domingo, 18 de agosto de 2019

Almas gémeas



Alberto Gonçalves, Vasco Pulido Valente: dois escritores que usam a matéria prima da comédia vária que interpretam, para nos situarem no mundo, com saber e gargalhada,  Eça dos tempos de hoje.
 Bom dia, Caracas (notas sobre a greve) /premium
 OBSERVADOR, 17/8/2019
Com a greve a decorrer, o dr. Costa imaginou que ficaria bem no papel de Churchill, a decidir os destinos da Terra a partir dos “war rooms”. Imaginou mal.
1. Não tenho grande simpatia pelo acto da greve, nem grande compreensão pelo respectivo princípio. Se uma pessoa não se sente devidamente recompensada no “seu” emprego, é livre de procurar outro. Até porque, delírios marxistas e legislativos à parte, o “seu” emprego depende do interesse do empregador, seja este público (valha a verdade, o empregador público está sempre interessadíssimo) ou privado. Dito isto (também não tenho grande estima pela expressão “dito isto”), não comento as razões dos motoristas de camiões com combustível, dos sindicatos dos motoristas e dos patrões dos motoristas. Apenas informo que detesto gengibre, e que nem por isso sonho em prender as criaturas que o produzem (aquilo produz-se ou nasce feito?).
2. Com semanas de avanço, um secretário de Estado qualquer já apelava ao abastecimento dos carros e ao pânico geral. Ao antecipar a possibilidade de greve, o governo conseguiu antecipar os efeitos da dita: dois ou três dias antes da data marcada já havia postos sem combustível. O socialismo não é só má-fé, saque, corrupção, dissimulação e demagogia: em situações sérias, também exibe uma considerável dose de incompetência. Para o ano, desculpem a analogia e o agouro, o PS vai prevenir os fogos através da terraplanagem das florestas.
3. Com a greve a decorrer, o dr. Costa imaginou que ficaria bem no papel de Churchill, a decidir os destinos da Terra a partir dos “war rooms”. Imaginou mal. Mesmo com o auxílio dos “media” subservientes e da população apática, o dr. Costa acabou a representar a personagem do régulo tropical que de facto é. Num ápice, estava a decretar serviços mínimos e requisições civis, a ameaçar desobedientes com prisão e a concluir – de modo extraordinário para um país tecnicamente europeu, admito – que “em democracia não há direitos absolutos”. O que não costuma haver em democracia é governantes como o dr. Costa, que além de prepotente é limitado. A rábula do “chefe implacável” apenas serviu para motivar os motoristas e agravar o conflito, com eventuais custos para todos nós. Dado o discernimento do eleitor médio, é igualmente possível que a rábula tenha angariado uns votos, incluindo entre os que vão pagar a despesa.
4. Cada uma no seu estilo próprio, as reacções dos partidos à crise dos combustíveis foram um mimo. A extrema-esquerda provou pela enésima vez na História o gigantesco embuste do seu “humanismo”. O PCP, aflito com a perda de protagonismo a que a aliança parlamentar o forçou (hoje a CGTP é um gatinho amestrado, e não tarda o sr. Arménio tem de procurar – o diabo seja cego, surdo e mudo – trabalho), já aparece a condenar greves de forma explícita. O BE, com a vasta hipocrisia a que nos habituou, finge levemente discordar da requisição civil para concordar com o PS e apelar à concórdia universal – ou, como disse a dona Catarina durante os incêndios de 2017, “que venha a chuva”, para o BE escapar entre os pingos. O CDS, coerente com o CDS remoto (o actual não se sabe o que é), aproveitou para recomendar uma revisão da lei da greve que ninguém aprovaria. E o PSD aproveitou para não dizer nada, ou quase nada. Parece que o dr. Rio, ou alguém por ele, avisou que o PSD não se mete em polémicas. Este PSD, acrescento, não se mete sequer em políticas. Talvez a nova direcção tenha decidido transformar o partido num centro de reflexão, onde se pensa o sentido da existência e as melancias sem sementes. Não sei. Sei que, a continuar a pairar acima da suja realidade, o PSD arrisca-se, a partir de Outubro, a deixar de ser visto sem ajuda de um telescópio.
