Não há que duvidar nem como escapar. Alberto Gonçalves conhece-nos bem. O certo é que ninguém
no país se propõe opor-se e impor-se a toda esta calamidade de batoteiros. A
aparente mordaça condiz com um real e geral enfiar de carapuça, acobardados
todos, nas nossas poltronas do bem-estar, escutando o Costa a gabar o Jerónimo
pela sua coerência, mimando-o para a próxima empreitada governativa… Não, somos,
todos, farinha do mesmo saco, e quem sai da poltrona e trabalha em proveito
próprio é que ganha a empreitada. Ninguém está para sair da poltrona, a não ser
os tais do veni vidi vici, com as
armas de hoje, é claro, nada a ver com as de César.
As “elites” (risos) a que chamamos elites /premium
OBSERVADOR,
24/8/19
Veja-se
os Costas, os Marcelos, os Césares, os Rios, as Catarinas, os Jerónimos, os
Louçãs, os Ferros, os Salgados, os Mendes, os Pachecos. É possível conter o
riso face a semelhante ramalhete?
Não
é fácil decidir se a culpa é do país, do regime ou dos bandos, no plural ou no
singular, que tomaram conta disto na maior parte de quase meio século. A
verdade é que Portugal não é respeitável. E não é respeitável na exacta medida
em que, com a subserviência interessada dos empresários, a conivência pasmada
dos “media” e o fascínio pelo Estado de uma curiosa “sociedade civil”, certas
forças e personagens políticas beneficiam de uma impunidade que, por definição,
abre as portas à prepotência, à inépcia e à corrupção.
Por
cá, os governantes, principais e acessórios, não são avaliados em função do seu
desempenho, mas em função da ideologia que o precede. Se calha de serem situados à “direita”, em
geral por outrem e nunca pelos próprios, a avaliação é imediatamente
negativa, excepto nos casos e nos momentos, não demasiado raros, em que a
“direita” presta vassalagem ao adversário. Se, como é costume, são de
esquerda, sucedem-se as vénias antecipadas a um “trabalho” (digamos) que
invariavelmente se distinguirá pela brutal falta de juízo, rigor, decência e
vergonha. E sobretudo escrutínio. À imagem das figuras dos “reality
shows”, conhecidas apenas por serem conhecidas, inúmeras figuras da política
caseira são, salvo seja, reverenciáveis apenas porque as consideram assim.
Para
dar um mero exemplo e não sair, cruz credo, do Partido Socialista, a
história do PS e dos líderes do PS é uma sucessão de prodígios cuja única
fundamentação consiste no facto de se estabelecer na “opinião pública”, sem
direito a grande refutação, o gabarito evidente e prévio de tais criaturas. Se
esmiuçarmos as criaturas, porém, percebe-se que os motivos de tamanhos louvores
são um mistério fascinante, ou uma revelação deprimente.
Não importa, nunca importou que Mário Soares passasse as últimas
décadas de vida a aplaudir tiranias. Não importa, nunca importou que Vítor Constâncio
fosse uma insignificância sem escrúpulos. Não importa, nunca importou que Jorge
Sampaio fosse uma relíquia do marxismo ortodoxo. Não importa, nunca importou
que António Guterres fosse um monumento ao vácuo. Não importa, nunca importou
que Ferro Rodrigues fosse Ferro Rodrigues. Não importa, nunca importou que José
Sócrates fosse um egomaníaco responsável pela institucionalização da
trafulhice. Não importa, nunca importou que António Costa fosse um profissional
da pequena intriga e um amador da língua. Para o
discurso dominante, foram, respectivamente, o pai da democracia, um portento da
economia, um homem bom, um génio diplomático, um Ferro Rodrigues, um salvador,
um supremo estratega.
Alguns
viram-se legitimados pelo voto, outros nem por isso. Em qualquer dos casos, a
legitimidade de todos para mandar dependeu sempre menos de eleições do que de
convenções: convencionou-se que os socialistas acima, junto com inúmeros
socialistas diluídos ou concentrados, oficiais ou oficiosos, e de distintos
graus de notoriedade e cumplicidade, merecem tomar conta de nós. Esta vasta
teia constitui, garantem-nos, uma “elite”, uma “elite” que só o é na medida em
que nos garantem sê-lo. No contexto, a mera palavra arrepia. E as críticas à
“elite” que a admitem enquanto tal arrepiam duplamente.
Ainda
que crítico, o reconhecimento da “elite” é uma forma de legitimação. Aquilo de
que Portugal padece é da submissão a um escassamente recomendável conjunto de
indivíduos, arregimentados em bandos e movidos por interesses comuns, não por
acaso alheios aos interesses do cidadão comum. O pormenor de o cidadão comum
ignorar a contradição e a submissão ser parcialmente voluntária não modifica a
natureza do arranjo: o arranjo é nocivo, e para funcionar implica o lendário
respeitinho, o “cimento social” que teimamos em não largar. Dito de maneira
diferente, a esquerda, já de si propensa a consagrar-se através de dogmas,
mitos e beatificações, ergue estátuas, metafóricas e ocasionalmente literais,
por Portugal em peso – o que resta ao resto fazer?
