter encenado um espectáculo sem par. Como
se um golpe militar com origem em Aveiras de Cima, comandado por um raivoso
general, émulo de Pinochet, Pardal Henriques, procurasse subverter a ordem
democrática e restaurar o fascismo. Um espectáculo que os portugueses seguem,
quase de mapa na mão, ao sabor das conferências de imprensa nos telejornais,
confiantes que Costa não sucumbirá ao destino de Allende.
Toda
a gente com dois dedos de testa percebeu, dado o patente exagero da operação, o
teatral da coisa. Ora, tudo isto é muito lindo, mas mostra várias coisas
estranhas que não assinalam nada de bom. Em primeiro lugar, por que carga
d’água não fez o governo tudo para evitar que a situação chegasse onde chegou?
Manifestamente não o fez. Basta ouvir o representante da Antram, André Matias
Almeida, para perceber que não tem tido conversas minimamente desagradáveis com
o governo. E não foi certamente por faltar ao governo apetência para usar o seu
poder no domínio dos privados ou por um virginal pudor nestas matérias. Em
várias circunstâncias anteriores usou-o e não foi pouco. Quaisquer que sejam as
razões, há aqui um indisfarçável falhanço.
Depois,
nunca numa greve tão pouca simpatia se sentiu na cobertura jornalística pelas
razões dos grevistas. E essas
razões não são menos legítimas, longe disso, do que as da maioria das greves
que regularmente perturbam a nossa vida. Pelo contrário, elas colocam em
evidência o problema bem real do dinheiro que é pago àqueles trabalhadores e
não conta para as suas reformas, que resultam declaradamente baixas, porque
as empresas (com as suas razões) não querem pagar ainda mais impostos ao
Estado. O sábio Dr. Centeno é que explicaria isto bem, se estivesse para aí
virado.
Em terceiro lugar, o PC e o Bloco
aceitam tudo, com apenas umas ténues simulações de protestação, porque,
primeiro, não são greves deles e, portanto, não lhes interessam, e, sobretudo,
porque nada farão de consequente, em situação alguma, que os afaste da parte do
poder que detêm, e essa parte depende por inteiro do PS, quer dizer, de António
Costa. A artificialidade (a pura instrumentalidade) de certas crenças políticas
vê-se muito bem quando a necessidade do poder nos obriga a calá-las ou, pelo
menos, a transformá-las em sussurros imperceptíveis.
Por
fim, o PS goza do direito extravagante de dizer uma coisa e fazer o seu
contrário sem que ninguém lhe leve isso a mal. O direito à greve é absoluto e relativo ao mesmo
tempo. É uma infelicidade que, por causa do papel decisivo que Mário Soares
teve no combate ao PC em 1975, nos esqueçamos que (à semelhança do seu agora
quase extinto congénere francês, por exemplo) ele se construiu sobre o sonho de
uma democracia mais profunda, real e verdadeira do que a mera “democracia
formal”, que teria assim de ser, de uma maneira ou de outra, “ultrapassada”.
É essa crença, ainda hoje discernível em muita gente, que lhe dá espaço para
toda a espécie de tropelias, imediatamente absolvidas pela superioridade moral
que se encontra, por definição, estabelecida. Mais vale enganarmo-nos com a
esquerda do que ter razão com a direita.
O
que toda a atmosfera que rodeia esta greve revela é a gigantesca hipocrisia que
envolve a nossa sociedade. Um governo que exagera propositadamente e da forma
mais despudorada a sua acção para estrito benefício eleitoral. A extrema-esquerda
que apoia o governo e que se toma de toda a prudência para dizer muito baixinho
e com muitas dobrinhas e esquininhas aquilo que em qualquer outra circunstância
gritaria desalmadamente. O partido do governo que obedece caninamente ao chefe,
porque vê no chefe a condição essencial dos seus interesses. E todos nós, que
queremos é que esta chatice acabe o mais depressa possível, independentemente
da razão ou da falta dela dos grevistas.
Mas: e se tudo correr diferentemente
do que o poder espera – e do que nós, por razões não totalmente coincidentes,
esperamos?
Ah,
e há o PSD. Há? Certos adeptos da percepção extra-sensorial asseguram que sim.
II - COMBUSTÍVEL
Teorias da conspiração /premium
OBSERVADOR, 15/8/19
A única coisa que não sabemos ao
certo acerca da greve dos camionistas é se o governo a combate a sério,
servindo-se para isso da implantação do PS na organização do patronato, ou se
finge combatê-la.
Entre
a desordem crescente que reina no mundo e as «fake news» que não nos deixam
saber ao certo o que se passa, neste momento a “opinião pública” nacional
está ameaçada, pelo menos, por três teorias da conspiração ao mesmo tempo:
a “greve estival”
que nos afecta à pequena escala quotidiana; a de uma «extrema-direita» anónima que
ameaçaria o «governo da caranguejola»; até àquela
conspiração universal de todos a favor da China comunista e contra os jovens
combatentes da liberdade em Hong-Kong.
