Alberto Gonçalves, Vasco Pulido Valente: dois
escritores que usam a matéria prima da comédia vária que interpretam, para nos
situarem no mundo, com saber e gargalhada, Eça dos tempos de hoje.
I - COMBUSTÍVEL
Bom dia,
Caracas (notas sobre a greve) /premium
OBSERVADOR, 17/8/2019
Com a greve a decorrer, o dr. Costa
imaginou que ficaria bem no papel de Churchill, a decidir os destinos da Terra
a partir dos “war rooms”. Imaginou mal.
1. Não
tenho grande simpatia pelo acto da greve, nem grande compreensão pelo
respectivo princípio. Se uma pessoa não se sente devidamente recompensada no
“seu” emprego, é livre de procurar outro. Até porque, delírios marxistas e
legislativos à parte, o “seu” emprego depende do interesse do empregador, seja
este público (valha a verdade, o empregador público está sempre
interessadíssimo) ou privado. Dito isto (também não tenho grande estima pela
expressão “dito isto”), não comento as razões dos motoristas de camiões com
combustível, dos sindicatos dos motoristas e dos patrões dos motoristas. Apenas
informo que detesto gengibre, e que nem por isso sonho em prender as criaturas
que o produzem (aquilo produz-se ou nasce feito?).
2. Com
semanas de avanço, um secretário de Estado qualquer já apelava ao abastecimento
dos carros e ao pânico geral. Ao antecipar a possibilidade de greve, o
governo conseguiu antecipar os efeitos da dita: dois ou três dias antes da data
marcada já havia postos sem combustível. O socialismo não é só má-fé, saque,
corrupção, dissimulação e demagogia: em situações sérias, também exibe uma considerável
dose de incompetência. Para o ano, desculpem a analogia e o agouro, o PS vai
prevenir os fogos através da terraplanagem das florestas.
3. Com
a greve a decorrer, o dr. Costa imaginou que ficaria bem no papel de
Churchill, a decidir os destinos da Terra a partir dos “war rooms”.
Imaginou mal. Mesmo com o auxílio dos “media” subservientes e da população
apática, o dr. Costa acabou a representar a personagem do régulo tropical
que de facto é. Num ápice, estava a decretar serviços mínimos e requisições
civis, a ameaçar desobedientes com prisão e a concluir – de modo extraordinário
para um país tecnicamente europeu, admito – que “em democracia não há direitos
absolutos”. O que não costuma haver em democracia é governantes como o dr.
Costa, que além de prepotente é limitado. A rábula do “chefe implacável” apenas
serviu para motivar os motoristas e agravar o conflito, com eventuais custos
para todos nós. Dado o discernimento do eleitor médio, é igualmente possível
que a rábula tenha angariado uns votos, incluindo entre os que vão pagar a
despesa.
4. Cada uma no seu estilo próprio, as
reacções dos partidos à crise dos combustíveis foram um mimo. A extrema-esquerda provou pela enésima
vez na História o gigantesco embuste do seu “humanismo”. O PCP, aflito com
a perda de protagonismo a que a aliança parlamentar o forçou (hoje a CGTP é um
gatinho amestrado, e não tarda o sr. Arménio tem de procurar – o diabo seja
cego, surdo e mudo – trabalho), já aparece a condenar greves de forma
explícita. O BE, com a vasta hipocrisia a que nos habituou, finge levemente
discordar da requisição civil para concordar com o PS e apelar à concórdia
universal – ou, como disse a dona Catarina durante os incêndios de 2017, “que
venha a chuva”, para o BE escapar entre os pingos. O CDS, coerente com o CDS
remoto (o actual não se sabe o que é), aproveitou para recomendar uma revisão
da lei da greve que ninguém aprovaria. E o PSD aproveitou para não dizer nada,
ou quase nada. Parece que o dr. Rio, ou alguém por ele, avisou que o PSD não se
mete em polémicas. Este PSD, acrescento, não se mete sequer em políticas.
Talvez a nova direcção tenha decidido transformar o partido num centro de
reflexão, onde se pensa o sentido da existência e as melancias sem sementes.