5. O prof. Marcelo falou em três ocasiões sobre a greve. Da primeira, esclareceu que atesta o depósito após cada viagem. Da segunda, ameaçou os motoristas com a ira popular. Da terceira, tipicamente de cuecas na praia, garantiu que não faria comentários. Eu tinha alguns comentários a fazer. Infelizmente, o artigo 328º do Código Penal promete cadeia para quem injuriar o presidente da República. Dado que o prof. Marcelo é o presidente desta república, opto pelo silêncio.
6. Os “media” serventuários do poder procederam à glorificação do governo, à condenação dos grevistas e à destruição de carácter do porta-voz do sindicato (“é de desconfiar muito de quem confia na liderança do advogado Pardal Henriques”, escreveu o director de um falecido diário, conhecido por confiar na liderança do eng. Sócrates e, hoje, na do dr. Costa). O Observador descobriu que o porta-voz dos patrões dos motoristas é um moço de recados de PS, que lhe retribui com nomeações e “fundos” públicos.
7. O caminho para a Venezuela, anunciado em finais de 2015, não se faz de um dia para o outro. Conforme reza um cliché “poético”, tão repulsivo que quem o repete devia ser flagelado com um varapau, o caminho faz-se caminhando. E as longas caminhadas de socialistas e comunistas já mostram avanços notáveis. Para já, dois motoristas foram notificados (ou detidos?) pelo crime de desobediência, e a tropa viu-se convocada a tomar partido e auxiliar empresas privadas. É uma amostra do que acontece quando o socialismo do dr. Costa pressente sarilhos e passeia autoridade. É natural que nos estados democráticos o Estado tenha o monopólio da violência. Não é natural nem democrático que o PS tenha o monopólio do Estado.
COMENTÁRIOS
Adelino Lopes: Já ansiava por uma crónica assim. Parabéns AG. Faltou enquadrar a perda de receita fiscal que esta greve irá provocar. A questão da greve 'privada ' , também seria interessante se fosse abordada.
Francisco Pinto: Uma das melhores crónicas de AG. Convenhamos que, sendo difícil escrever sempre assim, matéria política absurda e ridícula é coisa abundante com a geringonça.
Joaquim Moreira: Estou como sempre muito de acordo com as crónicas de Alberto Gonçalves que, neste país à beira-mar plantado, tem a coragem e a sabedoria de dizer verdades que a CS, de uma maneira geral, não consegue ver de forma parecida, muito menos igual. Mas nem por isso concordo com tudo o que é dito e visto, muito menos no que diz respeito ao político que não tem nada a ver com isto. E para não distorcer aquilo que disse, vou citar algumas opiniões que nem todos tiveram oportunidade, ou não querem ver ou ler. Mas ainda antes disso, quero lembrar que, depois do Teatro dos Professores, tudo fez para não participar neste novo Teatro dos Transportadores. Aí vão algumas citações, de quem não tem medo das sondagens nem das eleições:
“O Governo montou um circo mediático e colocou-se de um dos lados da barricada” ; acusando o Executivo de procurar “tirar dividendos políticos”, semeando “o caos e o drama”: “O PSD apela à boa fé de ambas as partes, dos sindicatos e entidade patronal, e à isenção do Governo, de modo a que possa ser um árbitro a sério”; o Governo “dizia que mediava, mas, ao mesmo tempo, ia semeando o alarmismo na sociedade” e “os ministros iam dando a greve como inevitável”. Mas “as pessoas começaram a entender que o Governo não era isento” e, “ao quarto dia de greve” o Executivo “pára com as ameaças” e começa então a “empenhar-se a sério a fomentar o diálogo e a ser mais imparcial”; “O PSD sempre defendeu isto que agora começou a acontecer” e sublinha ainda que “o clima pré-eleitoral não favorece a sensatez”.
