segunda-feira, 25 de julho de 2022

As cabeças da Hidra


Da nossa profusão de modus dicendi com multiplicação de desvios, ou, mais patrioticamente exprimindo, através da não menos ilustre prata da casa, o tal rabo do lagarto que continua a ser rabo, depois de cortado, para aquém do lagarto, remexidamente... Não, suponho que Álvaro de Campos se não importaria de ser usado, tal como a hidra com as suas cabeças multiplicadas, após o corte, para significar o estado de sítio do nosso circo habitual. Mas o pior é que a esperança se vai diluindo, também remexidamente, é bem certo, mais de rabo que de cabeça, todavia, à medida da sua proliferação, pela mão do homem cortador.

 

Cala-te, cínico!

A melhor descrição do woke, pasme-se, é a que na Teogonia Hesíodo faz da Hidra, a serpente marítima de hálito e sangue venenosos com as suas múltiplas cabeças que uma vez cortadas logo crescem de novo

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS, Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR, 24 jul 2022, 00:159

Na quarta-feira, sentei-me ao computador, diante da televisão, a assistir ao debate do Estado da Nação e a tomar notas para a crónica de hoje. Anotei intervenções. Perguntas sem resposta. Risos. Palmas. E os exercícios de vaidade e menoridade política do costume. Se o Partido Socialista e o seu governo não exibissem uma auto-satisfação desfasada da realidade do país e dos portugueses; se impunes, crise após crise, sustentados pela administração pública e pelas suas próprias clientelas, não se arrogassem uma superioridade moral onde se espelha o mais profundo desprezo pelas dificuldades dos portugueses; se não respondessem sempre anacronicamente ao maior partido da oposição em claro desrespeito pelos seus eleitores; se não se tivessem negado a responder às perguntas daqueles que são os nossos representantes; se houvesse a menor esperança de que o abismo diante de nós é evitável, teria escrito a crónica que me propus escrever. Assim, e sobre este lamentável PS – e o quanto ele se prestaria ao anacronismo socrático e fácil – nada mais direi. Hoje, pelo menos, em que o estado é de absoluta decepção. Mas pergunto: onde raio está o resto do Partido Socialista? E não me refiro, obviamente, aos pedronunistas. Ou já é só o Sérgio Sousa Pinto?

Então, volto à silly season do pensamento que teima em tornar-se permanente, já que por cá, depois de consolidado nos media, se infiltrou na coisa pública que herdámos a reboque da geringonça: o woke. A melhor descrição do woke, pasme-se, é a que, na sua Teogonia, Hesíodo faz da Hidra, a serpente marítima de hálito e sangue venenosos, com as suas múltiplas cabeças que uma vez cortadas logo crescem de novo. Na base do Movimento de Justiça Social, vulgo, woke, está a Teoria Crítica, a cabeça primeira e imortal da Hidra. É a cabeça nascida nos anos 20-30 com a Escola de Frankfurt. É a que se multiplica em teorias críticas. Múltiplas cabeças. A Teoria Crítica defende a «explicação de todas as circunstâncias que escravizam o ser humano», todas têm de ser mudadas. Todas. Da cultura ao trabalho, à ideia de si e do outro. Só assim o «ser humano será emancipado em circunstâncias de opressão e domínio».

A Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt agora designam não apenas os seus filósofos iniciais, os célebres Horkheimer e Adorno e até Marcuse e Habermas, e o pensamento que produziram, mas também as gerações que lhes sucederam de tradição marxista ocidental. A sua génese tem um século e resulta de levar para a academia a revolução que o proletariado não fez nos países ocidentais. O ideal soviético desconseguido nos estados democráticos encontraria, ao abrigo das liberdades que a democracia garantia, o seu caminho nos centros de estudo, nas salas de aula.

Vista assim, da forma mais simples, a teoria crítica não é um mal em si mesma, muito menos quando identifica problemas transculturais e promove a sua resolução. Mas não pode é apresentar-se como a única visão explicativa da realidade e o único meio efectivo de resolução, muito menos quando se radicaliza e põe em causa os fundamentos da sociedade ocidental.

O feminismo, por exemplo, para além da sua organicidade, também é devedor da Teoria Crítica. Mas quando é convertido no Movimento de Justiça Social, isto é, quando é processado pela agenda woke, acordamos, de facto, mas dentro de um pesadelo para os seus mil fragmentos, as mil cabeças de Hidra: a questão deixa de ser a paridade legal e social, para ser a da natureza da própria mulher; o que/quem a define; o valor dos próprios critérios de definição, da biologia à medicina; o uso da linguagem nas estruturas de poder que enformam a mulher; etc, etc, até à aniquilação dos que se oponham ao todo ou à parte – este é o poder do hálito venenoso.

