…reflexão e saber, por isso aquece e
ilumina, e não só a sardinha própria, mas as sardinhas alheias dispostas a servir-se
da mesma brasa, naturalmente. Estou a utilizar o conceito popularucho de um dos
comentadores, que naturalmente despreza a brasa que JNP puxa, não só para a sua
sardinha mas, bem altruisticamente, para o cardume inteiro dos que o saboreiam
com a degustação com que eu própria o faço, embora consciente de que a idade já
não absorve todo esse calor e luz irradiantes, como gostaria, perdurando,
todavia, sempre, a admiração.
Uma nova Guerra Fria?
Se olharmos ao número e à geografia
dos Estados alinhados contra Moscovo e dos que se mantêm neutros, deparamos com
o que poderá configurar-se como uma segunda edição de "The West
against The Rest".
JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do OBSERVADOR
OBSERVADOR, 02 jul 2022, 00:189
Os grandes conflitos estiveram
sempre na origem das grandes mudanças, não só na repartição
territorial e na hierarquia dos Estados mas também
nos valores e princípios inspiradores e legitimadores da
ordem internacional.
Foi
da Guerra dos 30 Anos
que nasceu a ordem consagrada
pelos Tratados
de Vesfália, com a
secularização dos poderes estatais e das razões da paz e da guerra. Adoptaram-se então regras comuns na relação entre as
potências do Jus Publicum Europaeum que as diplomacias do século
XVIII passaram a seguir. Das guerras
da Revolução e do Império
nasceu a ordem do
constitucionalismo liberal,
que depois de uma temporária restauração dos valores do Ancien Régime, dominou
os Estados europeus e se estendeu aos novos Estados independentes do continente
americano.
O mundo dos finais do século XIX era
um mundo eurocêntrico de monarquias constitucionais, umas mais conservadoras, outras mais liberais –
com as excepções das repúblicas francesa e suíça. À margem
do sistema liberal, embora não ostracizada, ficava a Rússia
czarista, que se olhava como um baluarte do
cristianismo e da tradição e mantinha, nas suas classes dirigentes, um duelo surdo entre eslavófilos e europeizantes. A guerra da Crimeia, em que a Rússia enfrentou o Império Otomano, aliado
dos franceses e dos ingleses, foi amargamente vista por Dostoievsky
como uma traição das nações do Ocidente à Cristandade. A derrota na guerra e a morte do czar conservador
Nicolau I levaram ao poder Alexandre II, que libertou os servos e procedeu a
reformas liberalizantes. Mas o czar reformista foi assassinado à bomba em 13 de
Março de 1881 pelos populistas do Narodnaïa Volia.
Os Estados europeus do final do século
XIX agiam segundo as regras da Realpolitik, afirmando claramente, e às
vezes arrogantemente, os seus interesses nacionais e os desígnios imperiais que
os levavam à partilha de outros continentes – onde, entretanto, se esboçavam as
primeiras reacções ao imperialismo.
As guerras do século
XX
A
guerra de 1914-1918 veio acabar com essa ordem. Os impérios centrais – alemão, austro-húngaro e
otomano – saíram destruídos da Grande Guerra e nos seus territórios surgiram
uma multiplicidade de nações: umas, na Europa, tornaram-se independentes;
outras, no Médio Oriente e em África, passaram a outras tutelas e
subordinações. Mas o
resultado mais importante do conflito foi a Revolução Soviética de 1917, com o
triunfo, num grande Estado da Eurásia, de uma ideologia política
revolucionária, messiânica e internacionalista, com ambições de exportar a sua
verdade e o seu modelo de sociedade a todo o globo.
As
ideias, as ideologias, os movimentos e os regimes são reactivos, e a relação
amigo-inimigo é o motor mais forte e dinâmico da razão política, que reage na
razão directa do perigo. Assim, o medo do
comunismo levou a soluções radicais de estado de excepção, com o apoio das
nascentes classes médias. Nestas reacções
anti-comunistas, além de movimentos populares totalitários, como o fascismo,
que triunfou em Itália em Outubro de 22, contam-se, sobretudo, soluções
nacionais-autoritárias, geralmente patrocinadas pelos exércitos, como a
ditadura de Primo de Rivera, em Espanha, o Estado Novo em Portugal e uma série
de movimentos semelhantes na Europa Oriental e nos Balcãs.
Entre as duas guerras, estas soluções
propagaram-se pelo mundo não-europeu, num clima reforçado pela grande crise do
capitalismo euro-americano que levou ao poder, por via democrática e eleitoral,
o Partido Nacional-Socialista de Adolfo Hitler. Hitler reclamava um destino
messiânico para o povo alemão e pretendia rasgar o Tratado de Versalhes.
