Em verso:
O mundo é
vasta cena ensanguentada
Coberta de
remendos, picaresca,
A vida é
chula farsa assobiada
Ou selvagem
tragédia romanesca.
Clara
Ferreira Alves di-lo em prosa, com o requinte e a sabedoria de sempre,
herdeira dos humoristas da tal Geração de
Setenta, acrescentado o saber de muitas outras que passaram e vão vindo,
com mais achegas e achaques…
PLUMA CAPRICHOSA: NÃO
NECESSARIAMENTE AS NOTÍCIAS
OS CASOS DE CORRUPÇÃO NOS DINHEIROS DE
PEDRÓGÃO. JÁ NOS TINHAM ENSINADO TUDO SOBRE A ÉTICA E A VERTICALIDADE DOS
QUADROS E AUTARCAS PORTUGUESES
CLARA FERREIRA ALVES
EXPRESSO, E, 3/8/19
As
notícias dos jornais e telejornais portugueses, sérios, são um espelho do país.
Em outros lugares, as notícias são de diferente estilo
e dimensão. Oscilações
ideológicas e geoestratégicas, os altos e baixos da economia, as negociações
políticas internas e externas e respectivas intrigas, a nova “praxis” mundial assente na falta de educação, as
modas e lazeres e os múltiplos assuntos idiotas que parecem ocupar as notícias
e que aparecem à cabeça dos mais lidos. No
“The New York Times, qualquer título sobre a dieta e a forma física ou sobre o
auto aperfeiçoamento e o método de superar o trauma, qualquer trauma, aparece
logo no topo da lista, superando o tsunami e a tragédia internacional. Superando,
pasme-se, a morte do panda. A cosmética e a saúde, a falta dela, são
mais importantes do que o terrorismo no Ceilão e a guerra no Iémen. A atenção
americana é curta e dirigida exclusivamente ao umbigo. Não espanta que, quando as
tropas especiais foram parachutadas no Afeganistão, levassem na equipa um
especialista de estudos árabes, pensando que no Afeganistão se falava árabe,
visto Osama Bin Laden ser árabe. Impecável lógica do Pentágono. Nas
séries de televisão, mesmo as mais caras e bem produzidas, o deserto do Sara e
as dunas servem para tudo, paisagens africanas, paisagens asiáticas, paisagens
exóticas onde não vegeta um grão de areia. No “The Guardian” o
consultório sentimental e os sites para acasalamento rápido são
obrigatórios, bem como o artigo feminista radical e o artigo esquerdista
radical. Por cima, as verdadeiras notícias.
Em Portugal, todo o noticiário gira
em torno da palavra Estado.
A seguir, duas palavras ideais para o
acasalamento semântico, subsídio e subvenção, e em terceiro lugar a palavra contrato
público. O resto deriva deste centro ideológico.
Tudo, em Portugal, depende do Estado, mesmo o noticiário. E como o Estado
somos nós e o nosso dinheiro dos impostos, a histeria sobre os gastos tidos e
havidos e os gastos passados e futuros do Estado mobiliza as consciências. A
histeria é compreensível, pela estreiteza da temática e da gramática que se
estende das notícias ao infindável comentário onde proliferam sábios e
especialistas da coisa.
Quem
estiver fora do país e tentar saber pelos cabeçalhos e títulos dos jornais o
que vai acontecendo na terrinha, verifica que um tema se torna em poucos dias
uma obsessão. Assim, as golas antifogo,
ou lá o que é. Equipamento cuja existência se desconhecia. Nuns dias, ficámos a
saber que as golas são inflamáveis, afinal não são inflamáveis mas são
perfuráveis pelo fogo (enorme vantagem para o utilizador, como se depreende), afinal não são perfuráveis pelo fogo até vinte
centímetros (outra vantagem a explorar devidamente, a distância do
braseiro, parece que quanto mais longe melhor, quem diria) e por fim, e por causa das golas, ficámos a saber
que um parente ou um amigo de um político ou quadro partidário do partido do
poder se tinha aproveitado da vaga de incêndios para vender umas golas
inflamáveis e não inflamáveis, não perfuráveis até 20 centímetros e perfuráveis
depois de 20 centímetros, para fazer uns dinheiros à custa do contrato com o
Estado. O rico contrato público, base da deficitária economia lusitana.
Alguma novidade? Nenhuma. Os casos de corrupção nos dinheiros
de Pedrógão já nos tinham ensinado tudo sobre a ética e a verticalidade dos
quadros e autarcas portugueses, a burocracia dos partidos a que os partidos
querem entregar os fundos europeus directamente para eles poderem contratar
ainda mais primos e parentes, amigos e conhecidos. e assim se expande a
economia, enquanto o enjoado Centeno aproveita a oportunidade para se pôr a
milhas disto, no que segue o exemplo de outros políticos de alto gabarito que,
assim, se apanharam num país civilizado, nunca mais quiseram pôr cá os pés,
excepto para rever a família e para receber medalhas e prémios ou botar
palração em conferências internacionais com génios internacionais, de que somos
exemplos anfitriões. O único que voltou, como comentador gratuito, foi preso no
aeroporto.
Mal
refeitos da inflamação das golas, e na cauda das notícias sobre as ditas,
seguida da demissão do costume e dos habituais procedimentos do ministério
público, cujo fim nunca tem fim, veio a revelação de que o filho de um
secretário de Estado do partido do poder tinha assinado uns chorudos contratos
em nome das sua construtora com o dito Estado, recolhendo uns milhões. O pai,
agastado, queixoso, - querem é atacar-me, querem é fragilizar-me -, disse que
não sabia de nada e que nada tinha a ver com os contratos do filho. Isto
acontece. As famílias partidárias falam pouco entre si e algumas só se
encontram no conselho de ministros pleno ou nas férias, quando fazem um retrato
de família para as revistas cor de rosa. De resto, nem se cumprimentam na rua.
O governo, agastado com demissão anterior, disse que não demitia e pediu um
parecer à procuradoria, por causa das moscas. Salva a honra da família
socialista com o parecer que decerto contrariará a lei sobre os contratos
públicos dos familiares, o governo mantém-se firme, coerente e maioritário.
Entre
tantos desmandos sobre contratos públicos,, passou despercebida a notícia
importante: o Estudo de Impacto Ambiental do aeroporto do Montijo, que o
governo quis aprovado, e rápido, exercendo “pressões” sobre os autores do
estudo. Ficámos a saber que haverá impacto ambiental, sim senhor, mas que agora
temos de avançar com este remendo da Portela porque Alcochete é longe e o
Centeno, a Europa e sobretudo os franceses da Vinci não avançam a cheta. durante
três décadas ninguém quis pensar no aeroporto, encomendando muitos estudos a
gente conhecida, e agora que a Portela constitui um perigo evidente para
Lisboa, a poluição, a sobrecarga, o ruído constante, a ameaça de um desastre
aéreo sobre a cidade, qual a solução? O remendo. Como no metro, com
as estações curtinhas e as carruagens lotadas. O Estado não tem dinheiro nem
tempo para mais. As aves constituem um perigo para os aviões? Depois logo se vê.
Boris
Johnson foi comediante e jornalista e lia notícias cómicas (e falsas) num
profético programa de televisão chamado “Have I Got News for You”. Poderia ter
lido a notícia da sua ascensão. Existiu uma série cómica no HBO chamada “Não
Necessariamente as Notícias”. Tudo isto se tornou realidade, e “O Aprendiz” é o
Presidente da América. O jornalismo não consegue acompanhar.
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