O “Sermão
de Santo António aos Peixes”. Não porque não seja importante o que propõe o
Dr. Salles, mas por idêntica falha na atenção dos homens, perante a gravidade
do que aponta, embora diferente da temática moralista desenvolvida por Vieira –
e isso estabelece, talvez, o paralelo com a atitude irónica do orador clássico,
de pregar aos peixes. Mas fica sempre o nosso apreço pelo entusiasmo do Dr.
Salles, em aventurar-se na crítica e orientação, quer com mais profundidade,
quer com mais singeleza a que não falta o sentido crítico do seu humor são e do
seu amor pátrio.
Sim, julgo que não nos faltam entusiastas que apelam a uma mudança nos nossos comportamentos de trazer por casa – no caso do texto do Dr. Salles, vinculando a necessidade de mais esforço com exercícios de leitura e escrita que impliquem uma elaboração mais acertada do pensamento. Mas a escrita, nos primeiros anos do nosso ensino, sendo bastante redutível a cruzes sobre hipotéticas respostas a perguntas, não dá azo a grande elaboração pessoal do pensamento escrito, além de muitas outras formas de facilitação do discurso, em que a leitura é imprescindível, o que, acrescido dos telemóveis auxiliares da comunicação a distância e manipuladores do tempo que poderia a elas ser destinado, embora cada vez mais em desuso, julgo que o Dr. Salles terá muito ainda que batalhar, sem desistir, como fez Vieira, aparentemente, falando aos peixes da sua sátira vibrante. A nós, resta-nos agradecer estas intervenções suas e dos seus comentadores, que bem se desejaria que não caíssem totalmente em ouvidos surdos, ou no saco roto da nossa condição desatenta.
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A BEM DE NAÇÃO, 25.07.22
"língua A criança chora para expressar uma necessidade; grita para afirmar
algo que não sabe expressar de outro modo; faz birra quando lhe recusam
ou tardam na satisfação de um desejo. À medida que vai crescendo, por imitação
e compreensão progressiva, vai juntando novas formas de expressão, as suas
capacidades cognitivas vão crescendo do nível imitativo, do raciocínio empírico
até que… se aposenta como cientista de renome. A menos que – por vontade
própria ou alheia – tenha ficado pelo caminho.
Deixemos por momentos o grande cientista no seu recato
de estudo e desçamos à rua.
E que ouvimos nós?
Por contraste com as subtilezas linguísticas do
cientista que se refere ao passado por «foi, terá sido, poderia ter sido…», ao
presente por «é, poderá ser…» e ao futuro «será, poderá vir a ser, talvez seja»
e do iletrado ouviremos formas simplistas: de passado (foste), presente (és)
e futuro (vais ser). E quanto mais elementar o nível de instrução, mais
simplista a expressão até ao estágio da pronúncia deturpada e quase
incompreensível.
Do cientista, ouviremos raciocínios
especulativo-dedutivo-conclusivos; do iletrado, ouviremos observações empíricas
e pouco mais.
* * *
Primeira
conclusão: - A subtileza linguística resulta da
necessidade de expressão relativa a raciocínios elaborados; as formas simples
da linguagem resultam da inexistência de raciocínios elaborados a expressar.
Segunda
conclusão: - A mente determina a formulação da
linguagem no sentido de que a palavra serve a mente; não existe aqui uma
relação biunívoca.
* * *
Mais ou menos elaboradamente, não nos exprimimos por
geração espontânea, fazemo-lo segundo uma tradição etimológica a qual, em boa
verdade, serve de porta a obstar a derivas e extravagâncias fónicas.
Quando, oficialmente, se corta a relação etimológica,
a língua corre o grave risco da tal deriva errática e das influências fónicas. Se a esta deriva se juntar a
moda telegráfica da simplificação sintáctica, teremos não a democratização
da língua mas, sim, a sua boçalização.
Terceira
conclusão: - É fundamental manter uma língua (a
portuguesa, claro!) que sirva as necessidades da expressão erudita.
