sábado, 2 de julho de 2022

Uma brasa que aquece e irradia…


…reflexão e saber, por isso aquece e ilumina, e não só a sardinha própria, mas as sardinhas alheias dispostas a servir-se da mesma brasa, naturalmente. Estou a utilizar o conceito popularucho de um dos comentadores, que naturalmente despreza a brasa que JNP puxa, não só para a sua sardinha mas, bem altruisticamente, para o cardume inteiro dos que o saboreiam com a degustação com que eu própria o faço, embora consciente de que a idade já não absorve todo esse calor e luz irradiantes, como gostaria, perdurando, todavia, sempre, a admiração.

Uma nova Guerra Fria?

Se olharmos ao número e à geografia dos Estados alinhados contra Moscovo e dos que se mantêm neutros, deparamos com o que poderá configurar-se como uma segunda edição de "The West against The Rest".

JAIME  NOGUEIRA PINTO, Colunista do OBSERVADOR

OBSERVADOR, 02 jul 2022, 00:189

Os grandes conflitos estiveram sempre na origem das grandes mudanças, não só na repartição territorial e na hierarquia dos Estados mas também nos valores e princípios inspiradores e legitimadores da ordem internacional.

Foi da Guerra dos 30 Anos que nasceu a ordem consagrada pelos Tratados de Vesfália, com a secularização dos poderes estatais e das razões da paz e da guerra. Adoptaram-se então regras comuns na relação entre as potências do Jus Publicum Europaeum que as diplomacias do século XVIII passaram a seguir. Das guerras da Revolução e do Império nasceu a ordem do constitucionalismo liberal, que depois de uma temporária restauração dos valores do Ancien Régime, dominou os Estados europeus e se estendeu aos novos Estados independentes do continente americano.

O mundo dos finais do século XIX era um mundo eurocêntrico de monarquias constitucionais, umas mais conservadoras, outras mais liberais – com as excepções das repúblicas francesa e suíça. À margem do sistema liberal, embora não ostracizada, ficava a Rússia czarista, que se olhava como um baluarte do cristianismo e da tradição e mantinha, nas suas classes dirigentes, um duelo surdo entre eslavófilos e europeizantes. A guerra da Crimeia, em que a Rússia enfrentou o Império Otomano, aliado dos franceses e dos ingleses, foi amargamente vista por Dostoievsky como uma traição das nações do Ocidente à Cristandade. A derrota na guerra e a morte do czar conservador Nicolau I levaram ao poder Alexandre II, que libertou os servos e procedeu a reformas liberalizantes. Mas o czar reformista foi assassinado à bomba em 13 de Março de 1881 pelos populistas do Narodnaïa Volia.

Os Estados europeus do final do século XIX agiam segundo as regras da Realpolitik, afirmando claramente, e às vezes arrogantemente, os seus interesses nacionais e os desígnios imperiais que os levavam à partilha de outros continentes – onde, entretanto, se esboçavam as primeiras reacções ao imperialismo.

As guerras do século XX

A guerra de 1914-1918 veio acabar com essa ordem. Os impérios centrais – alemão, austro-húngaro e otomano – saíram destruídos da Grande Guerra e nos seus territórios surgiram uma multiplicidade de nações: umas, na Europa, tornaram-se independentes; outras, no Médio Oriente e em África, passaram a outras tutelas e subordinações. Mas o resultado mais importante do conflito foi a Revolução Soviética de 1917, com o triunfo, num grande Estado da Eurásia, de uma ideologia política revolucionária, messiânica e internacionalista, com ambições de exportar a sua verdade e o seu modelo de sociedade a todo o globo.

As ideias, as ideologias, os movimentos e os regimes são reactivos, e a relação amigo-inimigo é o motor mais forte e dinâmico da razão política, que reage na razão directa do perigo. Assim, o medo do comunismo levou a soluções radicais de estado de excepção, com o apoio das nascentes classes médias. Nestas reacções anti-comunistas, além de movimentos populares totalitários, como o fascismo, que triunfou em Itália em Outubro de 22, contam-se, sobretudo, soluções nacionais-autoritárias, geralmente patrocinadas pelos exércitos, como a ditadura de Primo de Rivera, em Espanha, o Estado Novo em Portugal e uma série de movimentos semelhantes na Europa Oriental e nos Balcãs.

Entre as duas guerras, estas soluções propagaram-se pelo mundo não-europeu, num clima reforçado pela grande crise do capitalismo euro-americano que levou ao poder, por via democrática e eleitoral, o Partido Nacional-Socialista de Adolfo Hitler. Hitler reclamava um destino messiânico para o povo alemão e pretendia rasgar o Tratado de Versalhes.