E fico-me por aqui, porque me parece que, "mesmo com atraso", demonstra muito mais do que lucidez.
Joaquim Zacarias: É indispensável o conhecimento público, do valor da facturação que o governo vai emitir, referente às despesas que o estado tem tido, com a utilização de militares e polícias, ao serviço da Antram.
Maria Pinto > Joaquim Zacarias O governo de esquerda tem os militares a trabalhar à borla para os patrões, isso de estarem do lado dos trabalhadores é enquanto não chegam ao poder e provam o doce sabor dos tachos!!!
William Smith > Maria Pinto: Acho que foi o diretor do Expresso que uma vez disse que os socialistas adoram brincar aos empresários e dispor das empresas como se fossem donos delas. Mas como geralmente são duma incompetência que chega a ser risível, os resultados nunca são brilhantes.
II – OPINIÃO
Diário
“Não se deve tolerar que um sindicato, ou um conjunto de sindicatos, imponha as suas condições a uma sociedade inteira. É só isso que importa saber sobre a greve dos motoristas de matérias perigosas”, escreve Vasco Pulido Valente.
 PÚBLICO, 17 de Agosto de 2019,
O sr. Pardal Henriques é o tipo de homem no tipo de papel que é mau para qualquer sociedade e para a política em geral. O homem que nunca foi motorista de matérias perigosas acabou por dirigir o sindicato do sector, um sector pequenino, é verdade, mas para nosso mal um sector vital. Ficámos assim sujeitos à visão do mundo e ao programa político de um desconhecido. O próprio PC, embora veladamente, não deixou de se arrepiar.
Dizem os jornais que o sr. Pardal Henriques já recebeu convites de outros sindicatos, para os levar à glória ou à morte. Seria bom que esses sindicatos esperassem para ver no que dá esta greve.
11 de Agosto: O sr. Pardal Henriques subiu à atenção nacional, e deve estar muito contente com isso. Mas, no caminho, com certeza que se esqueceu que dirigir uma crise contra a maioria da população, e contra o Presidente da República e o Governo, não era exactamente o mesmo do que administrar tranquilamente uma querela com a ANTRAM. Não contou com a resistência de um primeiro-ministro assistido pela lei e pela oportunidade.
12 de Agosto: Os portugueses, habituados à miséria, são muito precavidos. Já encheram os depósitos e os jerricans até deitar por fora. Isto não só os faz felizes pela sua esperteza como os desinteressa do que se passa no país. A tranquilidade desceu sobre Portugal.
13 de Agosto: Catarina Martins disse que o Governo tem feito uma “escalada de provocações”. Pedro Santana Lopes foi falar com os piquetes de Aveiras. Estes gestos de propaganda eleitoral, além de fátuos, são confrangedores.
13 de Agosto à noite: Todos os noticiários das televisões por cabo foram interrompidos pelo fim do jogo FC Porto – FC Krasnodar. De repente, a nação aflita com o problema dos combustíveis deixou de existir e, em seu lugar, ficou o futebol-falado. Não há desastre a que o futebol-falado não ganhe.
14 de Agosto: Alguém se lembrou que o dr. João Galamba é secretário de Estado da Energia? E alguém notou que, até agora, o PS não o deixou sair da gaiola?
15 de Agosto: Começo a notar uma certa simpatia dos comentadores da esquerda, com Raquel Varela à frente, pelos motoristas de matérias perigosas. Não me admira. A esquerda, e sobretudo esta esquerda, tem sempre necessidade de que a lembrem da existência do Estado. Por um lado, porque o marxismo não tem uma teoria política própria. E, por outro, porque, como se constatou desde o princípio, isto é, desde a revolução francesa, a igualdade é dificilmente conciliável com a ideia de poder e a ideia de hierarquia, que são o fundamento teórico do Estado. No caso dos motoristas, compreendo muito bem a simpatia pelos homens que são, de facto, abominavelmente tratados. Mas não é esse, como nunca foi, o problema. E o problema é este: não se deve tolerar que um sindicato, ou um conjunto de sindicatos, imponha as suas condições a uma sociedade inteira. E hoje ainda menos, porque as sociedades modernas são infinitamente mais complexas do que eram no século XIX, quando este assunto se começou a discutir. É só isso que importa saber sobre a greve dos motoristas de matérias perigosas.
