quarta-feira, 27 de julho de 2022

Alturas de rever


O “Sermão de Santo António aos Peixes”. Não porque não seja importante o que propõe o Dr. Salles, mas por idêntica falha na atenção dos homens, perante a gravidade do que aponta, embora diferente da temática moralista desenvolvida por Vieira – e isso estabelece, talvez, o paralelo com a atitude irónica do orador clássico, de pregar aos peixes. Mas fica sempre o nosso apreço pelo entusiasmo do Dr. Salles, em aventurar-se na crítica e orientação, quer com mais profundidade, quer com mais singeleza a que não falta o sentido crítico do seu humor são e do seu amor pátrio.

Sim, julgo que não nos faltam entusiastas que apelam a uma mudança nos nossos comportamentos de trazer por casa – no caso do texto do Dr. Salles, vinculando a necessidade de mais esforço com exercícios de leitura e escrita que impliquem uma elaboração mais acertada do pensamento. Mas a escrita, nos primeiros anos do nosso ensino, sendo bastante redutível a cruzes sobre hipotéticas respostas a perguntas, não dá azo a grande elaboração pessoal do pensamento escrito, além de muitas outras formas de facilitação do discurso, em que a leitura é imprescindível, o que, acrescido dos telemóveis auxiliares da comunicação a distância e manipuladores do tempo que poderia a elas ser destinado, embora cada vez mais em desuso, julgo que o Dr. Salles terá muito ainda que batalhar, sem desistir, como fez Vieira, aparentemente, falando aos peixes da sua sátira vibrante. A nós, resta-nos agradecer estas intervenções suas e dos seus comentadores, que bem se desejaria que não caíssem totalmente em ouvidos surdos, ou no saco roto da nossa condição desatenta.

DA MENTE E DA PALAVRA

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DE NAÇÃO,  25.07.22

"língua A criança chora para expressar uma necessidade; grita para afirmar algo que não sabe expressar de outro modo; faz birra quando lhe recusam ou tardam na satisfação de um desejo. À medida que vai crescendo, por imitação e compreensão progressiva, vai juntando novas formas de expressão, as suas capacidades cognitivas vão crescendo do nível imitativo, do raciocínio empírico até que… se aposenta como cientista de renome. A menos que – por vontade própria ou alheia – tenha ficado pelo caminho.

Deixemos por momentos o grande cientista no seu recato de estudo e desçamos à rua.

E que ouvimos nós? 

Por contraste com as subtilezas linguísticas do cientista que se refere ao passado por «foi, terá sido, poderia ter sido…», ao presente por «é, poderá ser…» e ao futuro «será, poderá vir a ser, talvez seja» e do iletrado ouviremos formas simplistas: de passado (foste), presente (és)  e futuro (vais ser). E quanto mais elementar o nível de instrução, mais simplista a expressão até ao estágio da pronúncia deturpada e quase incompreensível.

Do cientista, ouviremos raciocínios especulativo-dedutivo-conclusivos; do iletrado, ouviremos observações empíricas e pouco mais.

* * *

Primeira conclusão: - A subtileza linguística resulta da necessidade de expressão relativa a raciocínios elaborados; as formas simples da linguagem resultam da inexistência de raciocínios elaborados a expressar.

Segunda conclusão: - A mente determina a formulação da linguagem no sentido de que a palavra serve a mente; não existe aqui uma relação biunívoca.

* * *

Mais ou menos elaboradamente, não nos exprimimos por geração espontânea, fazemo-lo segundo uma tradição etimológica a qual, em boa verdade, serve de porta a obstar a derivas e extravagâncias fónicas.

Quando, oficialmente, se corta a relação etimológica, a língua corre o grave risco da tal deriva errática e das influências fónicas. Se a esta deriva se juntar a moda telegráfica da simplificação sintáctica, teremos não a democratização da língua mas, sim, a sua boçalização.

Terceira conclusão: - É fundamental manter uma língua (a portuguesa, claro!) que sirva as necessidades da expressão erudita.

