sábado, 17 de agosto de 2019

Pedagogias


Ruth Ramos apresenta-nos uma boa análise comparativa entre o ser-se criança hoje, e o que se foi no passado - este mais liberto de exigência competitiva, talvez, mas, suponho, dentro de uma maior exigência educativa, que sabia distinguir e acatar.
Creio que sim, que existe essa preocupação em muitos pais, preocupados por um futuro cada vez mais duvidoso, e os que podem tentam dar aos filhos uma preparação de maior exigência. Julgo que não se pode condenar isso, dada a falta de qualidade pedagógica do ensino oficial hoje, convertido por vezes em circo que as “demagogias” políticas foram orquestrando em termos de liberdades e igualdades incompatíveis com a seriedade que o ensino impõe, e que muitos professores do ensino oficial, talvez consigam ainda demonstrar, contudo, nas suas aulas, sobretudo se tiverem chefes directivos que os apoiem na exigência de compostura discente. O ensino particular talvez garanta maior compostura e exigência, e descanso equivalente dos pais trabalhadores. 
Mas vivemos numa época em que tudo se compra, e a preparação para o mercado futuro deve começar cedo, valorizando os virtuosismos de cada vez mais tenras idades. Os tempos que correm não são, de resto, propícios às brincadeiras em liberdade, a menos que se construam recintos vigiados para elas, o terror de um desconhecido cada vez mais funesto em violências, raptos, crimes de ordem vária, o que conduz os pais hoje a tais meios de defesa que não podemos condenar. 
Pior, talvez, do que esses dados, é o da alienação provocada pela maquinazinha da sua companhia de toda a hora, o portátil do seu mundo de insensibilidade e convívio que tende a uma desumanização monstruosa progressiva de uma juventude inerte, se tal não for atalhado.
Crianças não precisam ser boas no que fazem, crianças precisam ser felizes /premium
OBSERVADOR, 17/8/19
Esses adultos ultra competitivos nascidos nas décadas de 70 e 80 viraram pais. E começaram a usar as crianças como mais uma ferramenta para comprovar o seu sucesso.
Acho que até os anos 80 ou 90, acontecia uma coisa muito impressionante com as crianças: elas eram criadas como crianças. As actividades principais eram estudar e brincar. Nada além disso. Os pés podiam ficar sujos por brincarem descalças, as roupas não eram importantes e a sensação de missão cumprida por parte dos pais era atingida quando as crianças passavam de ano e, acima de tudo, quando eram visivelmente felizes.
Não sei bem o que aconteceu para que as coisas mudassem. Mas apostaria no constante e cruel clima de competitividade no qual vivem os adultos de hoje. Especialmente os nascidos nas décadas de 70 e 80, como é meu caso, enfrentaram (e ainda enfrentam) um ambiente profissional — e, consequentemente, social também — que funciona quase como uma corrida: quem é o melhor, quem ganha mais, quem foi promovido antes, quem corre mais quilómetros, quem tem o cargo mais alto, quem tem mais reconhecimento.
Só que esses adultos ultra competitivos viraram pais. E começaram a usar as crianças como mais uma ferramenta para comprovar o seu sucesso. Escolhem as melhores escolas, as melhores atividades complementares, as melhores roupas, os melhores brinquedos, os melhores alimentos. Chamam isso de amor, uma vez que acarreta em aumento de despesas. Mas não é difícil perceber que, frequentemente, tudo isso tem muito mais de vaidade do que de afecto.
As notas precisam ser altas. Dificuldades que resultem em perda de rendimento não são admitidas. Sujar as roupas? Nem pensar. Brincar descalços? Só na praia. E desde que não entre areia no carro. Nos “tempos livres” as crianças tocam piano, aprendem mandarim, jogam ténis, dançam ballet. Técnica, regras, performances. Espontaneidade? Não há tempo para isso.
Brincar tornou-se secundário. Secundário e chato. Porque não pode ter sujeira, não pode ter gritaria, não pode ter correria. Daí a secreta paixão dos pais pelos electrónicos (de preferência com fone de ouvido, sejamos sinceros). O que os pais querem, são miniaturas de adultos, não crianças. Desses que saem de casa às 8 da manhã, voltam às 5 da tarde, tomam um banho, completam suas tarefas do dia, comem sem se sujar, brincam sem bagunçar. Adultos, não crianças.
Em Portugal há uma expressão que me impressiona muito, dita frequentemente às crianças: “tens muito jeito”. Quando uma criança dança ou joga bola, os adultos avaliam a performance e classificam em ter ou não ter jeito para a coisa. Quando a performance é satisfatória, a frase “tens muito jeito” é dita, em forma de elogio. E aí eu me pergunto: as crianças só devem dançar, cantar, jogar bola ou fazer acrobacias quando levam jeito? Caso contrário é melhor parar?
As crianças não têm que ser boas no que fazem. Elas têm que gostar do que fazem. Têm que ser felizes dentro das possibilidades. Filhos não são instrumentos de competição, nem de realização pessoal. Filhos são indivíduos em busca de felicidade. E era para isso que os pais deveriam servir, para facilitar esse caminho. Não para exigir as melhores notas na escola, boas avaliações nos cursos de língua estrangeira, roupas limpinhas no final de um domingo e brincadeiras serenas e silenciosas. Porque isso, definitivamente, não é coisa de criança. Pelo menos não de criança feliz.


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