Do blog “A BIGORNA”, de David Martelo, enviado
por email por João Sena, extraio o
seguinte texto, que vem dimensionar, de um ponto de vista histórico, o problema
posto no texto anterior (deste blog), por Manuel
Carvalho e alguns seus apoiantes, sobre a política nacionalista de Mateo Salvini, na questão dos migrantes que cruzam o
Mediterrâneo, em busca de “vida”. Só desejo que Matteo Salvini não venha a terminar
a sua da mesma forma escabrosa que o duce, e que a rivalidade
entre comunistas e nacionalistas mantenha o equilíbrio que Giovanni Guareschi soube descrever com tanta graça no seu “Le Petit Monde de Don Camillo”, (a tradução
que conheço), para além do filme com Fernandel.
Mas os tempos são bem outros, a democracia não vai em graças e o mundo de Dom Camilo era mesmo pequeno, com um
Peponne por antagonista, firmemente crente, naquela altura, e, sobretudo, naquela
escrita superior.
PLENOS
PODERES
DAVID MARTELO “A BIGORNA”, Agosto de 2019
É
a falta de memória que permite convencer milhões de pessoas de que uma ditadura
não foi uma ditadura. Daniel
Oliveira – Expresso/20-08-2019 A Itália que foi berço do fascismo
encontra-se, de novo, à beira de uma tentação totalitária. A demissão do primeiro-ministro Giuseppe Conte,
anunciada pelo próprio, em 20 de Agosto, no Senado italiano, consubstancia mais
uma das inúmeras crises governamentais em que o país se vem envolvendo com
perigosa frequência, sobretudo depois do desaparecimento dos partidos
tradicionais, na sequência da enorme convulsão do sistema partidário ocorrida
no início dos anos 1990. No seu discurso, Conte não poupou palavras de
censura contra Matteo
Salvini, até aí vice presidente
do seu governo de coligação Liga-Movimento 5 Estrelas. Salvini há
muito que se definiu como líder de um partido de extrema-direita, nacionalista
e adversário da União Europeia. Embora não se afirme abertamente como inspirado
pela figura de Mussolini, há no seu comportamento político linhas de acção que
permitem algumas analogias. O inimigo estrangeiro de Mussolini
era o Tratado de Versalhes e as potências vencedoras da 1.ª Guerra Mundial que,
nas suas decisões de reformulação da Europa, haviam destratado a Itália, como
se o país não tivesse, também, contribuído para a sangrenta vitória de 1918. No plano interno, não se verificando agora as
violentas alterações da ordem pública do período 1919-1922, a debilidade
parlamentar do presente repete, em muitos aspectos, a situação política que
levaria o rei Vítor Manuel III, no imediato seguimento da Marcha sobre Roma, a
convidar Mussolini para formar governo.
Sim, convém recordar que, apesar do pronunciamento paramilitar dos Camisas
Negras, Mussolini – tal como Hitler – alcançaria a chefia do governo num
cenário de legalidade constitucional. Mussolini, na primeira vez que se
apresentou perante a Câmara de Deputados, em 16 de Novembro de 1922, procurou
dar conta das medidas que tomara nos dias iniciais da sua governação e tornar
públicas as suas intenções e o seu programa. Dessa aparição perante os
deputados, fez o próprio Mussolini a seguinte descrição: Foi uma
sessão excepcional. A sala estava cheia a deitar por fora. Todos os deputados
se encontravam presentes. As minhas declarações foram breves, claras e firmes.
Não enganei ninguém. Estabeleci com minúcia os direitos da revolução. Chamei a
atenção da audiência para o facto de somente pela vontade do Fascismo a
revolução se contivera nos limites da legalidade e da tolerância. Podia ter
feito, disse eu, desta sala surda e cinzenta, um bivaque de manípulos; podia
ter mandado pregar as portas do Parlamento e constituir um governo
exclusivamente de Fascistas. Podia: mas não quis, ao menos neste primeiro tempo.
Agradeci, então, a todos os meus colaboradores e referi com simpatia a multidão
de trabalhadores italianos que auxiliaram o movimento fascista com a sua
solidariedade, activa ou passiva. Não apresentei um dos programas usuais, como
os anteriores ministérios costumavam fazer; porque esses só resolviam os
problemas do país no papel. Afirmei o meu empenho em agir e em fazê-lo sem
esperar por uma oratória inútil. No campo da política externa, declarei, sem
rodeios, a intenção de seguir uma “política de dignidade e de utilidade
nacional”. 2 Em todos os assuntos proferi declarações fortes, que mostraram
como o Fascismo tinha já sido capaz de analisar e resolver diversos problemas
urgentes e de fixar as orientações futuras do governo. Por fim, concluí do
seguinte modo: Senhores! De comunicações ulteriores terão oportunidade de
conhecer o programa fascista em todos os pormenores e por cada um dos ministérios.
Não pretendo, enquanto me for possível, governar contra a Câmara: mas a Câmara
deve ter noção da sua posição particular, que a torna passível de dissolução,
daqui a dois dias ou daqui a dois anos. Pedimos os plenos poderes porque
queremos assumir a plena responsabilidade. Sem os plenos poderes, sabeis
muitíssimo bem que não se faria uma lira – digo uma lira – de economia. Com
isso não tencionamos excluir a possibilidade de colaborações voluntariosas, que
aceitaremos cordialmente, que partam de deputados e senadores ou de simples
cidadãos competentes. Temos, cada um de nós, o sentido religioso da nossa
difícil tarefa. O país conforta-nos e espera. Não lhe daremos mais palavras mas
obras. Prestamos compromisso formal e solene de sanear o orçamento e saneá-lo-emos.