Não sei. Sei que, a continuar a pairar acima da suja realidade, o PSD
arrisca-se, a partir de Outubro, a deixar de ser visto sem ajuda de um
telescópio.
5. O
prof. Marcelo falou em três ocasiões sobre a greve. Da primeira,
esclareceu que atesta o depósito após cada viagem. Da segunda, ameaçou os
motoristas com a ira popular. Da terceira, tipicamente de cuecas na praia,
garantiu que não faria comentários. Eu tinha alguns comentários a fazer.
Infelizmente, o artigo 328º do Código Penal promete cadeia para quem injuriar o
presidente da República. Dado que o prof. Marcelo é o presidente desta
república, opto pelo silêncio.
6. Os
“media” serventuários do poder procederam à glorificação do governo, à
condenação dos grevistas e à destruição de carácter do porta-voz do sindicato
(“é de desconfiar muito de quem confia na liderança do advogado Pardal
Henriques”, escreveu o director de um falecido diário, conhecido por confiar na
liderança do eng. Sócrates e, hoje, na do dr. Costa). O Observador
descobriu que o porta-voz dos patrões dos motoristas é um moço de recados de
PS, que lhe retribui com nomeações e “fundos” públicos.
7. O
caminho para a Venezuela, anunciado em finais de 2015, não se faz de um dia
para o outro. Conforme reza um cliché “poético”, tão repulsivo que quem
o repete devia ser flagelado com um varapau, o caminho faz-se caminhando.
E as longas caminhadas de socialistas e comunistas já mostram avanços notáveis.
Para já, dois motoristas foram notificados (ou detidos?) pelo crime de
desobediência, e a tropa viu-se convocada a tomar partido e auxiliar empresas
privadas. É uma amostra do que acontece quando o socialismo do dr. Costa
pressente sarilhos e passeia autoridade. É natural que nos estados democráticos
o Estado tenha o monopólio da violência. Não é natural nem democrático que o PS
tenha o monopólio do Estado.
COMENTÁRIOS
Adelino Lopes: Já ansiava por
uma crónica assim. Parabéns AG. Faltou enquadrar a perda de receita fiscal que
esta greve irá provocar. A questão da greve 'privada ' , também seria
interessante se fosse abordada.
Francisco Pinto: Uma das
melhores crónicas de AG. Convenhamos que, sendo difícil escrever sempre assim,
matéria política absurda e ridícula é coisa abundante com a geringonça.
Joaquim Moreira: Estou como
sempre muito de acordo com as crónicas de Alberto Gonçalves que, neste país à
beira-mar plantado, tem a coragem e a sabedoria de dizer verdades que a CS, de
uma maneira geral, não consegue ver de forma parecida, muito menos igual. Mas
nem por isso concordo com tudo o que é dito e visto, muito menos no que diz
respeito ao político que não tem nada a ver com isto. E para não distorcer
aquilo que disse, vou citar algumas opiniões que nem todos tiveram
oportunidade, ou não querem ver ou ler. Mas ainda antes disso, quero lembrar
que, depois do Teatro dos Professores, tudo fez para não participar neste novo
Teatro dos Transportadores. Aí vão algumas citações, de quem não tem medo das
sondagens nem das eleições:
“O
Governo montou um circo mediático e colocou-se de um dos lados da barricada”
; acusando o Executivo de procurar “tirar dividendos políticos”, semeando
“o caos e o drama”: “O PSD apela à boa fé de ambas as partes, dos
sindicatos e entidade patronal, e à isenção do Governo, de modo a que possa ser
um árbitro a sério”; o Governo “dizia que mediava, mas, ao mesmo tempo, ia
semeando o alarmismo na sociedade” e “os ministros iam dando a greve como
inevitável”. Mas “as pessoas começaram a entender que o Governo não era isento”
e, “ao quarto dia de greve” o Executivo “pára com as ameaças” e começa então a
“empenhar-se a sério a fomentar o diálogo e a ser mais imparcial”; “O PSD
sempre defendeu isto que agora começou a acontecer” e sublinha ainda que “o
clima pré-eleitoral não favorece a sensatez”.