Desta
conjuntura veio a Segunda Guerra Mundial e, com
ela, o fim do mundo eurocêntrico e a passagem do grande poder
político-militar para uma potência da Eurásia – a União Soviética – e outra da América – os Estados Unidos. A Europa e o globo ficaram divididos por critérios e
padrões ideológicos, que, teoricamente, opunham um mundo livre, democrático e
liberal, a um mundo comunista e totalitário. Só que, do lado do “mundo livre”, estavam muitos
poderes não-liberais, já que a divisão amigo-inimigo se fazia com base no
anticomunismo.
O
desfecho final da Guerra Fria, em 1989-1991,
ficou a dever-se ao isolamento progressivo da URSS, conseguido pela Administração
Reagan nos anos que precederam a queda final de Moscovo com a aliança de duas
potências não-liberias: a monarquia absoluta e religiosa saudita e a China
comunista. A Arábia
Saudita ajudou Washington a degradar economicamente a União Soviética, fazendo
baixar os preços do petróleo com aumentos de produção; e a abertura de Nixon e
Kissinger à China de Mao, a partir dos anos 70, levou a que o comunismo
de Pequim se juntasse ao capitalismo liberal de Washington para combater o
inimigo comum.
Assim,
a vitória final do Ocidente na Guerra Fria teve como elemento determinante a
inclusão na aliança anti-soviética de Estados autocráticos. Henry Kissinger
lembrá-lo-ia várias vezes, voltando recentemente a fazê-lo para criticar a
pretensão da Administração Biden de fazer do confronto com a Rússia uma luta
entre democracias e autocracias.
No
pós-Guerra Fria houve alguma euforia interpretativa entre os vencedores, com a
tentativa, teorizada por Fukuyama e impulsionada pelos neoconservadores, de
estender a todo o globo o modelo liberal democrático anglo-saxónico de
pluralismo partidário competitivo e de economia de mercado. Nos últimos 30
anos, os factos desmentiram a teoria e negaram a prática – com o terrorismo
jihadista dos princípios do século XXI, a afirmação de tendências nacionais
autocráticas em potências regionais, como a Rússia e a Turquia, e a
coexistência do capitalismo com uma direcção política central comunista, na
República Popular da China.
Transição
Mas
se a ordem global das democracias liberais inaugurada no fim da Guerra Fria
estava já posta em causa em importantes partes do mundo antes da invasão da
Ucrânia pela Rússia, foi a invasão que a veio definitivamente desafiar. Os
europeus tinham-se habituado a assistir, com o olhar complacente e eurocêntrico
dos “civilizados”, a conflitos semelhantes no resto do mundo; mas no dia 24 de
Fevereiro, o direito de guerra e de paz, estabelecido pela Carta das Nações
Unidas e condenatório da guerra de agressão era, pela primeira vez, violado
dentro de fronteiras europeias.
A
guerra na Europa Oriental veio, assim, desferir um golpe sério à ordem liberal
e a uma globalização já ferida pela pandemia. Moscovo rasgou um protocolo sobre
a guerra e a paz que parecia intocável, embora várias vezes tivesse sido
violado noutros continentes (considerados, para o efeito, “periféricos”).
Que
ordem sairá deste conflito e dos seus resultados? Não deixando de condenar a
invasão russa, que trouxe a guerra de volta à Europa e a desgraça a milhões de
ucranianos, não podemos ignorar as culpas do Ocidente – dos Estados Unidos e da
Europa – na condução da resposta.
Além
da imprudente declaração de Biden de que os Estados Unidos nunca entrariam em
guerra com a Rússia, passível de ser interpretada por Putin como um subtil
convite à invasão, ignorou-se levianamente todo um dossier de avisos
cautelares, de George Kennan a Henry Kissinger, sobre a susceptibilidade
securitária de Moscovo e de uma Rússia tantas vezes invadida e devastada por
mongóis, polacos, suecos, franceses e alemães.
A
política euroamericana de resposta à invasão tem também sido prolífera noutros
erros. Até agora, as sanções contribuíram essencialmente para encher os cofres
da Rússia e estimular a unidade pela negativa de países com valores tão
diferentes como a China, a Índia, a Turquia, o Brasil e o México. A Rússia
passou a vender por um preço mais alto o seu petróleo e o seu gás, com Putin a
dar-se luxo de cortar o fornecimento aos sancionadores; e entre os Estados que
se recusaram a alinhar com as políticas euro-americanas de segregação e punição
de Moscovo contam-se mais de metade dos Estados da União Africana, a China, a
Índia e parte substancial dos países da América Latina e da Ásia.
