Um provérbio que, parecendo nada ter a
ver com o assunto da crónica de JMT, responde em parte a um comentador, mais
versado nas grandes negociatas. Mas as grandes negociatas resultam destes
pequenos truques de que trata JMT, que estão
na base da trafulhice, como músculo da nossa «ponderação-mor» de povo “esperto que nem um alho”.
OPINIÃO:
Bonés urgentes e imperiosas esferográficas
A contratação pública portuguesa usa um
cinto de castidade bastante apertado — só que toda a gente tem a chave. O
resultado é duplamente desastroso.
JOÃO MIGUEL TAVARES, PÚBLICO, 6 de Agosto de 2019
A
notícia vinha no Expresso deste fim-de-semana: no âmbito do projecto Aldeia
Segura, Pessoas Seguras — o tal programa de sensibilização que produziu golas de
incêndio que convém não utilizar próximo de incêndios —, foram
gastos, em 2018, cerca de 23 mil euros em 50 mil esferográficas, 30 mil lápis e
15 mil bonés. A história não está no valor dos bonés, dos lápis e das
esferográficas, porque 25 cêntimos por item não é grande negócio para ninguém,
mas sim na argumentação utilizada para aquilo que acabou por se
traduzir em mais um ajuste directo por valores que não são
permitidos em ajustes directos.
Eu
explico melhor. A lei prevê um máximo de 20 mil euros como montante
admissível para a aquisição por ajuste directo de “bens móveis” (como era o
caso). Ora, 23 mil é maior do que 20 mil. Como ultrapassar este problema?
Utilizando uma figura de excepção prevista no Código dos Contratos Públicos,
chamada “urgência imperiosa”. No seu
artigo 24.º admite-se, de facto, a escolha do ajuste directo “na medida do
estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de
acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante”. Reparem: o contrato
em causa é, segundo o Expresso, de Agosto de 2018. Qual terá sido a
terrível e imperiosa urgência, resultante de acontecimentos absolutamente
imprevisíveis, que terá levado à aquisição, em plena época de fogos, não de cem mangueiras nem de dez autotanques,
mas de uma centena de milhares de esferográficas, de lápis e de bonés?
Eis
mais um belíssimo exemplo de uma das grandes especialidades nacionais: o
aproveitamento escrupuloso da letra da lei para contornar o espírito da lei.
A que acresce uma segunda camada problemática, que é esta: isso nem sempre é
feito com más intenções. Muitas vezes, a burocracia toma dimensões impensáveis
e ingeríveis e, para cumprir com o devido rigor todos os procedimentos
legalmente exigíveis, ficar-se-ia dois anos à espera do resultado de um
concurso. À boa portuguesa, para fazer com que as coisas andem mais depressa,
dá-se um jeitinho aqui e outro ali, divide-se a despesa em vários itens,
mete-se na alínea dos alhos aquilo que manifestamente são bugalhos, inventam-se
urgências imperiosas, e assim vai-se tratando a coisa pública em clima de
informalidade — ou melhor, de formalidade cuidadosamente manipulada.
A contratação pública portuguesa usa
um cinto de castidade bastante apertado —
só que toda a gente tem a chave. O resultado é duplamente desastroso. Não se
consegue que as decisões sejam tomadas de forma rápida e eficaz; nem se
consegue que sejam tomadas com a honestidade e a lisura que a lei reclama. É o
pior dos dois mundos. Toda a gente sabe isto. Toda a gente fala disto nos
bastidores. E toda a gente cruza os braços como se não houvesse alternativa. Pergunto-me
quantos partidos irão apresentar nos seus programas eleitorais propostas
efectivas para enfrentar estes dois cancros: 1) o cancro do ajuste directo
enquanto transferência de dinheiro para pagar favores aos amigos; 2) o cancro
do ajuste directo enquanto instrumento para ultrapassar o peso excessivo da
burocracia, tanto na Administração Central como nas autarquias. Entre
ajustes directos, consultas prévias simuladas e todo o tipo de tortura ao
espírito da lei, a utilização do dinheiro dos contribuintes continua envolta
numa nuvem de opacidade, que não parece perturbar quem manda neste país. Os
políticos querem ser sérios? Óptimo. E que tal começarem por aqui?
COMENTÁRIOS
P Galvao, Lisboa 06.08.2019: No tempo da coelhada conviveu bem com a venda
ao desbarato das empresas públicas, e clamou pela educação e saúde privadas.
Ainda teceu os maiores elogios para a solução encontrada para o buraco do BES,
mas agora incomoda-te com 23 mil euros. Ainda bem que temos oráculos destes.
OldVic, Música do dia:
"Verbenita" (Savia Andina) Liberdade para a Venezuela!: A liquidação do BES era uma alternativa à
resolução, mas podia atingir mais de 20000 milhões de euros a pagar pelo
contribuinte. Esse aspecto nunca aparece nos comentários sobre a questão;
porque será?
JORGE COSTA, Terras do Norte... 06.08.2019: Excelente artigo JMT!! Assim vai o
(des)Governo neste Pais.... Vergonha!!...
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