Julho de 2022

COMENTÁRIOS

Henrique Salles da Fonseca

 Adriano Miranda Lima  26.07.2022  13:37: Sr. Dr. Salles da fonseca, esta sua reflexão é a um tempo um ensinamento, um desafio e um estímulo para o leitor. O leitor habilitado em Linguística ou o processo de formação da linguagem sentir-se-á em condições de contribuir para o aprofundamento e enriquecimento da matéria aqui tratada. O leitor comum mas interessado sente-se tentado a sugerir e, quem sabe, a apontar pistas para o alargamento da discussão, ainda que com o risco de cometer calinadas. Estou na segunda situação. Permito-me algumas considerações que podem colidir com conclusões aqui formuladas ou então abrir janelas para a sua clarificação. Primeiro, para mim não é muito clara a ausência de relação biunívoca entre a linguagem e a mente. A linguagem é o produto de um processo complexo que envolve uma rede de neurónios em diferentes regiões do cérebro. Uma vez produzida a linguagem, com maior ou menor grau de sofisticação do seu nível de expressão e comunicação,
sou levado a pensar, por mera conclusão empírica, que no cérebro se instalam pré-disposições cognitivas e pragmáticas susceptíveis de estimular, agilizar, aprofundar e dimensionar a competência linguística com ganhos de semântica, lexicologia, sintaxe e, sobretudo, estilística. Digamos que quanto mais é exercitado o cérebro mais é estimulada a linguagem quer a falada como a escrita. Pelo menos é o que me diz a minha experiência pessoal. Para mim não é também muito nítida que raciocínios elaborados originem necessariamente linguagem elaborada e ao mesmo tempo eficaz como processo de comunicação e transmissão de conhecimentos. Há filósofos cujos textos têm de ser lidos e relidos sucessivamente para se poder apreender o conteúdo. Seduz a leitura da fraseologia e das proposições que suportam o raciocínio, mas muitas vezes fica pelo caminho a ligação intelectiva entre a verbalização e a objectivação tencionada pelo autor do texto. Quando muito, fica uma ideia muito genérica. É como o resíduo que fica no fundo da panela após a fervura de algo por um tempo muito para lá do necessário. Tive professores que cuidavam excessivamente da linguagem rebuscada e aprimorada e no fim da lição muitas vezes o objecto da aprendizagem ficava aquém do turbilhão comunicativo. Outros tive que, como se dizia, traduziam por miúdos o que à partida se apresentava amalgamado e confuso. Para isso, considero que é preciso como que uma espécie de arte para interpretar a realidade e apresentá-la tal como é, libertando-a do que pode não ser mais do que artifícios criados por um compromisso entre a linguagem e derivas de personalidade.
Amiúde releio certos filósofos para preencher lacunas deixadas por leituras anteriores. Raramente com grande sucesso, a não ser recuperar linhas gerais que com o tempo se esbateram.
Quanto à linguagem do iletrado, é certo que ela é de base empírica e por isso normalmente boçal. Não se pode esperar sofisticação no verbo de quem não recebeu instrução escolar. Contudo, não é incomum ficarmos admirados com a infalibilidade e objectividade da comunicação de quem interpreta directamente os fenómenos da natureza, dispensando a intermediação de letrados.