Resta ao resto rir. Não há gesto
tão repulsivo quanto o de rir com as “elites”, nem tão digno quanto rirmo-nos
delas. Não que rir seja o melhor remédio, o pior remédio ou sequer um placebo
sofrível. Acontece que o riso é um reflexo inevitável perante determinado
tipo de situações grotescas de que esta bonita choldra é praticamente o padrão.
Olhe-se em volta, sem olhos de quem integra ou sonha integrar a choldra.
Veja-se os Costas, os Marcelos, os Césares, os Rios, as Catarinas, os
Jerónimos, os Louçãs, os Ferros, os Salgados, os Mendes, os Pachecos, os
Santos, os Silvas e toda a sorte de bonequinhos que, mais por apatia nossa do
que por engenho deles, fazem da paróquia o seu quintal. É possível conter o
riso face a semelhante ramalhete?
Às
vezes, sim. Às vezes, o ramalhete e as descaradas rábulas do ramalhete inspiram
uma coisa entre o embaraço e a depressão. Com frequência, deviam
inspirar galhofa, galhofa pura, cristalina, imaculada. O que influencia as
variações de inspiração? O pormenor de uma pessoa manter uma réstia de
optimismo ou dar Portugal por perdido. Na presunção de que não há
hipótese, uma pessoa liberta-se do peso da esperança e entrega-se à gargalhada.
É que se isto não tem salvação, isto tem graça. E o som do escárnio é a
perfeita banda-sonora do fim, que talvez fosse provável e que será, por obra
das “elites” (risos), inevitável.
COMENTÁRIOS:
Ana Silva: Certíssimo
A.G. e nós rimos, pagamos a conta e deixamos contas para as gerações seguintes
pagarem. É um arranjinho de truz.
Alexandre Barreira: .....tiro o
chapéu......até faço "vénia"............divinal..........é o melhor
retrato que vi até hoje.....da "LATA-DE-CHOURIÇOS"..........parabéns
"rapaz".....!!!!!
Jorge Bacelar: Muito bom! É
uma apreciação clarividente, fria e exacta do "estado da nação ". E
da palhaçada anexa a todo este folclore. Dizer que temos nojo deste espectáculo,
é pouco... Pena que neste caso não se possa dizer que são fake news!
Carlos Piecho: concordo em
absoluto portugal não tem elites, tem sim associações de bandoleiros o problema
não é de agora salvo raríssimas e muito muito longínquas excepções nunca
tivemos tivemos sim fenómenos do entroncamento que não vieram de escolas nem
fizeram escola, quase todos exilados todos com estátuas póstumas contudo ao
enumerar os bandoleiros, talvez por serem tantos desculpavelmente esqueceu-se
de mencionar uma das figuras mais representativas do nosso provinciano reality
show: o académico passos coelho mas como
a sua crónica evoca o riso está perdoado o riso não será o melhor remédio mas
alivia principalmente quando temos a capacidade de rir de nós.
joao Nunes: Excelente!
Ragnarok the worst: Parabéns por
mais uma crónica sobre os maus costumes. Guardo o final que diz tudo. "E o
som do escárnio é a perfeita banda-sonora do fim, que talvez fosse provável e
que será, por obra das “elites” (risos), inevitável." E rio-me desta
desgraça? Não.
Ahfan Neca: O primeiro
parágrafo desta crónica define a sociedade que somos muito bem. Outro dia, abri
a televisão e estava um membro da elite a dizer que a greve dos camionistas
tinha sido organizada por um tal Steeve Bannon que o Trump enviou para a Europa
para fazer malandrices destas. A pasmada entrevistadora dizia que sim
agradecida por tanta sapiência. São as elites que temos. Dão vontade de rir?
Davam se isto não fosse para chorar. Tanta miséria também custa.
Liberal Impenitente: Para o
peditório de escárnio lançado por Alberto Gonçalves, eu digo que não basta
ser-se "elite" tuga para se ser bem educado! Em rigor, a coincidência
desses dois atributos tem uma probabilidade semelhante à do Tino das Rãs vir a
ser o próximo presidente da república.
Ahfan Neca: O socialismo
só vai acabar quando acabar o dinheiro nos nossos bolsos. Preparem-se,
portugueses, para, cantando e rindo, levarem uma toutiçada de todo o
tamanho. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Vamos aproveitando e
contribuindo para a prosperidade da numenclatura social-comunista.
José Carlos Lourenço: Com a devida
vénia, e como complemento ao esplêndido e acertado título da crónica,
transcrevo o seguinte : "Não importa, nunca importou que Ferro Rodrigues
fosse Ferro Rodrigues. Não importa, nunca importou que José Sócrates fosse um
egomaníaco responsável pela institucionalização da trafulhice". Esta
transcrição espelha e sintetiza a forma e natureza desta choldra...
José Ramos: De facto,
perante as elites do PS e as elites da Pátria enumeradas com mestria por
Alberto Gonçalves, só nos resta rebentarmos de riso ou rebentá-los à bordoada.
Meio Vazio: Minúsculos
num país pequenino.
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