Esta
última é, possivelmente, a mais plausível dessas «teorias», como se deduz dos
graves inconvenientes que o Financial Times antevê naquela «típica insurreição
juvenil» que se apresta a ser esmagada pela China, segundo o FT, «bastião da
globalização» contra o «isolacionismo» de Donald Trump! Deixemos por ora o
que se está a passar em Hong Kong, pois haverá inevitavelmente motivos para
voltar ao assunto e à profunda incerteza que reina nas relações internacionais
a prazo previsível. Acerca da teoria da conspiração imaginária contra o governo
português a fim de derrubar o «único governo de esquerda da UE», apenas vale a
pena anotar que, segundo o autor da tese, já haveria um «agente em campo», o
bizarro líder do Sindicato dos Camionistas de Matérias Perigosas…
Falemos
então da greve do combustível, que não só afecta a nossa vida quotidiana como
tem a consequência, nesta época do ano, de servir para a catadupa noticiosa da
comunicação social esconder, momentaneamente, o facto de a nossa vida ser
gravemente afectada há anos pela crise do SNS e pela do sistema público de
ensino, para não falar de outros sectores públicos, como os transportes e os
incêndios florestais. Pode parecer conspiratório mas não se pode negar que a
única coisa que não sabemos ao certo acerca da greve dos camionistas é se o
governo a combate a sério, servindo-se para isso da implantação do PS na
organização do patronato, ou se finge combatê-la, deixando a greve arrastar-se
de tal maneira que a população fique farta e vote
a favor do actual governo nas eleições de Outubro…
a favor do actual governo nas eleições de Outubro…
Se
há conspiração ou não e, se há, quem é o maior conspirador, eis o que há toda a
probabilidade de nunca virmos a sabê-lo. Correndo o risco de parecer agir
como o defensor dos interesses do patronato, depois de muita hesitação e de
muito palavreado, o governo assumiu politicamente a defesa dos consumidores e
dos veraneantes, assim como do pretenso bom funcionamento dos serviços
públicos, com vista a ser recompensado daqui a pouco menos de dois meses com
uma vitória eleitoral que poria o PS à vontade para fazer o que lhe desse na
gana! Com ou sem conspiração, é certo que haverá quem apreciará a actuação
do governo e recompensará por isso o partido, sobretudo aqueles que já tinham
uma vaga intenção de votar PS ou abster-se, como irá acontecer em grande
escala.
O
interessante, todavia, nestas teorias conspiratórias que todos fazemos, cada um
à sua escala, é que alguns eleitores daqueles que não gostaram de ver o governo
e os próprios partidos da «caranguejola» virar-se contra os trabalhadores e
apoiar os patrões, não hesitando em limitar o direito de greve, pensarão que o
governo e os seus acólitos se portaram mal, decidindo fugir para outras siglas
partidárias ou para a abstenção com uma só ideia na cabeça: «Eles são todos
iguais»…
Mais
provavelmente ainda, muitos eleitores dos que já não tencionavam votar nos
partidos da actual «maioria», pensando porventura abster-se, interpretarão o
apoio do governo ao patronato como mais um «truque» para nos enganar e optarão
por votar contra o governo, dificultando a vitória do PS e impedindo,
porventura, a maioria absoluta dos deputados que o partido ambiciona a fim de
não ter de partilhar o poder com os «caranguejos». Ou seja, a mesma táctica do
PS, seja ela qual for, produzirá três respostas diferentes da parte do
eleitorado que poderão eventualmente anular-se entre elas…
As
teorias da conspiração são inevitáveis neste género de situações, sobretudo
numa época do ano em que os «media» não têm nada para dizer e repetem hora a
hora os mesmos dados incertos, que alimentarão as especulações assim como
influenciarão as decisões de voto ou de abstenção até às eleições. É
conhecido dos especialistas de sondagens eleitorais que uma percentagem
muito significativa dos eleitores só decide por quem votar ou abster-se nas
últimas semanas das campanhas e nem sempre diz a «verdade» aos inquiridores…
Sei por observação que, se houvesse sondagens em 1987, não é certo que Cavaco
Silva tivesse tido a maioria absoluta; inversamente, há um estudo pós-eleitoral
de 2002 segundo o qual, «verdade», o vencedor seria outro!
COMENTÁRIO:
Tiago Queirós: O chamado Corporativismo à Socialista. Se o PS
cravou, ou pretende cravar, fundo os seus tentáculos no seio do patronato, eu
não sei; mas sei que o marmanjo do representante da ANTRAM foi convidado pela
SIC (que está para o PS e para o Bloco tal como a RTP estava para o Estado
Novo) para efeitos propagandísticos e, não fosse uma peça do Observador,
provavelmente teríamos todos ficado no escuro acerca dos seus verdadeiros
desígnios. Tratou-se a requisição civil de uma isolada manobra de
protecção de um camarada face a possíveis sublevações laborais, ou
encontrar-se-á de facto o Partido Socialista em vias de estender a sua
influência a, rigorosamente, tudo aquilo que mexe? Não seria de rejeitar
a segunda opção. O contexto laboral é, de facto, óptimo para a promoção de
propaganda, sobretudo porque coloca do lado dos patrões o trunfo do possível
despedimento. Em qualquer caso, ficamos cada vez mais esclarecidos acerca dos
motivos que conduziram Santos Silva a indagar acerca da necessidade de
empreender interpretações literais da Lei, no que particularmente diz respeito
a práticas como o nepotismo.
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