Julho de 2022
COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca
Adriano Miranda Lima 26.07.2022 13:37:
Sr. Dr. Salles da fonseca, esta sua reflexão é a um
tempo um ensinamento, um desafio e um estímulo para o leitor. O leitor
habilitado em Linguística ou o processo de formação da linguagem sentir-se-á em
condições de contribuir para o aprofundamento e enriquecimento da matéria aqui
tratada. O leitor comum mas interessado sente-se tentado a sugerir e, quem
sabe, a apontar pistas para o alargamento da discussão, ainda que com o risco
de cometer calinadas. Estou na segunda situação. Permito-me algumas
considerações que podem colidir com conclusões aqui formuladas ou então abrir
janelas para a sua clarificação. Primeiro, para mim não é muito clara a
ausência de relação biunívoca entre a linguagem e a mente. A linguagem é o produto
de um processo complexo que envolve uma rede de neurónios em diferentes regiões
do cérebro. Uma vez produzida a linguagem, com maior ou menor grau de
sofisticação do seu nível de expressão e comunicação,
sou levado a pensar, por mera conclusão empírica, que no cérebro se instalam
pré-disposições cognitivas e pragmáticas susceptíveis de estimular, agilizar,
aprofundar e dimensionar a competência linguística com ganhos de semântica,
lexicologia, sintaxe e, sobretudo, estilística. Digamos que quanto mais
é exercitado o cérebro mais é estimulada a linguagem quer a falada como a
escrita. Pelo menos é o que me diz a minha experiência pessoal. Para mim não
é também muito nítida que raciocínios elaborados originem necessariamente
linguagem elaborada e ao mesmo tempo eficaz como processo de comunicação e
transmissão de conhecimentos. Há filósofos cujos textos têm de ser lidos e
relidos sucessivamente para se poder apreender o conteúdo. Seduz a leitura
da fraseologia e das proposições que suportam o raciocínio, mas muitas vezes
fica pelo caminho a ligação intelectiva entre a verbalização e a objectivação
tencionada pelo autor do texto. Quando muito, fica uma ideia muito
genérica. É como o resíduo que fica no fundo da panela após a fervura de algo
por um tempo muito para lá do necessário. Tive professores que cuidavam
excessivamente da linguagem rebuscada e aprimorada e no fim da lição muitas
vezes o objecto da aprendizagem ficava aquém do turbilhão comunicativo. Outros tive
que, como se dizia, traduziam por miúdos o que à partida se apresentava
amalgamado e confuso. Para isso, considero que é preciso como que uma
espécie de arte para interpretar a realidade e apresentá-la tal como é,
libertando-a do que pode não ser mais do que artifícios criados por um compromisso
entre a linguagem e derivas de personalidade.
Amiúde releio certos filósofos para preencher lacunas deixadas por leituras
anteriores. Raramente com grande sucesso, a não ser recuperar linhas gerais que
com o tempo se esbateram.
Quanto à linguagem do iletrado, é certo que ela é de base empírica e por isso
normalmente boçal. Não se pode esperar sofisticação no verbo de quem não
recebeu instrução escolar. Contudo, não é incomum ficarmos admirados com a
infalibilidade e objectividade da comunicação de quem interpreta directamente
os fenómenos da natureza, dispensando a intermediação de letrados.
Anónimo 26.07.2022 15:26: Não sou dos que tendem a comparar a minha geração com
outras, para concluir saudosamente que “no meu tempo é que era”. Cada geração
tem as suas caraterísticas, melhores ou piores, mas certamente insusceptível de
ser considerada “rasca” (et pour cause?), como já ouvi e li. Desconheço o que
se passa actualmente no Ensino e – erro meu – tenho passado por cima do
suplemento sobre Educação que o “JL” traz invariavelmente em todos os seus
números. É que o Ensino, como frisa o Prof. Adriano Moreira, é um elemento de
soberania, não de mercado.
Recordo-me de algumas coisas do nosso tempo de estudantes, Henrique. Éramos
“classificados” em 4 conjuntos - tem jeito, ou não, para as matemáticas, tem
jeito, ou não, para línguas – e esses conjuntos, naturalmente, interceptavam-se.
