segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Não, não tem a ver com as pregações de São Tomás


Como pessoa de Bem que aparenta ser, António Barreto trata do tema da corrupção integrada em regimes políticos, tentando descobrir qual o regime que melhor lhe dá cobertura. De boas intenções está o Inferno cheio, e esse facto dá azo a que se lhe apontem possíveis desígnios de participação política saneadora desses desmandos. Mas tais intenções moralizantes tornam-se cada vez mais tarefas incompatíveis com a via do materialismo e da liberdade por que as sociedades actuais se vão encaminhando, mesmo que continuem a aparecer destes zoilos de incompatibilidades distintas
Corrupção, ditadura e democracia
Uma das grandes armas do justicialismo latino-americano era (e é…) a sua veia anti-corrupção. Conquistado o poder, deu no que deu.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 11 de Agosto de 2019
Nunca se saberá com certeza indiscutível. Há mais corrupção com a ditadura ou com a democracia? E, no caso da ditadura, há mais corrupção com o fascismo, com o nazismo ou com o comunismo? As respostas podem ser traiçoeiras. Muitos autores contemporâneos, com algumas razões para isso, sugerem frequentemente que a democracia é mais corrupta. Por outras palavras, um regime político democrático implica também a democratização da corrupção. E do crime em geral. Como é imaginável, há evidência para confirmar isso. E o seu contrário. Tudo depende das definições de democracia, de corrupção e de ditadura.
Uma coisa é segura: os regimes ditatoriais e ainda mais os totalitários não podem permitir a iniciativa individual e a ambição pessoal, a não ser que se exprimam através do Estado e do partido, com as regras estabelecidas por ambos. E correndo evidentemente os respectivos riscos. Ora, a corrupção é quase sempre uma forma especial de ambição e de iniciativa. É certamente um método de enriquecimento, outro fenómeno mal-amado pelos partidos ditatoriais, a não ser, claro, que se trate dos senhores dos respectivos partidos, governos e estados. Por isso, as ditaduras e os partidos autoritários dão sinais de que não admitem a corrupção.
Não é difícil imaginar que, na Alemanha nazi, na Itália fascista, na União Soviética comunista e na China maoista havia pouca corrupção, tal como a entendemos. Na verdade, as matilhas políticas que tinham capturado o Estado definiram regras simples: o que é nosso ou o que nós fazemos é a lei; o que os outros fazem é ilegal e subversivo. Em ditaduras menos ferozes como, em seu tempo, a portuguesa, a espanhola, a brasileira ou a argentina, a corrupção independente tinha um pouco mais de liberdade, em paralelo com a legalizada pelos governos. Mas, por exemplo, fenómenos do género “porta giratória” entre a política e a economia eram frequentes em ditadura e nem sequer muito condenados. Ora, são hoje, em democracia, condenados, apesar de não eficazmente combatidos. Há mesmo, infelizmente, um relativo grau de tolerância, equivalente ao que se verifica com a permissividade do emprego familiar dos políticos, vulgo nepotismo democrático.
Na democracia contemporânea, fértil em corrupção e nepotismo, tem-se assistido, e bem, ao crescimento dos sentimentos críticos desses venenos das liberdades. A imprensa mais séria, os partidos da oposição a qualquer governo, os sindicatos mais austeros, as empresas mais honestas, os críticos da desigualdade social, algumas igrejas e bastantes pessoas têm vindo a revelar justo furor a propósito da corrupção e da ineficácia dos alegados combates contra essa peste. Mas há também uma grande onda contra a corrupção que parece não estabelecer diferenças nítidas entre democracia e venalidade política.