 Anónimo  26.07.2022  15:26: Não sou dos que tendem a comparar a minha geração com outras, para concluir saudosamente que “no meu tempo é que era”. Cada geração tem as suas caraterísticas, melhores ou piores, mas certamente insusceptível de ser considerada “rasca” (et pour cause?), como já ouvi e li. Desconheço o que se passa actualmente no Ensino e – erro meu – tenho passado por cima do suplemento sobre Educação que o “JL” traz invariavelmente em todos os seus números. É que o Ensino, como frisa o Prof. Adriano Moreira, é um elemento de soberania, não de mercado.
Recordo-me de algumas coisas do nosso tempo de estudantes, Henrique. Éramos “classificados” em 4 conjuntos - tem jeito, ou não, para as matemáticas, tem jeito, ou não, para línguas – e esses conjuntos, naturalmente, interceptavam-se. No que concerne a línguas, referia-se, em geral, a inglês ou a francês, escapando deste leque o português, porquanto não constitua um escolho na aprendizagem. Jogávamos à bola na rua, com risco de partir algum vidro de janela de rés-do-chão, ou de ter de fugir do polícia, mas líamos Júlio Verne e Emilio Salgari, para além de “O Cavaleiro Andante” Podíamos não saber o nome do autor do livro “A Cabana do Pai Tomás”, mas também o líamos. Era com entusiasmo que víamos aparecer a carrinha “bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian”, graças à iniciativa de um teu familiar muito próximo. Quando adolescentes, estudiosos de literatura, líamos, se não os livros clássicos integrais, pelo menos, partes deles (hoje, tenho dúvidas que mesmo nos Cursos Universitários de Filologia haja leituras integrais de livros clássicos). Não nos era estranho o delicioso arroz de favas de Tormes, mesmo para quem não gostasse (como é o meu caso) de favas.
Receio que os instrumentos informáticos e outras situações apelativas impeçam as novas gerações de se dedicarem, com a profundidade desejável, à leitura, que é, como sabemos, um instrumento importante para desenvolver o conhecimento, designadamente o domínio da língua. Haja a clarividência para utilizar aqueles instrumentos electrónicos para incentivar a leitura do livro digital. Como te recordarás, a título de consolação por termos de saber as demonstrações de dezenas de teoremas em Matemáticas Gerais, diziam-nos “isto não interessa nada para a vida prática, mas ajuda a desenvolver o raciocínio”. Temo que os vários agentes de Ensino – professores, famílias e alunos – não tenham a percepção que aquele pode proporcionar, proporciona, uma igualdade de oportunidades que atenua as assimetrias e privilégios de família (eu ainda apanhei, embora numa fase já muito esbatida, a influência do nome de família na atribuição de nota). A Cultura, onde o domínio da Língua se insere, é fundamental para que, como diz o Nobel peruano Vargas Llosa, o “mundo do futuro não fique dividido entre analfabetos funcionais e especialistas ignaros e insensíveis.”
Apresentação de livros, incentivo à leitura, aperfeiçoamento da Língua Portuguesa, tudo isso é marginal nos órgãos de comunicação social, mesmo por parte de quem, sendo por todos nós subsidiado, teria especiais responsabilidades neste domínio. Abraço amigo.
Carlos Traguelho

 Adriano Miranda Lima  26.07.2022  21:23

Cinjo-me agora à terceira e última conclusão, que considero absolutamente pertinente e importante. Nas considerações do meu comentário anterior, procurei opinar sobre a linguagem e a sua relação com a capacidade intelectual e o nível cultural. Agora, conforme decorre daquela conclusão, ocorre falar da língua propriamente dita e do seu papel como instrumento de comunicação e expressão do pensamento mediante a escolha, selecção, formulação das palavras e aplicação das regras gramaticais e sintaxe. Tem toda a razão o Dr. Salles da Fonseca quando conclui que a língua (a nossa) deve poder satisfazer as necessidades da expressão erudita. Não há dúvida que a nossa língua preenche e satisfaz todos os requisitos nesse sentido porque possui uma grande riqueza lexicológica, fonológica e expressionista. Lembro-me de o Baptista Bastos afirmar que não devemos recear o uso de todos os vocábulos da nossa língua, mesmo aqueles que com o tempo podem ir caindo no olvido. Para ele, isso deve constituir um imperativo se quisermos preservar a riqueza integral da nossa língua.
Por outro lado, considero que é atentar contra a nossa identidade linguística usar e abusar de estrangeirismos, principalmente anglicismos, na nossa comunicação, prática que é bastante comum como forma de evidenciar erudição. Acho isso errado porque a língua portuguesa tem um vocabulário que cobre todas as necessidades na área científica e mesmo nas modernas tecnologias. Por exemplo, por que não dizer sítio em vez de site? Mesmo vocábulos ou expressões novas que sejam introduzidas no âmbito das tecnologias ou das ciências, podem ter tradução, ainda que com adaptações gráficas.
Também me lembro de o meu professor de português, citando Eça, afirmar que, ao falarmos uma língua estrangeira, é um acto de patriotismo fazer questão de não disfarçar o sotaque natural da nossa língua. Aliás é o que fazem os franceses e os espanhóis e outros povos.


 

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