Os 7 no castelo de
Elmau e a NATO em Madrid
No
Castelo de Elmau, na Baviera, os sete mais ricos parecem ter chegado a acordo
quanto ao controlo dos preços do petróleo para travar os ganhos russos e a
inflação, deixando a cada Estado o estudo da forma técnica de o conseguir. A limitação dos
preços (“price caps”), sobretudo
sobre a comida e a energia, foi usada com sucesso na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, porém, o sistema não tem funcionado
fora desse contexto e traz inconvenientes: o aumento
da burocracia de controlo; a alocação “política” (logo, menos eficaz) dos
recursos; a permeabilidade ao lobby e à influência; a supressão
meramente temporária da inflação, que sempre reaparece em força quando os
controlos são levantados. Uma outra sugestão, também americana, de pressão
sobre as seguradoras dos tankers russos que transportam o petróleo,
tinha já sido afastada por inoperacionalidade.
Também a reunião da NATO, em Madrid,
esteve dominada pelo conflito russo-ucraniano, com os representantes dos países
da Aliança Atlântica a reafirmarem o seu apoio à Ucrânia. A Rússia ocupa agora
o primeiro lugar no pódio dos inimigos da organização, destronando o Terrorismo
e a República Popular da China. A grande
notícia foi o anúncio da Turquia, na terça-feira, de aceder à
inclusão da Suécia e da Finlândia na Aliança Atlântica, caso
Estocolmo e Helsínquia atendam aos seus pedidos de deportação e extradição de
suspeitos de terrorismo. A Turquia assume, mais uma vez, um papel de charneira
e os curdos pagam, mais uma vez, os custos pela reconciliação ocidental.
O
comunicado final da “nova” NATO, além de reafirmar a determinação e o reforço da capacidade
militar defensiva da organização, não esquece os desafios ambientais e a
inclusão de género – tornados itens de preenchimento obrigatório nos
comunicados e declarações.
O Ocidente e “os outros”
Se
olharmos ao número e à geografia dos Estados
alinhados contra Moscovo e dos que se mantêm neutros, deparamos com o que poderá configurar-se como uma
segunda edição de The West
against The Rest.
Assim, será bom que a ordem
internacional a nascer deste conflito tenha uma preocupação realista de
consideração e respeito pelos interesses de cada Estado e pelo equilíbrio de
todos, dispensando proclamações ideológicas e maniqueísmos institucionais.
Esta
disparidade entre “the West” e “the Rest” não surpreende e parece acompanhar
uma tendência que se observa desde o começo do século: a avaliar pelos
relatórios da Freedom House, a
política de expansionismo democrático teve efeitos perversos, já que,
actualmente, apenas 20% da população mundial vive em países livres (com 42% a
viver em Estados híbridos e 38% sob regimes autoritários ou totalitários). E se se fala muito de “democracia
iliberal” em relação à
Hungria e à Polónia, ficam na sombra os populismos de esquerda em grandes
países das Américas – México, Argentina, Chile e agora a Colômbia; países onde
se vêm afirmando regimes de esquerda, cujo constitucionalismo liberal deixa
muito a desejar. Não
falando já da Venezuela e de Cuba; ou dos movimentos de policiamento e
cancelamento cultural do tipo Woke, a operar em força no Ocidente pela lavagem
cerebral, empenhando vastos recursos financeiros em delirantes campanhas de
alfabetização em Newspeak, com a franca distribuição de fobias e
de outras patologias a quem não jure bandeira ou não se inscreva na mocidade
activista.
Quando uma ordem ideológica e
geopolítica é posta em causa e não lhe sobreveio ainda outra, entra-se num
período de interregno, como o que agora vivemos. Resta-nos esperar que o realismo e a
força das coisas contenham euforias e histerias – é que, tanto na guerra
cultural como na guerra real, uma escalada pode pôr em causa a própria
viabilidade da civilização e da espécie.
A SEXTA COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO GEOPOLÍTICA
COMENTÁRIOS:
Joao Rodrigues: Não falando já
da Venezuela e de Cuba; ou dos movimentos de policiamento e cancelamento
cultural do tipo Woke, a operar em força no Ocidente pela lavagem cerebral,
empenhando vastos recursos financeiros em delirantes campanhas de alfabetização
em Newspeak, com a franca distribuição de fobias e de outras patologias a quem
não jure bandeira ou não se inscreva na mocidade activista. Cuidado, Jaime Nogueira
Pinto, ainda o cancelam. Se esse parágrafo tivesse sido escrito por um leitor
na caixa de comentários, provavelmente teria sido censurado pelos censores do
Observador. Já está a dizer mais verdades do que é permitido pela ditadura
vigente, mascarada de democracia-das-liberdades. Joao Rodrigues: apenas 20% da
população mundial vive em países livres. Meta aspas em "livres".