16 de Agosto: Inteiramente no escuro, sem nada de essencial decidido, Rui Rio veio fazer uma conferência de imprensa. E o que disse ele? Disse que tinha razão, toda a razão, e nada mais que razão. Desde o princípio até ao fim sem falhar uma. Disse que o Governo, o PS e os media tinham “acicatado” os motoristas e criado de propósito o “caos” e o “alarme”, com fins eleitorais. Disse que não participava em “circos mediáticos”. Disse que ele era ele e que ser ele era bom.
Não sei o nome clínico que se dá a estes casos.
COMENTÁRIOS
Maria Marques, 17.08.2019:  O controlo dos trabalhadores sobre os meios de produção não foi viabilizado pelo marxismo nem é aceite pela sociedade burguesa capitalista. A sociedade inteira depende dos camionistas, assiste-lhes o direito de usarem o seu poder em prol da melhoria das suas condições de sobrevivência.
francisco tavares, 17.08.2019: Pobres e infelizes são aqueles que não têm assim tanto poder para melhorar as suas condições de vida!
Maria Marques, 17.08.2019: "Extrema miséria, por si só, não produz revoluções; mais frequentemente, ela produz uma desmoralização sem propósito, ou, pior, uma luta privada e pessoal pela sobrevivência." Murray Bookchin.
joorge, 17.08.2019: Ou, seguindo a mesma lógica, à sociedade "assiste o direito de usar o seu poder". Eu sei, é uma maçada.
Espectro, 17.08.2019: Quando está lúcido e verdadeiramente acordado, Vasco Pulido Valente é o cronista que o mundo inteiro consagrou (salvo erro, era assim que apresentavam um antigo comentador de futebol, que já partiu definitivamente, e que, ainda salvo erro, se chamava Alves dos Cantos). Hoje esteve certeiro e deve deixar corados de vergonha tanto o Manuel de Carvalho, director aqui da coisa, como a sua substituta, cujo nome se me olvida, mas não é por deixar de ser pessoa muito importante (lol)! Pois é mesmo assim: O governo esteve sempre bem, desde o primeiro dia de greve, e o tal advogado de meia-tigela esteve sempre mal. LOL
FzD, 17.08.2019:  O problema talvez seja mesmo já não estarmos no século XIX e haver partidos e organizações (como os sindicatos), que olham para a sociedade como se ainda estivéssemos nesses tempos muito mais simples. Se juntarmos a isto o oportunismo (falta de princípios), que caracteriza os actuais partidos de poder (ou pretendentes a sê-lo), podemos entender a dificuldade de resolução de problemas causados à maioria da população por pequenos grupos.
Novo Humbo, 17.08.2019: Sr. Valente, por favor providencie corolário -solução para esta sequência lógica: "homens que são, de facto, abominavelmente tratados" + "não se deve tolerar que um sindicato, ou um conjunto de sindicatos, imponha as suas condições a uma sociedade inteira" = ?
...ou ter-me-á escapado solução que já lhe tenha ocorrido durante os anos em que usufruiu de paulatino descanso naquele AL a que fez publicidade encapotada numa recente crónica, enquanto os cidadãos que lhe levam combustível ao popó vergavam a mola, nas condições agora conhecidas?
rafael.guerra.www, 17.08.2019: Nem mais. Uma justiça para os poderosos e outra para os fracos, não é Justiça. A coesão social necessita coerência.
Lutar por Portugal2019, 17.08.2019: É verdade os juízes fazem greve (caso de estudo) e são aumentados em €700. Estes não foram alvo de requisição civil, mesmo sem assegurarem os serviços mínimos. A lei com o governo PS e o Marselfi, não são literais.


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