Queremos conduzir uma política externa de paz, mas simultaneamente de dignidade
e firmeza: e assim faremos. Nenhum dos adversários de ontem, de hoje e de
amanhã, se iluda quanto à brevidade da nossa passagem pelo poder. Ilusões
pueris e tolas, como aquela de ontem. O nosso governo tem bases formidáveis na
consciência da Nação e é sustentado pelas melhores gerações jovens italianas.
Não há dúvida de que, nestes últimos dias, foi cumprido um passo gigantesco na
direcção da unificação dos espíritos. A Pátria italiana reencontrou-se uma vez
mais, de Norte a Sul, do continente às ilhas generosas, que não serão mais
esquecidas pela metrópole, às operosas colónias do Mediterrâneo e do Atlântico.
Não atirem, senhores, outros palavreados vãos à Nação. Cinquenta e dois
inscritos para falar acerca da minha comunicação são demasiados. Trabalhamos
mais com o coração puro e com a mente viva para assegurar a prosperidade e a
grandeza da pátria. Assim Deus me ajude a conduzir a minha árdua tarefa a um
termo vitorioso.1 Mais
recentemente, logo no início da presente crise, falando num comício do seu
partido, em Pescara (08-08-2019),
Salvini parecia
inspirado pelo Duce quando afirmou: Peço
aos italianos que queiram dar-me plenos poderes para fazer as coisas como devem
ser feitas. Temos de fazer de maneira rápida, compacta, enérgica e corajosa
aquilo que queremos fazer. Já não é mais o momento dos não, dos talvez, das
dúvidas... E, bem entendido, não me interessa voltar ao antigamente: se tenho
de ir a jogo, quero ir sozinho e de cabeça levantada. Depois, certamente,
poderemos escolher companheiros de viagem... Os italianos precisam de um
governo que faça.2 No seu discurso de demissão, perante o Senado, Comte
não deixou de verberar o comportamento de Salvini, apontando as suas
insuficiências democráticas: Caro
Matteo, ao promoveres esta crise de governo, assumiste uma grande
responsabilidade perante o país. Anunciaste esta crise pedindo 'plenos poderes'
para governar o país e recentemente
1 MUSSOLINI, Benito, My Autobiography, pp. 185-187. O
discurso completo pode ser lido em http://www.adamoli.org/benito-mussolini/pag0169-.htm 2.http://espresso.repubblica.it/palazzo/2019/08/09/news/salvini-vuole-pieni-poteri-come-disse-mussolini
1337718?refresh_ce
3 ouvi-te a pedires que saíssem às praças para te
apoiarem. O teu conceito preocupa-me. As crises de governo, de acordo com a
ordem republicana, não se resolvem nas praças, mas sim no parlamento. Salvini não se fica e aproveita para sublinhar: Os homens
e mulheres da Liga, os seus ministros, não têm medo. É gente livre, que só
responde ao povo italiano, não a Merkel ou Macron. Só responde ao povo
italiano: orgulhoso, livre e soberano. Soberano! Com uma ideia de futuro, de
filhos, de família. E de filhos que têm uma mãe e um pai! Comte, de forma quase paternal, censura-o de novo, agora
por causa da sua exibição de símbolos religiosos (o rosário que, frequentemente, saca do bolso e beija
fervorosamente): Admito que nunca to tenha dito, até porque não diz
respeito às competências de governo, mas os detentores de cargos governamentais
devem evitar, em comícios, juntar aos slogans políticos os símbolos religiosos. Salvini não hesita em justificar-se,
sublinhando a importância política que pretende ver no factor religioso: Os
italianos não votam com base no rosário, mas sim na sua cabeça e no seu
coração. Pedirei sempre a protecção do coração imaculado de Maria para toda a
Itália e não tenho vergonha disso. A fórmula
Deus-Pátria-Família parece retornar, assim, ao cenário político europeu.
Mas a incoerência da manipulação religiosa não passa sem o devido remoque. Um outro Matteo (Renzi – senador e ex-presidente do Conselho) não deixa
escapar a oportunidade e atira-lhe: Eu respeito a sua [de Salvini] fé religiosa e comparto-a,
embora com ênfases diferentes, e leio o evangelho — o Evangelho segundo Mateus,
claro! — quando diz 'eu tinha frio e tu me acolheste, eu tinha fome e tu
deste-me de comer'. Se acredita nestes valores, permita que desembarquem as
pessoas que estão presas, até agora, reféns de uma política vergonhosa! A terminar a sessão, Salvini deixa o aviso, todo ele com sabor a cem anos atrás: Ci rivedremo nelle piazze (voltaremos a ver-nos
nas praças). Sim, trata-se de ocupar a RUA, procurando, a partir daí, a
conquista do poder. Em 1922 resultou... Se, numa perspectiva histórica, não
devemos ir além do registo das semelhanças, no plano político vale a pena
acompanhar mais uma ameaça populista, sempre com a História ao nosso lado, para
percebermos se há ou não uma ‘tempestade que se avizinha’, como diria Winston
Churchill.
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