terça-feira, 27 de agosto de 2019

Já o dizia Cesário Verde



Em verso:
O mundo é vasta cena ensanguentada
Coberta de remendos, picaresca,
A vida é chula farsa assobiada
Ou selvagem tragédia romanesca.

Clara Ferreira Alves di-lo em prosa, com o requinte e a sabedoria de sempre, herdeira dos humoristas da tal Geração de Setenta, acrescentado o saber de muitas outras que passaram e vão vindo, com mais achegas e achaques…

PLUMA CAPRICHOSA: NÃO NECESSARIAMENTE AS NOTÍCIAS
OS CASOS DE CORRUPÇÃO NOS DINHEIROS DE PEDRÓGÃO. JÁ NOS TINHAM ENSINADO TUDO SOBRE A ÉTICA E A VERTICALIDADE DOS QUADROS E AUTARCAS PORTUGUESES
CLARA FERREIRA ALVES
EXPRESSO, E, 3/8/19
As notícias dos jornais e telejornais portugueses, sérios, são um espelho do país. Em outros lugares, as notícias são de diferente estilo e dimensão. Oscilações ideológicas e geoestratégicas, os altos e baixos da economia, as negociações políticas internas e externas e respectivas intrigas, a nova “praxis” mundial assente na falta de educação, as modas e lazeres e os múltiplos assuntos idiotas que parecem ocupar as notícias e que aparecem à cabeça dos mais lidos. No “The New York Times, qualquer título sobre a dieta e a forma física ou sobre o auto aperfeiçoamento e o método de superar o trauma, qualquer trauma, aparece logo no topo da lista, superando o tsunami e a tragédia internacional. Superando, pasme-se, a morte do panda. A cosmética e a saúde, a falta dela, são mais importantes do que o terrorismo no Ceilão e a guerra no Iémen. A atenção americana é curta e dirigida exclusivamente ao umbigo. Não espanta que, quando as tropas especiais foram parachutadas no Afeganistão, levassem na equipa um especialista de estudos árabes, pensando que no Afeganistão se falava árabe, visto Osama Bin Laden ser árabe. Impecável lógica do Pentágono. Nas séries de televisão, mesmo as mais caras e bem produzidas, o deserto do Sara e as dunas servem para tudo, paisagens africanas, paisagens asiáticas, paisagens exóticas onde não vegeta um grão de areia. No “The Guardian” o consultório sentimental e os sites para acasalamento rápido são obrigatórios, bem como o artigo feminista radical e o artigo esquerdista radical. Por cima, as verdadeiras notícias.
Em Portugal, todo o noticiário gira em torno da palavra Estado. A seguir, duas palavras ideais para o acasalamento semântico, subsídio e subvenção, e em terceiro lugar a palavra contrato público. O resto deriva deste centro ideológico. Tudo, em Portugal, depende do Estado, mesmo o noticiário. E como o Estado somos nós e o nosso dinheiro dos impostos, a histeria sobre os gastos tidos e havidos e os gastos passados e futuros do Estado mobiliza as consciências. A histeria é compreensível, pela estreiteza da temática e da gramática que se estende das notícias ao infindável comentário onde proliferam sábios e especialistas da coisa.
Quem estiver fora do país e tentar saber pelos cabeçalhos e títulos dos jornais o que vai acontecendo na terrinha, verifica que um tema se torna em poucos dias uma obsessão. Assim, as golas antifogo, ou lá o que é. Equipamento cuja existência se desconhecia. Nuns dias, ficámos a saber que as golas são inflamáveis, afinal não são inflamáveis mas são perfuráveis pelo fogo (enorme vantagem para o utilizador, como se depreende), afinal não são perfuráveis pelo fogo até vinte centímetros (outra vantagem a explorar devidamente, a distância do braseiro, parece que quanto mais longe melhor, quem diria) e por fim, e por causa das golas, ficámos a saber que um parente ou um amigo de um político ou quadro partidário do partido do poder se tinha aproveitado da vaga de incêndios para vender umas golas inflamáveis e não inflamáveis, não perfuráveis até 20 centímetros e perfuráveis depois de 20 centímetros, para fazer uns dinheiros à custa do contrato com o Estado. O rico contrato público, base da deficitária economia lusitana. Alguma novidade? Nenhuma. Os casos de corrupção nos dinheiros de Pedrógão já nos tinham ensinado tudo sobre a ética e a verticalidade dos quadros e autarcas portugueses, a burocracia dos partidos a que os partidos querem entregar os fundos europeus directamente para eles poderem contratar ainda mais primos e parentes, amigos e conhecidos. e assim se expande a economia, enquanto o enjoado Centeno aproveita a oportunidade para se pôr a milhas disto, no que segue o exemplo de outros políticos de alto gabarito que, assim, se apanharam num país civilizado, nunca mais quiseram pôr cá os pés, excepto para rever a família e para receber medalhas e prémios ou botar palração em conferências internacionais com génios internacionais, de que somos exemplos anfitriões. O único que voltou, como comentador gratuito, foi preso no aeroporto.
Mal refeitos da inflamação das golas, e na cauda das notícias sobre as ditas, seguida da demissão do costume e dos habituais procedimentos do ministério público, cujo fim nunca tem fim, veio a revelação de que o filho de um secretário de Estado do partido do poder tinha assinado uns chorudos contratos em nome das sua construtora com o dito Estado, recolhendo uns milhões. O pai, agastado, queixoso, - querem é atacar-me, querem é fragilizar-me -, disse que não sabia de nada e que nada tinha a ver com os contratos do filho. Isto acontece. As famílias partidárias falam pouco entre si e algumas só se encontram no conselho de ministros pleno ou nas férias, quando fazem um retrato de família para as revistas cor de rosa. De resto, nem se cumprimentam na rua. O governo, agastado com demissão anterior, disse que não demitia e pediu um parecer à procuradoria, por causa das moscas. Salva a honra da família socialista com o parecer que decerto contrariará a lei sobre os contratos públicos dos familiares, o governo mantém-se firme, coerente e maioritário.
Entre tantos desmandos sobre contratos públicos,, passou despercebida a notícia importante: o Estudo de Impacto Ambiental do aeroporto do Montijo, que o governo quis aprovado, e rápido, exercendo “pressões” sobre os autores do estudo. Ficámos a saber que haverá impacto ambiental, sim senhor, mas que agora temos de avançar com este remendo da Portela porque Alcochete é longe e o Centeno, a Europa e sobretudo os franceses da Vinci não avançam a cheta. durante três décadas ninguém quis pensar no aeroporto, encomendando muitos estudos a gente conhecida, e agora que a Portela constitui um perigo evidente para Lisboa, a poluição, a sobrecarga, o ruído constante, a ameaça de um desastre aéreo sobre a cidade, qual a solução? O remendo. Como no metro, com as estações curtinhas e as carruagens lotadas. O Estado não tem dinheiro nem tempo para mais. As aves constituem um perigo para os aviões? Depois logo se vê.
Boris Johnson foi comediante e jornalista e lia notícias cómicas (e falsas) num profético programa de televisão chamado “Have I Got News for You”. Poderia ter lido a notícia da sua ascensão. Existiu uma série cómica no HBO chamada “Não Necessariamente as Notícias”. Tudo isto se tornou realidade, e “O Aprendiz” é o Presidente da América. O jornalismo não consegue acompanhar.

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