E
fico-me por aqui, porque me parece que, "mesmo com atraso", demonstra
muito mais do que lucidez.
Joaquim Zacarias: É
indispensável o conhecimento público, do valor da facturação que o governo vai
emitir, referente às despesas que o estado tem tido, com a utilização de
militares e polícias, ao serviço da Antram.
Maria Pinto > Joaquim Zacarias O governo de esquerda tem os militares a trabalhar à
borla para os patrões, isso de estarem do lado dos trabalhadores é enquanto não
chegam ao poder e provam o doce sabor dos tachos!!!
William Smith > Maria Pinto: Acho que foi o diretor do Expresso que uma vez disse
que os socialistas adoram brincar aos empresários e dispor das empresas como se
fossem donos delas. Mas como geralmente são duma incompetência que chega a ser
risível, os resultados nunca são brilhantes.
II – OPINIÃO
Diário
“Não se deve tolerar que um sindicato,
ou um conjunto de sindicatos, imponha as suas condições a uma sociedade
inteira. É só isso que importa saber sobre a greve dos motoristas de matérias
perigosas”, escreve Vasco Pulido Valente.
PÚBLICO, 17 de Agosto de 2019,
O
sr. Pardal Henriques é o tipo de
homem no tipo de papel que é mau para qualquer sociedade e para a política em
geral. O homem que nunca foi motorista de matérias perigosas acabou por dirigir
o sindicato do sector, um sector pequenino, é verdade, mas para nosso mal um
sector vital. Ficámos assim sujeitos à visão do mundo e ao programa político de
um desconhecido. O próprio PC, embora veladamente, não deixou de se
arrepiar.
Dizem
os jornais que o sr. Pardal Henriques já recebeu convites de outros sindicatos, para os levar à glória ou à morte. Seria bom que
esses sindicatos esperassem para ver no que dá esta greve.
11 de Agosto: O sr. Pardal
Henriques subiu à atenção nacional, e deve estar
muito contente com isso. Mas, no caminho, com certeza que se esqueceu que
dirigir uma crise contra a maioria da população, e contra o Presidente da
República e o Governo, não era exactamente o mesmo do que administrar
tranquilamente uma querela com a ANTRAM. Não contou com a resistência de um primeiro-ministro
assistido pela lei e pela oportunidade.
12 de Agosto: Os portugueses, habituados à miséria, são muito
precavidos. Já encheram os depósitos e os jerricans até deitar por fora. Isto não
só os faz felizes pela sua esperteza como os desinteressa do que se passa no
país. A tranquilidade desceu sobre Portugal.
13 de Agosto: Catarina Martins
disse que o Governo tem feito uma “escalada de provocações”. Pedro
Santana Lopes foi falar
com os piquetes de Aveiras. Estes gestos de propaganda eleitoral, além de
fátuos, são confrangedores.
13 de Agosto à noite: Todos os noticiários das televisões por cabo foram
interrompidos pelo fim do jogo FC Porto – FC Krasnodar. De repente, a nação aflita com o problema dos
combustíveis deixou de existir e, em seu lugar, ficou o futebol-falado. Não há
desastre a que o futebol-falado não ganhe.
14 de Agosto: Alguém se lembrou que o dr. João Galamba é secretário de Estado da Energia? E alguém notou
que, até agora, o PS não o deixou sair da gaiola?
15 de Agosto: Começo a notar uma certa simpatia dos comentadores da
esquerda, com
Raquel Varela à frente, pelos motoristas de matérias perigosas. Não me
admira. A esquerda, e sobretudo esta esquerda, tem sempre necessidade de que
a lembrem da existência do Estado. Por um lado, porque o marxismo não tem uma
teoria política própria. E, por outro, porque, como se constatou desde o
princípio, isto é, desde a revolução francesa, a igualdade é dificilmente
conciliável com a ideia de poder e a ideia de hierarquia, que são o fundamento
teórico do Estado. No caso dos motoristas, compreendo muito bem a
simpatia pelos homens que são, de facto, abominavelmente tratados. Mas não é
esse, como nunca foi, o problema. E o problema é este: não se deve tolerar que
um sindicato, ou um conjunto de sindicatos, imponha as suas condições a uma
sociedade inteira. E hoje ainda menos, porque as sociedades modernas são
infinitamente mais complexas do que eram no século XIX, quando este assunto se
começou a discutir. É só isso que importa saber sobre a greve dos motoristas de
matérias perigosas.