É uma espécie de Catch 22. Nesse famoso livro de J. Heller, os pilotos americanos que faziam a guerra no Sul da Europa entravam muitas vezes em stress, verdadeiro ou fingido. Longos dias de guerra e bombardeamento, assim como elevado número de feridos e mortos, poderiam ter efeitos psicológicos nocivos. Como em todas as guerras, muitos estavam com vontade que aquilo acabasse depressa. Nos regulamentos, havia uma cláusula que permitia que um piloto que, por motivos de stress ou desequilíbrio moral, mostrasse incapacidade psicológica para prosseguir a guerra, podia requerer a dispensa e o regresso a casa ou a afectação a outros serviços mais “brandos”. Em poucas palavras: quem, por efeito da violência da guerra, se sentisse traumatizado, poderia requerer a dispensa. Todavia, se a Junta Médica detectasse que o soldado estava sob stress, concluía que ele se encontrava em boa saúde e por conseguinte tinha de prosseguir a guerra. Noutras palavras, só os afectados gravemente é que estavam em boas condições psicológicas, preparados para matar e bombardear. Quem fazia a guerra e não se sentia tocado psicologicamente não deveria estar com toda a sua saúde. Quem ficasse afectado pelas circunstâncias estava em boa saúde e reagia previsivelmente, com normalidade, o que quer dizer que estava apto para o serviço!
Rosnar contra a corrupção é bem. Denunciar a corrupção dos adversários é bem. Acusar de corrupção os inimigos, os ricos, os altos funcionários ou outros, é bem. Também é bem denunciar os partidos que admitem e cultivam a corrupção. Mas, lutar contra a corrupção é também justicialismo, populismo e espírito antidemocrático! Hitler, Salazar, Péron, Mussolini, Estaline, Mao, Chávez, Maduro e outros também lutaram contra a corrupção e deu o que deu! Trump, Orbán, Salvini, Le Pen e Bolsonaro também já anunciaram que iam lutar contra a corrupção…
A luta contra a corrupção é defendida por muita gente. Sobretudo por quem está fora da política e quer entrar por essa via: o primeiro objectivo consiste em varrer quem lá está, ideia que tem grandes potencialidades de demagogia. A corrupção parece logo ser a mais popular das bandeiras! Quem se quer ver livre dos políticos, dos partidos e dos sistemas democráticos, arvora-se em defensor da democracia pela luta contra a corrupção. Uma das grandes armas do justicialismo latino-americano era (e é…) a sua veia anti-corrupção. Conquistado o poder, deu no que deu. É este o “catch 22”: a corrupção liquida a democracia, a luta contra a corrupção também!
Em Portugal, os últimos anos assistiram a um aparente ou real aumento da corrupção e do nepotismo. Real, se corresponde à verdade dos factos. Aparente, se resulta de superior visibilidade. Mais graves ainda são os fenómenos de assalto ao Estado e de puro banditismo financeiro que se instalaram e de que a justiça portuguesa não parece capaz de tratar a tempo. Porque não sabe, porque não pode ou porque não quer. Por outro lado, o legislador, ao traduzir os interesses partidários, também não parece muito interessado em se ocupar do assunto com eficácia.
Verdade é que prefiro uma democracia corrupta a uma ditadura virtuosa! Sei que, nesta última, não há qualquer esperança. É verdade que, no primeiro caso, a corrupção pode destruir as liberdades. Mas sei que há esperança de evitar que tal aconteça. E sei que as liberdades e a democracia poderão, sublinho e repito, poderão encontrar formas de combate à corrupção que não sejam apenas novas formas de nepotismo e favoritismo de partido.
Certo e seguro é que a corrupção é malvista por toda a gente. Menos pelos corruptos. E pelos invejosos. Que são muitos.
COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler, 11.08.2019: Onde houver homens haverá corrupção, pedofilia, violência doméstica e outras pragas. Em ditadura, os atentados à moralidade da polis são abafados pelas autoridades e assimilados pelo povo; em democracia, os mesmos pecados serão denunciados publicamente e os seus autores responsabilizados pelos tribunais. A sociedade portuguesa tem revelado, sobretudo na última década, uma nova sensibilidade para o reconhecimento e eliminação destas pragas. Porém, no que diz respeito à corrupção, o Sr. Barreto vem nos dizer, mais uma vez, que a Justiça portuguesa é incompetente porque não é capaz de a tratar a tempo “porque não sabe, porque não pode, ou porque não quer”. Ou seja, pretende continuar a rentabilizar o tema da corrupção para atingir os fins já confessados.