No que concerne a línguas, referia-se, em geral, a inglês ou a francês,
escapando deste leque o português, porquanto não constitua um escolho na
aprendizagem. Jogávamos à bola na rua, com risco de partir algum vidro de
janela de rés-do-chão, ou de ter de fugir do polícia, mas líamos Júlio Verne e
Emilio Salgari, para além de “O Cavaleiro Andante” Podíamos não saber o nome do
autor do livro “A Cabana do Pai Tomás”, mas também o líamos. Era com entusiasmo
que víamos aparecer a carrinha “bibliotecas itinerantes da Fundação
Gulbenkian”, graças à iniciativa de um teu familiar muito próximo. Quando
adolescentes, estudiosos de literatura, líamos, se não os livros clássicos
integrais, pelo menos, partes deles (hoje, tenho dúvidas que mesmo nos Cursos
Universitários de Filologia haja leituras integrais de livros clássicos). Não
nos era estranho o delicioso arroz de favas de Tormes, mesmo para quem não
gostasse (como é o meu caso) de favas.
Receio que os instrumentos informáticos e outras situações apelativas
impeçam as novas gerações de se dedicarem, com a profundidade desejável, à
leitura, que é, como sabemos, um instrumento importante para desenvolver o
conhecimento, designadamente o domínio da língua. Haja a clarividência para
utilizar aqueles instrumentos electrónicos para incentivar a leitura do livro
digital. Como te recordarás, a título de consolação por termos de saber as
demonstrações de dezenas de teoremas em Matemáticas Gerais, diziam-nos “isto
não interessa nada para a vida prática, mas ajuda a desenvolver o raciocínio”. Temo
que os vários agentes de Ensino – professores, famílias e alunos – não tenham a
percepção que aquele pode proporcionar, proporciona, uma igualdade de
oportunidades que atenua as assimetrias e privilégios de família (eu ainda
apanhei, embora numa fase já muito esbatida, a influência do nome de família na
atribuição de nota). A Cultura, onde o domínio da Língua se insere, é
fundamental para que, como diz o Nobel peruano Vargas Llosa, o “mundo do futuro
não fique dividido entre analfabetos funcionais e especialistas ignaros e
insensíveis.”
Apresentação de livros, incentivo à leitura, aperfeiçoamento da Língua
Portuguesa, tudo isso é marginal nos órgãos de comunicação social, mesmo por
parte de quem, sendo por todos nós subsidiado, teria especiais
responsabilidades neste domínio. Abraço amigo. Carlos Traguelho
Adriano Miranda Lima 26.07.2022 21:23
Cinjo-me
agora à terceira e última conclusão, que considero absolutamente pertinente e
importante. Nas considerações do meu comentário anterior, procurei opinar sobre
a linguagem e a sua relação com a capacidade intelectual e o nível cultural.
Agora, conforme decorre daquela conclusão, ocorre falar da língua propriamente
dita e do seu papel como instrumento de comunicação e expressão do pensamento
mediante a escolha, selecção, formulação das palavras e aplicação das regras
gramaticais e sintaxe. Tem toda a razão o Dr. Salles da Fonseca quando conclui
que a língua (a nossa) deve poder satisfazer as necessidades da expressão
erudita. Não há dúvida que a nossa língua preenche e satisfaz todos os
requisitos nesse sentido porque possui uma grande riqueza lexicológica,
fonológica e expressionista. Lembro-me de o Baptista Bastos afirmar que não
devemos recear o uso de todos os vocábulos da nossa língua, mesmo aqueles que
com o tempo podem ir caindo no olvido. Para ele, isso deve constituir um
imperativo se quisermos preservar a riqueza integral da nossa língua.
Por outro lado, considero que é atentar contra a nossa identidade linguística
usar e abusar de estrangeirismos, principalmente anglicismos, na nossa
comunicação, prática que é bastante comum como forma de evidenciar erudição.
Acho isso errado porque a língua portuguesa tem um vocabulário que cobre todas
as necessidades na área científica e mesmo nas modernas tecnologias. Por
exemplo, por que não dizer sítio em vez de site? Mesmo vocábulos ou expressões
novas que sejam introduzidas no âmbito das tecnologias ou das ciências, podem
ter tradução, ainda que com adaptações gráficas.
Também me lembro de o meu professor de português, citando Eça, afirmar que, ao
falarmos uma língua estrangeira, é um acto de patriotismo fazer questão de não
disfarçar o sotaque natural da nossa língua. Aliás é o que fazem os franceses e
os espanhóis e outros povos.
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