Desta conjuntura veio a Segunda Guerra Mundial e, com ela, o fim do mundo eurocêntrico e a passagem do grande poder político-militar para uma potência da Eurásia – a União Soviética – e outra da América – os Estados Unidos. A Europa e o globo ficaram divididos por critérios e padrões ideológicos, que, teoricamente, opunham um mundo livre, democrático e liberal, a um mundo comunista e totalitário. Só que, do lado do “mundo livre”, estavam muitos poderes não-liberais, já que a divisão amigo-inimigo se fazia com base no anticomunismo.

O desfecho final da Guerra Fria, em 1989-1991, ficou a dever-se ao isolamento progressivo da URSS, conseguido pela Administração Reagan nos anos que precederam a queda final de Moscovo com a aliança de duas potências não-liberias: a monarquia absoluta e religiosa saudita e a China comunista. A Arábia Saudita ajudou Washington a degradar economicamente a União Soviética, fazendo baixar os preços do petróleo com aumentos de produção; e a abertura de Nixon e Kissinger à China de Mao,  a partir dos anos 70, levou a que o comunismo de Pequim se juntasse ao capitalismo liberal de Washington para combater o inimigo comum.

Assim, a vitória final do Ocidente na Guerra Fria teve como elemento determinante a inclusão na aliança anti-soviética de Estados autocráticos. Henry Kissinger lembrá-lo-ia várias vezes, voltando recentemente a fazê-lo para criticar a pretensão da Administração Biden de fazer do confronto com a Rússia uma luta entre democracias e autocracias.

No pós-Guerra Fria houve alguma euforia interpretativa entre os vencedores, com a tentativa, teorizada por Fukuyama e impulsionada pelos neoconservadores, de estender a todo o globo o modelo liberal democrático anglo-saxónico de pluralismo partidário competitivo e de economia de mercado. Nos últimos 30 anos, os factos desmentiram a teoria e negaram a prática – com o terrorismo jihadista dos princípios do século XXI, a afirmação de tendências nacionais autocráticas em potências regionais, como a Rússia e a Turquia, e a coexistência do capitalismo com uma direcção política central comunista, na República Popular da China.

Transição

Mas se a ordem global das democracias liberais inaugurada no fim da Guerra Fria estava já posta em causa em importantes partes do mundo antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, foi a invasão que a veio definitivamente desafiar. Os europeus tinham-se habituado a assistir, com o olhar complacente e eurocêntrico dos “civilizados”, a conflitos semelhantes no resto do mundo; mas no dia 24 de Fevereiro, o direito de guerra e de paz, estabelecido pela Carta das Nações Unidas e condenatório da guerra de agressão era, pela primeira vez, violado dentro de fronteiras europeias.

A guerra na Europa Oriental veio, assim, desferir um golpe sério à ordem liberal e a uma globalização já ferida pela pandemia. Moscovo rasgou um protocolo sobre a guerra e a paz que parecia intocável, embora várias vezes tivesse sido violado noutros continentes (considerados, para o efeito, “periféricos”).

Que ordem sairá deste conflito e dos seus resultados? Não deixando de condenar a invasão russa, que trouxe a guerra de volta à Europa e a desgraça a milhões de ucranianos, não podemos ignorar as culpas do Ocidente – dos Estados Unidos e da Europa – na condução da resposta.

Além da imprudente declaração de Biden de que os Estados Unidos nunca entrariam em guerra com a Rússia, passível de ser interpretada por Putin como um subtil convite à invasão, ignorou-se levianamente todo um dossier de avisos cautelares, de George Kennan a Henry Kissinger, sobre a susceptibilidade securitária de Moscovo e de uma Rússia tantas vezes invadida e devastada por mongóis, polacos, suecos, franceses e alemães.

A política euroamericana de resposta à invasão tem também sido prolífera noutros erros. Até agora, as sanções contribuíram essencialmente para encher os cofres da Rússia e estimular a unidade pela negativa de países com valores tão diferentes como a China, a Índia, a Turquia, o Brasil e o México. A Rússia passou a vender por um preço mais alto o seu petróleo e o seu gás, com Putin a dar-se luxo de cortar o fornecimento aos sancionadores; e entre os Estados que se recusaram a alinhar com as políticas euro-americanas de segregação e punição de Moscovo contam-se mais de metade dos Estados da União Africana, a China, a Índia e parte substancial dos países da América Latina e da Ásia.