Jose, 11.08.2019: Texto 100% ao lado. A corrupção tem tudo a ver com o carácter das pessoas corruptas e tem zero a ver com o regime político ser monárquico ou republicano, absolutista ou liberal, presidencialista, parlamentarista, teocráticos... O modo como o corrupto tira vantagem, enriquece indevidamente é que tem de ser adequado ao regime e seu funcionamento. O corrupto existe em todo o mundo e adapta-se ao meio para sobreviver corrupto e o mais rico possível. O corrupto está sempre como piolho em costura, como é de sua natureza. Em geral a bandeira da corrupção é usada para desviar o debate do essencial, esconder os fracassos das políticas e por todos à procura de gambuzinos. Em Portugal a aristocracia dos capitalistas, políticos, tecnocratas está indiciada, arguida, acusada, julgada e na cadeia.
Essa nódoa no topo da pirâmide social emergiu como consequência da crise cíclica do capitalismo de 2008. Para disfarçar a nódoa foi desfraldada a bandeira da corrupção e com ela enganar, de novo, a base da pirâmide social. António Barreto dá aqui uma ajudinha subliminar. Nestes casos têm de ser uns para os outros, incluindo os que são sacrificadas como "bodes expiatórios". E a crise que se arrasta... Lá terá de endurecer o regime seja ele qual for, para que tudo fique na mesma como convém aos instalados corruptos e não corruptos.
fayad fayad, 11.08.2019: Logo abaixo cita Bolsonaro. Vou te responder. Em Portugal desde uns 300 anos, os mesmos estão a ocupar os melhores cargos públicos e a terem os melhores negócios com o Estado. As famílias casam entre si, os banqueiros com banqueiros, procuradores ,advogados e reitores são todos da mesma casta a dividirem entre eles o que de melhor a vida oferece. Parentes, esposas, filhos, tios, sobrinhos 300 anos do mesmos e ninguém tem a menor ideia de onde poderá ir dar. O sistema partidário não permite nenhuma possível alteração e até os terrenos do cemitério são objecto de privilégios. Deixe os outros com os problemas e faça uma reflexão.
paula.o.rego, 11.08.2019: Espantosa afirmação, de especial irresponsabilidade pelo momento mundial que vivemos, e mais vinda de quem vem. António Barreto ao elaborar desta forma nos media, parece não entender que dá eco, ao fundamento discursivo da onda populista/ fascista a que, ainda incrédulos, assistimos. Numa democracia operante, é suposto existirem instituições que supervisionam o funcionamento das actividades do homem em sociedade, nos seus mais diversos domínios, institutos de supervisão a operarem efectivamente, são o garante na luta contra a corrupção. Esses institutos estão a operar bem? Não, não estão! Há um longo caminho a percorrer nesta matéria? Sim há, mas só em democracia é possível prossegui- lo, porque na verdade só em democracia ele é um valor efectivamente desejado. O apelo populista, à luta contra a corrupção é o engodo para ludibriar a crescente massa de transparentes e esquecidos, que no desespero, elegerão corruptos de excelência. A autenticidade de um discurso anti- corrupção, é incompatível com as pretensões dum regime ditatorial, que em substância são regimes políticos avessos aos valores humanos mais fundamentais. A recente onda de nepotismo no Brasil e EUA, é aliás um fantástico exemplo disso, Bolsonaro pretende pôr na embaixada dos EUA o seu filho Eduardo, que de competências para o cargo, lhe é reconhecida a habilidade de falar "muito bem" o inglês, ser amigo da família Trump e saber virar franguinho no churrasco. Já por Portugal, com os recentes escândalos nesta matéria ( de calibre bem menos pesado), vai ser aprovada/ foi uma nova lei, tendente a contornar estas escusas apetências. E a politica Bolsonaro de distorção/ ocultação da repentina explosão do desmatamento da Amazónia, de que o o planeta depende, não é também isto um vértice da corrupção e de um alcance avassalador? Maria José Morgado dizia, "a corrupção é como o pó que se acumula em nossas casas, há que estar sempre a limpá- lo", não há alternativa à democracia no combate à corrupção, e António Barreto ao formular como formulou, sobre este sensível e mediático tema, veio corroborar as razões que assistem aos populistas, o que vindo de onde vem, se reveste de tão ou maior gravidade, quanto o "exótico" artigo da Fátima Bonifácio, porque é afinal um grande tiro no nosso pé.
