quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Mussolini, a justificar Matteo Salvini



Do blog “A BIGORNA”, de David Martelo, enviado por email por João Sena, extraio o seguinte texto, que vem dimensionar, de um ponto de vista histórico, o problema posto no texto anterior (deste blog), por Manuel Carvalho e alguns seus apoiantes, sobre a política nacionalista de Mateo Salvini, na questão dos migrantes que cruzam o Mediterrâneo, em busca de “vida”. Só desejo que Matteo Salvini não venha a terminar a sua da mesma forma escabrosa que o duce, e que a rivalidade entre comunistas e nacionalistas mantenha o equilíbrio que Giovanni Guareschi soube descrever com tanta graça no seu “Le Petit Monde de Don Camillo”, (a tradução que conheço), para além do filme com Fernandel. Mas os tempos são bem outros, a democracia não vai em graças e o mundo de Dom Camilo era mesmo pequeno, com um Peponne por antagonista, firmemente crente, naquela altura, e, sobretudo, naquela escrita superior.
PLENOS PODERES
DAVID MARTELO   “A BIGORNA”, Agosto de 2019
É a falta de memória que permite convencer milhões de pessoas de que uma ditadura não foi uma ditadura. Daniel Oliveira – Expresso/20-08-2019 A Itália que foi berço do fascismo encontra-se, de novo, à beira de uma tentação totalitária. A demissão do primeiro-ministro Giuseppe Conte, anunciada pelo próprio, em 20 de Agosto, no Senado italiano, consubstancia mais uma das inúmeras crises governamentais em que o país se vem envolvendo com perigosa frequência, sobretudo depois do desaparecimento dos partidos tradicionais, na sequência da enorme convulsão do sistema partidário ocorrida no início dos anos 1990. No seu discurso, Conte não poupou palavras de censura contra Matteo Salvini, até aí vice presidente do seu governo de coligação Liga-Movimento 5 Estrelas. Salvini há muito que se definiu como líder de um partido de extrema-direita, nacionalista e adversário da União Europeia. Embora não se afirme abertamente como inspirado pela figura de Mussolini, há no seu comportamento político linhas de acção que permitem algumas analogias. O inimigo estrangeiro de Mussolini era o Tratado de Versalhes e as potências vencedoras da 1.ª Guerra Mundial que, nas suas decisões de reformulação da Europa, haviam destratado a Itália, como se o país não tivesse, também, contribuído para a sangrenta vitória de 1918. No plano interno, não se verificando agora as violentas alterações da ordem pública do período 1919-1922, a debilidade parlamentar do presente repete, em muitos aspectos, a situação política que levaria o rei Vítor Manuel III, no imediato seguimento da Marcha sobre Roma, a convidar Mussolini para formar governo. Sim, convém recordar que, apesar do pronunciamento paramilitar dos Camisas Negras, Mussolini – tal como Hitler – alcançaria a chefia do governo num cenário de legalidade constitucional. Mussolini, na primeira vez que se apresentou perante a Câmara de Deputados, em 16 de Novembro de 1922, procurou dar conta das medidas que tomara nos dias iniciais da sua governação e tornar públicas as suas intenções e o seu programa. Dessa aparição perante os deputados, fez o próprio Mussolini a seguinte descrição: Foi uma sessão excepcional. A sala estava cheia a deitar por fora. Todos os deputados se encontravam presentes. As minhas declarações foram breves, claras e firmes. Não enganei ninguém. Estabeleci com minúcia os direitos da revolução. Chamei a atenção da audiência para o facto de somente pela vontade do Fascismo a revolução se contivera nos limites da legalidade e da tolerância. Podia ter feito, disse eu, desta sala surda e cinzenta, um bivaque de manípulos; podia ter mandado pregar as portas do Parlamento e constituir um governo exclusivamente de Fascistas. Podia: mas não quis, ao menos neste primeiro tempo. Agradeci, então, a todos os meus colaboradores e referi com simpatia a multidão de trabalhadores italianos que auxiliaram o movimento fascista com a sua solidariedade, activa ou passiva. Não apresentei um dos programas usuais, como os anteriores ministérios costumavam fazer; porque esses só resolviam os problemas do país no papel. Afirmei o meu empenho em agir e em fazê-lo sem esperar por uma oratória inútil. No campo da política externa, declarei, sem rodeios, a intenção de seguir uma “política de dignidade e de utilidade nacional”. 