Países livres onde as pessoas são censuradas de todas as maneiras e feitios,
desde o Foiceburka até ao Twitter, passando pelas caixas de comentários de
jornais, etc. Países "livres" onde a plícia vai buscar as pessoas a
casa (como na Inglaterra) por terem feito um tweet que a polícia política não
gostou. What a joke.
advoga diabo: Conceitos como
resto ou neutro, têm a elasticidade suficiente para serem uma coisa e o seu
contrário, como, sempre a puxar a brasa à sua sardinha, aqui
demonstra JNP! Tone
da Eira: Ao falar do Resto, o artigo seria mais
completo se o autor tivesse falado do Movimento dos Não Alinhados (NA) na
Guerra Fria. Que importância teve? O "neutros" actuais são
equivalentes aos NA de outrora, o que movia esses e o que move os de agora?
Qual a influência da China nos "neutros" de agora, será que ela os
induz (com maior ou menor peso) ao apoio à Rússia ou para serem cautelosos? É
crucial distinguir-se o continuar de relações económicas do apoio político, em
que ponto estão exactamente os países do Resto? O que andam os líderes do
Ocidente a fazer nesse aspecto, que pressão e que resultados? Há muito por
conhecer e por decifrar por aí. Noto
ainda que em princípio não gosto de racionalizações que vão buscar factos de há
mais de 150 anos como tendo grande influência no presente. No comportamento de
Putin como dirigente da 2a potência militar mundial certamente haverá factores
muito mais importantes do que o que Pedro o Grande (não aparece nesta mas aparece
noutras análises do mesmo tipo) ou os Czares fizeram, ou então a sua sanidade
mental é duvidosa e esse será o facto principal a ter em conta nos
acontecimentos actuais.
Vou ali e já volto > Tone da Eira: Eu apostaria na sanidade mental duvidosa. Querer
assentar o desenvolvimento económico pela via militar não haverá de ser, na
atualidade, uma opção profícua, tendo em conta os arsenais nucleares espalhados
por todos os lados. Aliás, é a opção a que recorrem os criminosos. bento guerra: Não é "nova", mas a mesma com outros
envolventes.Este capítulo,utilizando a Ucrânia vem desde 2014,quando o Obama
mandou como representante a Victoria Nuland António Moreira: Mais uma irrepreensível resenha histórica de JNP, a
concluir com uma também irrepreensível descrição do mundo em que vivemos, com
uma nota de destaque para aquilo que, estando à vista de todos, consubstancia
uma das principais causas de acelerada decadência do mundo ocidental,
designadamente a cultura de cancelamento/woke e respectivos sinais, como a jura
de fidelidade, em qualquer discurso institucional, relativamente às causas das
alterações climáticas e da ideologia do género. Américo Silva:
Concordo. A guerra fria ocorreu entre
duas superpotências, agora parece opor os USA e súbditos, ao resto do mundo, e
não é assim tão fria, os ucranianos que o digam. Entretanto, com notável sentido da política
internacional, Marcelo vai ao Brasil. Será que vai tirar selfies com ladrões?
será que vai repetir a Jamaica? Será que vai beijar barrigas? ou mais abaixo? Carlos Quartel: O futuro da humanidade têm que ser sociedades de
cidadãos livres, cultos, interessados na coisa pública, criados na convicção de
que não necessitam gurus, nem vanguardas esclarecidas, nem ungidos pelo Senhor.
O caminho é esse e tem que ser esse. Nós estamos no
lado correcto da história e não devemos ter dúvidas sobre isso. Claro que os ungidos, os gurus, as vanguardas não vão
largar o poder sem luta, vão defender os seus privilégios com armas, com
teorias políticas, com ideologias que demonstrem a sua indispensabilidade.
Este é o resumo de toda a questão Mas estão a lutar em vão Xico Nhoca: Artigo muito interessante, como sempre. No entanto,
eu julgo que merecia ser referida com mais ênfase a participação da China neste
realinhamento dos estados. O Ocidente sempre ignorou (e maltratou) a China
e esta sempre se manteve atrás da moita ao mesmo tempo que faz o seu caminho de
substituir os EUA na supremacia mundial (supremacia económica, pelo menos, que
a militar é mais difícil). E se essa substituição acontecer estaremos, não
perante a substituição da supremacia mundial Britânica pela dos Estados
Unidos, ambas no âmbito da civilização ocidental, mas de uma mudança
de hegemonia civilizacional. E aí a coisa fia mais fino.
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