Os 7 no castelo de Elmau e a NATO em Madrid

No Castelo de Elmau, na Baviera, os sete mais ricos parecem ter chegado a acordo quanto ao controlo dos preços do petróleo para travar os ganhos russos e a inflação, deixando a cada Estado o estudo da forma técnica de o conseguir. A limitação dos preços (“price caps”), sobretudo sobre a comida e a energia, foi usada com sucesso na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, porém, o sistema não tem funcionado fora desse contexto e traz inconvenientes: o aumento da burocracia de controlo; a alocação “política” (logo, menos eficaz) dos recursos; a permeabilidade ao lobby e à influência; a supressão meramente temporária da inflação, que sempre reaparece em força quando os controlos são levantados. Uma outra sugestão, também americana, de pressão sobre as seguradoras dos tankers russos que transportam o petróleo, tinha já sido afastada por inoperacionalidade.

Também a reunião da NATO, em Madrid, esteve dominada pelo conflito russo-ucraniano, com os representantes dos países da Aliança Atlântica a reafirmarem o seu apoio à Ucrânia. A Rússia ocupa agora o primeiro lugar no pódio dos inimigos da organização, destronando o Terrorismo e a República Popular da China. A grande notícia foi o anúncio da Turquia, na terça-feira, de aceder à inclusão da Suécia e da Finlândia na Aliança Atlântica, caso Estocolmo e Helsínquia atendam aos seus pedidos de deportação e extradição de suspeitos de terrorismo. A Turquia assume, mais uma vez, um papel de charneira e os curdos pagam, mais uma vez, os custos pela reconciliação ocidental.

 O comunicado final da “nova” NATO, além de reafirmar a determinação e o reforço da capacidade militar defensiva da organização, não esquece os desafios ambientais e a inclusão de género – tornados itens de preenchimento obrigatório nos comunicados e declarações.

O Ocidente e “os outros”

Se olharmos ao número e à geografia dos Estados alinhados contra Moscovo e dos que se mantêm neutros, deparamos com o que poderá configurar-se como uma segunda edição de The West against The Rest.

Assim, será bom que a ordem internacional a nascer deste conflito tenha uma preocupação realista de consideração e respeito pelos interesses de cada Estado e pelo equilíbrio de todos, dispensando proclamações ideológicas e maniqueísmos institucionais.

Esta disparidade entre “the West” e “the Rest” não surpreende e parece acompanhar uma tendência que se observa desde o começo do século: a avaliar pelos relatórios da Freedom House, a política de expansionismo democrático teve efeitos perversos, já que, actualmente, apenas 20% da população mundial vive em países livres (com 42% a viver em Estados híbridos e 38% sob regimes autoritários ou totalitários). E se se fala muito de “democracia iliberal” em relação à Hungria e à Polónia, ficam na sombra os populismos de esquerda em grandes países das Américas – México, Argentina, Chile e agora a Colômbia; países onde se vêm afirmando regimes de esquerda, cujo constitucionalismo liberal deixa muito a desejar. Não falando já da Venezuela e de Cuba; ou dos movimentos de policiamento e cancelamento cultural do tipo Woke, a operar em força no Ocidente pela lavagem cerebral, empenhando vastos recursos financeiros em delirantes campanhas de alfabetização em Newspeak, com a franca distribuição de fobias e de outras patologias a quem não jure bandeira ou não se inscreva na mocidade activista.

Quando uma ordem ideológica e geopolítica é posta em causa e não lhe sobreveio ainda outra, entra-se num período de interregno, como o que agora vivemos. Resta-nos esperar que o realismo e a força das coisas contenham euforias e histerias – é que, tanto na guerra cultural como na guerra real, uma escalada pode pôr em causa a própria viabilidade da civilização e da espécie.

A SEXTA COLUNA   CRÓNICA   OBSERVADOR   GUERRA NA UCRÂNIA    UCRÂNIA    EUROPA   MUNDO    GEOPOLÍTICA

COMENTÁRIOS:

Joao Rodrigues: Não falando já da Venezuela e de Cuba; ou dos movimentos de policiamento e cancelamento cultural do tipo Woke, a operar em força no Ocidente pela lavagem cerebral, empenhando vastos recursos financeiros em delirantes campanhas de alfabetização em Newspeak, com a franca distribuição de fobias e de outras patologias a quem não jure bandeira ou não se inscreva na mocidade activista. Cuidado, Jaime Nogueira Pinto, ainda o cancelam. Se esse parágrafo tivesse sido escrito por um leitor na caixa de comentários, provavelmente teria sido censurado pelos censores do Observador. Já está a dizer mais verdades do que é permitido pela ditadura vigente, mascarada de democracia-das-liberdades.           Joao Rodrigues:  apenas 20% da população mundial vive em países livres. Meta aspas em "livres". Países livres onde as pessoas são censuradas de todas as maneiras e feitios, desde o Foiceburka até ao Twitter, passando pelas caixas de comentários de jornais, etc. Países "livres" onde a plícia vai buscar as pessoas a casa (como na Inglaterra) por terem feito um tweet que a polícia política não gostou. What a joke.            advoga diabo: Conceitos como resto ou neutro, têm a elasticidade suficiente para serem uma coisa e o seu contrário, como, sempre a puxar a brasa à sua sardinha, aqui demonstra JNP!           Tone da Eira: Ao falar do Resto, o artigo seria mais completo se o autor tivesse falado do Movimento dos Não Alinhados (NA) na Guerra Fria. Que importância teve? O "neutros" actuais são equivalentes aos NA de outrora, o que movia esses e o que move os de agora? Qual a influência da China nos "neutros" de agora, será que ela os induz (com maior ou menor peso) ao apoio à Rússia ou para serem cautelosos? É crucial distinguir-se o continuar de relações económicas do apoio político, em que ponto estão exactamente os países do Resto? O que andam os líderes do Ocidente a fazer nesse aspecto, que pressão e que resultados? Há muito por conhecer e por decifrar por aí. Noto ainda que em princípio não gosto de racionalizações que vão buscar factos de há mais de 150 anos como tendo grande influência no presente. No comportamento de Putin como dirigente da 2a potência militar mundial certamente haverá factores muito mais importantes do que o que Pedro o Grande (não aparece nesta mas aparece noutras análises do mesmo tipo) ou os Czares fizeram, ou então a sua sanidade mental é duvidosa e esse será o facto principal a ter em conta nos acontecimentos actuais.             Vou ali e já volto > Tone da Eira: Eu apostaria na sanidade mental duvidosa. Querer assentar o desenvolvimento económico pela via militar não haverá de ser, na atualidade, uma opção profícua, tendo em conta os arsenais nucleares espalhados por todos os lados. Aliás, é a opção a que recorrem os criminosos.          bento guerra: Não é "nova", mas a mesma com outros envolventes.Este capítulo,utilizando a Ucrânia vem desde 2014,quando o Obama mandou como representante a Victoria Nuland           António Moreira: Mais uma irrepreensível resenha histórica de JNP, a concluir com uma também irrepreensível descrição do mundo em que vivemos, com uma nota de destaque para aquilo que, estando à vista de todos, consubstancia uma das principais causas de acelerada decadência do mundo ocidental, designadamente a cultura de cancelamento/woke e respectivos sinais, como a jura de fidelidade, em qualquer discurso institucional, relativamente às causas das alterações climáticas e da ideologia do género.      Américo Silva: Concordo. A guerra fria ocorreu entre duas superpotências, agora parece opor os USA e súbditos, ao resto do mundo, e não é assim tão fria, os ucranianos que o digam. Entretanto, com notável sentido da política internacional, Marcelo vai ao Brasil. Será que vai tirar selfies com ladrões? será que vai repetir a Jamaica? Será que vai beijar barrigas? ou mais abaixo?             Carlos Quartel: O futuro da humanidade têm que ser sociedades de cidadãos livres, cultos, interessados na coisa pública, criados na convicção de que não necessitam gurus, nem vanguardas esclarecidas, nem ungidos pelo Senhor. O caminho é esse e tem que ser esse. Nós estamos no lado correcto da história e não devemos ter dúvidas sobre isso. Claro que os ungidos, os gurus, as vanguardas não vão largar o poder sem luta, vão defender os seus privilégios com armas, com teorias políticas, com ideologias que demonstrem a sua indispensabilidade. Este é o resumo de toda a questão Mas estão a lutar em vão         Xico Nhoca: Artigo muito interessante, como sempre. No entanto, eu julgo que merecia ser referida com mais ênfase a participação da China neste realinhamento dos estados. O Ocidente sempre ignorou (e maltratou) a China e esta sempre se manteve atrás da moita ao mesmo tempo que faz o seu caminho de substituir os EUA na supremacia mundial (supremacia económica, pelo menos, que a militar é mais difícil). E se essa substituição acontecer estaremos, não perante a substituição da supremacia mundial Britânica pela dos Estados Unidos, ambas no âmbito da civilização ocidental, mas de uma mudança de hegemonia civilizacional. E aí a coisa fia mais fino.

 

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