cisteina, 11.08.2019: Não me parece que tenha lido bem, e com atenção, o que AB escreveu: entre a corrupção da ditadura e a da democracia, escolhe a segunda, por ter possibilidades de melhoria, o que não acontece na primeira como sabemos e a história o confirma. Só foi pena que AB não adiante como é que devemos fazer melhor, perante esta corrupção que tem galopado, desde o 25 de abril, muito mais que no tempo de Salazar, uma ditadura. Pior ainda, com uma justiça que deixa todos estes casos conhecidos, milhares milhões Euros, impunes. Porque, afinal, também concorda que "a corrupção é como o pó que se acumula em nossas casas", parafraseando essa lutadora que é MJM, não tem sido limpo, e deveria ser, todos os dias, acumula-se e já não é pó, é imundície pegajosa difícil de raspar e tirar.
paula.o.rego, 11.08.2019 Cisteína, li com toda a atenção, já o Cisteina é que me parece que não. O excerto que deixo ( entre outros que poderia coligir do texto de AB) é claro : "Verdade é que prefiro uma democracia corrupta a uma ditadura virtuosa! ". Todo o construto da frase é errado: 1°- a corrupção não é apanágio das democracias, está nela presente pela ineficácia das instituições que a pretendem mitigar, cujo funcionamento há que melhorar a cada dia 2° - nenhuma ditadura pode ser considerada virtuosa, a não ser pelos ditadores e todos quantos os apoiem 3° - a bandeira contra a corrupção é para os populistas de instintos ditatoriais, o engodo que serve os propósitos de se instalarem no poder, e a seguir corromper, já destituídos de qualquer pudor em corromper António Barreto, a escrever um artigo de opinião, em que de cima a baixo vem lançar a debate, sobre se este cancro é mais apanágio das ditaduras se das democracias ?
Cisteina, em ditadura não se vê, os media são silenciados, os opositores são eliminados e o quadro final, surge aos olhos de quem como o Cisteina vê, quase perfeito :)
AndradeQB, 11.08.2019: Fica-se com a ideia de que, à falta de solução, o melhor é também aproveitarmos quando tivermos a nossa oportunidade. Existe, no entanto, um terceiro tipo de regime, de que existem vários exemplos. Países em que os dirigentes não exercem qualquer acção ou repressão sobre os cidadãos, deixando-os fazer literalmente o que eles querem, desde que estes não se lembrem de se meter nos seus negócios. Esses regimes diferenciam-se das ditaduras referidas porque não existe qualquer estratégia de controlo das pessoas, somente do dinheiro, distinguem-se das democracias porque os cidadãos livres não se intrometem na governação. Países felizes em que o único problema é sobrarem pessoas para os recursos disponíveis.
Tiago 11.08.2019 22:28: "Esses regimes diferenciam-se das ditaduras referidas porque não existe qualquer estratégia de controlo das pessoas, somente do dinheiro (...)" -- Eu diria diferente. Esses regimes distinguem-se apenas das ditaduras na estratégia de controle dos cidadãos, ao realizá-lo pelo controle do dinheiro, sendo este absolutamente central na vida das pessoas em sociedade. Se as ditaduras fascistas e comunistas controlam pela legislação ideológica e sua imposição pela força, de forma mais frontal, esses regimes controlam de forma mais subtil, exercendo pressão económica até que sejam as próprias pessoas a fazerem, por incapacidade de escolha (€), o que o regime deseja. Conseguiram também "normatizar" a estratégia, aos poucos levando as pessoas a aceitar o controle exercido como normal em "Democracia".
O problema, a meu ver, nesta última forma de controle é que é realizada apenas de forma superficial e pontual, quase "fisiológica", ou seja, sem diálogo ou explicação de natureza ideológica, além de "Economia", e frequentemente, ainda vai contra a ideologia libertária que os próprios regimes promovem para apaziguar os ânimos, considerando que ainda exerce imensa pressão com vista a controlar as pessoas por via da eliminação das opções de vida. Assim, as pessoas sentem-se "livres", ainda que sejam efectivamente controladas, condicionadas e podadas. E quando a poda chega a níveis insustentáveis, vão surgindo as revoltas, as manifestações, os populismos, mas também a resignação, a doença física e mental e até o crime, a violência e o suicídio... Por algum lugar a pressão exercida terá de sair.

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