16 de Agosto: Inteiramente no escuro, sem nada de essencial
decidido, Rui Rio veio fazer uma conferência de imprensa. E o que disse ele? Disse que tinha razão, toda a
razão, e nada mais que razão. Desde o princípio até ao fim sem falhar uma.
Disse que o Governo, o PS e os media tinham “acicatado” os motoristas e criado
de propósito o “caos” e o “alarme”, com fins eleitorais. Disse que não
participava em “circos mediáticos”. Disse que ele era ele e que ser ele era
bom.
Não
sei o nome clínico que se dá a estes casos.
COMENTÁRIOS
Maria Marques, 17.08.2019: O
controlo dos trabalhadores sobre os meios de produção não foi viabilizado pelo
marxismo nem é aceite pela sociedade burguesa capitalista. A sociedade inteira
depende dos camionistas, assiste-lhes o direito de usarem o seu poder em prol
da melhoria das suas condições de sobrevivência.
francisco tavares, 17.08.2019: Pobres e infelizes são aqueles que não têm assim tanto
poder para melhorar as suas condições de vida!
Maria
Marques, 17.08.2019: "Extrema
miséria, por si só, não produz revoluções; mais frequentemente, ela produz uma
desmoralização sem propósito, ou, pior, uma luta privada e pessoal pela
sobrevivência." Murray Bookchin.
joorge, 17.08.2019: Ou, seguindo a mesma lógica, à sociedade "assiste
o direito de usar o seu poder". Eu sei, é uma maçada.
Espectro, 17.08.2019: Quando está lúcido e verdadeiramente acordado, Vasco Pulido Valente é o cronista que o mundo inteiro consagrou (salvo
erro, era assim que apresentavam um antigo comentador de futebol, que já partiu
definitivamente, e que, ainda salvo erro, se chamava Alves dos Cantos). Hoje
esteve certeiro e deve deixar corados de vergonha tanto o Manuel de Carvalho,
director aqui da coisa, como a sua substituta, cujo nome se me olvida, mas não
é por deixar de ser pessoa muito importante (lol)! Pois é mesmo assim: O
governo esteve sempre bem, desde o primeiro dia de greve, e o tal advogado de
meia-tigela esteve sempre mal. LOL
FzD, 17.08.2019: O problema
talvez seja mesmo já não estarmos no século XIX e haver partidos e organizações
(como os sindicatos), que olham para a sociedade como se ainda estivéssemos
nesses tempos muito mais simples. Se juntarmos a isto o oportunismo (falta de
princípios), que caracteriza os actuais partidos de poder (ou pretendentes a
sê-lo), podemos entender a dificuldade de resolução de problemas causados à
maioria da população por pequenos grupos.
Novo Humbo, 17.08.2019: Sr. Valente, por favor providencie corolário -solução
para esta sequência lógica: "homens que são, de facto, abominavelmente
tratados" + "não se deve tolerar que um sindicato, ou um conjunto de
sindicatos, imponha as suas condições a uma sociedade inteira" = ?
...ou
ter-me-á escapado solução que já lhe tenha ocorrido durante os anos em que
usufruiu de paulatino descanso naquele AL a que fez publicidade encapotada numa
recente crónica, enquanto os cidadãos que lhe levam combustível ao popó
vergavam a mola, nas condições agora conhecidas?
rafael.guerra.www, 17.08.2019: Nem mais. Uma justiça para os poderosos e outra para os
fracos, não é Justiça. A coesão social necessita coerência.
Lutar por Portugal2019, 17.08.2019: É verdade os juízes fazem greve (caso de estudo) e são
aumentados em €700. Estes não foram alvo de requisição civil, mesmo sem
assegurarem os serviços mínimos. A lei com o governo PS e o Marselfi, não são
literais.
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