Um livro pequeno, uma curta novela, que
deu escândalo, se bem me lembro, aquando da sua publicação, nos idos de 50, andava
eu em Coimbra, falava-se muito de precocidade, a respeito de F. Sagan, tal como se falou também então da
autora de “Sibila”, um génio
por cá, mas mais “encorpado”. O certo é que só o comprei mais tarde, mas fiquei
logo presa do encanto de uma prosa explorando levemente a temática
existencialista, em torno de duas figuras – pai e filha – gozando
superficialmente os prazeres da existência, ricos, saudáveis, livres de
preconceito e de afeições duradoiras. Excepto, é claro, a que une pai e filha,
esta órfã de mãe, e avessa a programas de vida de maior responsabilidade, como
a que queria incutir-lhe uma amiga da mãe, Anne, também convidada do pai, para
as férias na “Côte d’Azur”, daquele ano fatídico dos dezassete anos de Cécile.
Uma trama, verdadeiramente maligna, engendrada por esta, levam Anne ao
desespero do ciúme e do espanto, e à sua fuga e morte por desastre. A vida do
pai e da filha retomarão a ligeireza anterior, sem preconceito, nem obrigação, mas
impregnada, agora, na jovem de 17 anos, de uma tristeza de má consciência. É
este o livro sobre que se debruça Pedro
Mexia, com a qualidade crítica de sempre, na mesma revista E, de que
copiei o texto de CFA. Não resisto
a transcrever dela, igualmente, a perfeita análise dessa obra perfeita, na
precocidade literária da sua autora tão jovem então, e que permaneceria para
mim uma escritora de elegância e requinte que sempre me prendeu, pelos espaços
físicos e morais que criou, como escritora, desarticulados do vulgar, embora não do sofrimento
e do Mal:
UM VERÃO ETERNO
PEDRO MEXIA
E, 3/8/19
EM 1954, “BOM DIA, TRISTEZA”, ALCANÇOU
ENORMÍSSIMO SUCESSO POR CAUSA DA FRANQUEZA DE SAGAN E DAS MAQUINAÇÕES DE
CÉCILE.
Apercebi-me
de que nunca tinha lido “Bom Dia, Tristeza”, tirei o romance da estante e, por
assim dizer, inaugurei o Verão. Lembro-me mal da adaptação cinematográfica de
Otto Preminger, ficou-me apenas a imagem de uma Jean Seberg agridoce e de uma
elegância trouble, mas há dias encontrei uma referência hostil de Sartre a
Sagan, e achei graça, até porque ela citava Sartre, e em especial o romance “L’Âge
de Raison”, como uma influência decisiva. Talvez tivesse razão o crítico Gaëtan
Picon quando, mordaz, chamou a Françoise Saganuma existencialista para leitores
do “Paris Match”.
“Bom
Dia, Tristeza” saiu em 1954. A autora tinha apenas 18 anos e usava um
pseudónimo proustiano (a Princesa Sagan). O romance, breve, comprazia-se em
ambientes de decadência moral, lassidão hedonista, narcisismo desencantado. Era
um retrato, em esboço, da alta burguesia francesa do pós guerra, fútil,
desenvolta, libertina. E notavam-se afinidades com a geração dos “hussardos”,
os anar-co-direitistas anti-Sartre, gente dada ao prazer e ao desaforo. Mas o
romance também lembra as ousadias de Colette e a tristeza faustosa de
Fitzgerald, embora com menos intensidade poética e um sentido do trágico
bastante débil.
Cécile
tem 17 anos, estudou num colégio de freiras, é órfã de mãe e vive com o pai. A
acção de “Bom dia, Tristeza” (o título vem de um verso de Éluard”)
passa-se no Verão, mas é como se Cécile e o pai habitassem um Verão eterno. Bem
parecidos, endinheirados e levianos, pai e filha cultivam, com uma cumplicidade
quase incestuosa, uma “admiração apaixonada” um pelo outro, bem como um notável
gosto pela felicidade, que lhes é facilmente acessível. Inconstantes, entusiasmam-se
com a excitação e a intensidade, e temem o tédio e a tranquilidade. Os seus
dias e noites na Riviera passam-se em movimento seguido de stasis. Boémia, boîtes, veleiros, descapotáveis,
festas, casinos, multidões e depois sonolência, embriaguez, languidez,
atordoamento, descontracção, suavidade.
Em
vez de estudar Pascal e Bergson, como lhe competia, a adolescente vive num
mundo sem inquietações nem “angústias de introspecção”. Ou então é uma
introspecção a fazer de conta, uma cabeça no ar alegre a dar-se ares, uma
inteligência viva a tentar sem jeito imitar a maturidade. A verdade é que a
única filosofia que Cécile aceita é a filosofia das superfícies: “Sem
partilhar a aversão que o meu pai demonstrava pela fealdade, que muitas vezes
nos levava a conviver com gente estúpida, experimentava, junto de pessoas
destituídas de atractivos físicos, uma espécie de constrangimento, de ausência,
e a sua resignação perante a falta de encanto afigurava-se-me como que uma
enfermidade indecente. Na verdade, que procurávamos nós senão agradar?”
(tradução Isabel St. Aubyn, edição “A Casa dos Ceifeiros”).
O
pai de Cécile é um bon vivant a
quem não interessam a felicidade, a gravidade e o compromisso. E ela orgulha-se
disso: “eu e ele éramos da mesma raça”. Cada um a seu modo, seguem o mandamento dos jovens, que é também o
mandamento do Verão: “agradar”. E vivem o amor como uma “sucessão de sensações
independentes umas das outras”. ainda que isso conduza talvez a um “cinismo
desiludido”. E não deixa de ser insólito que um romance recebido, à época, como
“escandaloso”, chegasse a uma velha conclusão conservadora: que os estímulos
fugazes conduzem à decepção e à amargura.
Em
1954, “Bom Dia, Tristeza” alcançou enormíssimo sucesso por causa da franqueza
de Sagan e das maquinações de Cécile. Lido hoje, não sei bem a que
aplicar a sua insistente má consciência. À burguesia de 1954? À família
liberal? À leviandade erótica? Às ilusões da juventude? Ao Verão e ao que ele
nos faz?
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