2 Em todos os assuntos proferi declarações fortes, que mostraram como o Fascismo tinha já sido capaz de analisar e resolver diversos problemas urgentes e de fixar as orientações futuras do governo. Por fim, concluí do seguinte modo: Senhores! De comunicações ulteriores terão oportunidade de conhecer o programa fascista em todos os pormenores e por cada um dos ministérios. Não pretendo, enquanto me for possível, governar contra a Câmara: mas a Câmara deve ter noção da sua posição particular, que a torna passível de dissolução, daqui a dois dias ou daqui a dois anos. Pedimos os plenos poderes porque queremos assumir a plena responsabilidade. Sem os plenos poderes, sabeis muitíssimo bem que não se faria uma lira – digo uma lira – de economia. Com isso não tencionamos excluir a possibilidade de colaborações voluntariosas, que aceitaremos cordialmente, que partam de deputados e senadores ou de simples cidadãos competentes. Temos, cada um de nós, o sentido religioso da nossa difícil tarefa. O país conforta-nos e espera. Não lhe daremos mais palavras mas obras. Prestamos compromisso formal e solene de sanear o orçamento e saneá-lo-emos. Queremos conduzir uma política externa de paz, mas simultaneamente de dignidade e firmeza: e assim faremos. Nenhum dos adversários de ontem, de hoje e de amanhã, se iluda quanto à brevidade da nossa passagem pelo poder. Ilusões pueris e tolas, como aquela de ontem. O nosso governo tem bases formidáveis na consciência da Nação e é sustentado pelas melhores gerações jovens italianas. Não há dúvida de que, nestes últimos dias, foi cumprido um passo gigantesco na direcção da unificação dos espíritos. A Pátria italiana reencontrou-se uma vez mais, de Norte a Sul, do continente às ilhas generosas, que não serão mais esquecidas pela metrópole, às operosas colónias do Mediterrâneo e do Atlântico. Não atirem, senhores, outros palavreados vãos à Nação. Cinquenta e dois inscritos para falar acerca da minha comunicação são demasiados. Trabalhamos mais com o coração puro e com a mente viva para assegurar a prosperidade e a grandeza da pátria. Assim Deus me ajude a conduzir a minha árdua tarefa a um termo vitorioso.1 Mais recentemente, logo no início da presente crise, falando num comício do seu partido, em Pescara (08-08-2019), Salvini parecia inspirado pelo Duce quando afirmou: Peço aos italianos que queiram dar-me plenos poderes para fazer as coisas como devem ser feitas. Temos de fazer de maneira rápida, compacta, enérgica e corajosa aquilo que queremos fazer. Já não é mais o momento dos não, dos talvez, das dúvidas... E, bem entendido, não me interessa voltar ao antigamente: se tenho de ir a jogo, quero ir sozinho e de cabeça levantada. Depois, certamente, poderemos escolher companheiros de viagem... Os italianos precisam de um governo que faça.2 No seu discurso de demissão, perante o Senado, Comte não deixou de verberar o comportamento de Salvini, apontando as suas insuficiências democráticas: Caro Matteo, ao promoveres esta crise de governo, assumiste uma grande responsabilidade perante o país. Anunciaste esta crise pedindo 'plenos poderes' para governar o país e recentemente
1 MUSSOLINI, Benito, My Autobiography, pp. 185-187. O discurso completo pode ser lido em http://www.adamoli.org/benito-mussolini/pag0169-.htm  2.http://espresso.repubblica.it/palazzo/2019/08/09/news/salvini-vuole-pieni-poteri-come-disse-mussolini 1337718?refresh_ce
3 ouvi-te a pedires que saíssem às praças para te apoiarem. O teu conceito preocupa-me. As crises de governo, de acordo com a ordem republicana, não se resolvem nas praças, mas sim no parlamento. Salvini não se fica e aproveita para sublinhar: Os homens e mulheres da Liga, os seus ministros, não têm medo. É gente livre, que só responde ao povo italiano, não a Merkel ou Macron. Só responde ao povo italiano: orgulhoso, livre e soberano. Soberano! Com uma ideia de futuro, de filhos, de família. E de filhos que têm uma mãe e um pai! Comte, de forma quase paternal, censura-o de novo, agora por causa da sua exibição de símbolos religiosos (o rosário que, frequentemente, saca do bolso e beija fervorosamente): Admito que nunca to tenha dito, até porque não diz respeito às competências de governo, mas os detentores de cargos governamentais devem evitar, em comícios, juntar aos slogans políticos os símbolos religiosos. Salvini não hesita em justificar-se, sublinhando a importância política que pretende ver no factor religioso: Os italianos não votam com base no rosário, mas sim na sua cabeça e no seu coração. Pedirei sempre a protecção do coração imaculado de Maria para toda a Itália e não tenho vergonha disso. A fórmula Deus-Pátria-Família parece retornar, assim, ao cenário político europeu. Mas a incoerência da manipulação religiosa não passa sem o devido remoque. Um outro Matteo (Renzi – senador e ex-presidente do Conselho) não deixa escapar a oportunidade e atira-lhe: Eu respeito a sua [de Salvini] fé religiosa e comparto-a, embora com ênfases diferentes, e leio o evangelho — o Evangelho segundo Mateus, claro! — quando diz 'eu tinha frio e tu me acolheste, eu tinha fome e tu deste-me de comer'. Se acredita nestes valores, permita que desembarquem as pessoas que estão presas, até agora, reféns de uma política vergonhosa! A terminar a sessão, Salvini deixa o aviso, todo ele com sabor a cem anos atrás: Ci rivedremo nelle piazze (voltaremos a ver-nos nas praças). Sim, trata-se de ocupar a RUA, procurando, a partir daí, a conquista do poder. Em 1922 resultou... Se, numa perspectiva histórica, não devemos ir além do registo das semelhanças, no plano político vale a pena acompanhar mais uma ameaça populista, sempre com a História ao nosso lado, para percebermos se há ou não uma ‘tempestade que se avizinha’, como diria Winston Churchill.

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