E isto é grave de diferentes maneiras. O elemento distintivo das teorias críticas, o seu separador de águas em relação às teorias tradicionais, é a praxis. Isto é, o seu propósito é a acção. O activismo. A Teoria Crítica, e as teorias críticas, assentam em três requisitos: têm de ser explicativas, práticas e normativas. Portanto, têm de identificar o problema social; identificar os agentes de mudança; fornecer os elementos normativos para a crítica e objectivos exequíveis de mudança social. Se transpusermos estes princípios, e eles já foram transpostos para a Academia, felizmente não no seu todo, encontramos uma geração de professores que promove, se não a acção, pelo menos a tomada de posição por parte dos alunos. Tal como os alunos activistas a exigem dos professores. Não há neutralidade. Não há imparcialidade. Não há contraditório. Em circunstância alguma um aluno, ou professor, que queira ser neutral, ou tenha uma convicção distinta, pode ser o inimigo. Em circunstância alguma a ciência pode estar sujeita à ideologia. O pensamento único não serve à Academia.

Os fundamentos das sociedades ocidentais, nos seus valores axiais, estão a ser metódica e sistematicamente destruídos. Mas são eles que permitem o Estado de Direito, a pluralidade democrática, a ciência. Sem eles não há salvaguarda da polarização política. Nem há a liberdade que só as democracias garantem, inclusive a de serem postas em causa.

Dito isto, e já que no debate do Estado da Nação, António Costa afirmou abrir uma excepção de leitura aos seus romances para ler o livro do líder da bancada do PSD, aconselho outra excepção, só para cortar uma das cabeças, vá, do marxismo cultural dominante: leia as Teorias Cínicas – e boas férias.

A autora escreve segundo a antiga ortografia

MULHER   SOCIEDADE   FEMINISMO

COMENTÁRIOS:

Madalena Sa: Bom artigo! O PS de outrora foi só para disfarçar ! Isto é o verdadeiro PS!         Luís Barreto: Então woke não foi inventado pela Erykah Badu (acho ser assim que se escreve)? O hip hop foi criado em Frankfurt?? As únicas coisas alemãs de que os americanos gostam,  é de hamburguer  (porque não sabem de onde vem) e carros (porque sabem ver quando um carro é bom). Agora a sério: está toda a gente a complicar um assunto que, em primeiro lugar, não é assim tão relevante. A auto satisfação anafada de um PS absurdo é bem mais importante. Foi pena desistir de escrever a crónica original.           Paixão:E não é com Montenegro que isto vai mudar👎👎👎👎               R C: Sim, a imagem da Hidra é óptima. Mas é bem anterior à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt...             Paulo Silva: Cara colunista, num debate há perguntas, há repostas. Fizeram-se perguntas não houve respostas. Mas pudera, cara Eugénia. Qual o espanto?... Após o golpe palaciano de 2015 os portugueses de selectiva memória resolveram sancioná-lo por duas vezes, e da última com maioria absoluta! Os donos dito tudo estão nas suas sete quintas ou quintinhas... Fala-se muito em comunicação, na mensagem e no mensageiro, mas fala-se pouco do receptor. E quando o receptor não está receptivo à mensagem, ou escolhe a mensagem que quer ouvir, é muito complicada a comunicação. É como se o receptor estivesse preso a uma realidade, à SUA realidade. E qual foi essa realidade dos portugueses? Como é óbvio, os malfadados cortes, para os quais a oposição construiu a narrativa perfeita: ‘Austeridade’ e ‘Ir além da Troika’. Desta mensagem colada às costas e ao peito do Governo de Passos Coelho os portugueses não conseguiram retirar os olhos… Foi fatal. Os portugueses já não se lembravam dos PEC’s nem do incêndio nas finanças com os juros da divida a passarem linhas vermelhas, (tal como em 2019 já não se lembraram dos “incêndios trágicos” de 2017). Mas a verdadeira realidade dos portugueses, não apenas aquela que eles querem ver, nasceu atrelada ao famoso programa abrileiro dos «3D’s». Como sabemos a ‘Descolonização’ foi logo o primeiro «D», como não podia deixar de ser. Acabar com a razão de fundo do golpe militar – a guerra do ultramar - e entregar as colónias aos patronos. Plenamente conseguido, à excepção das sangrentas guerras civis que se seguiram nos territórios. Mas isso já não era problema dos portugueses… O segundo era a ‘Democracia’, isto é, ‘a transição pacifica para o socialismo’, através do parlamentarismo com uma direita domesticada, um belo simulacro democrático, onde o PS se sente como um peixe na água. Assim foi, e é o que temos tido. E o terceiro seria o ‘Desenvolvimento’, obviamente relacionado e na perspectiva do segundo. Os donos disto tudo só se esqueceram de mencionar mais dois «D’s»: Défices e Dívida. Porque o socialismo tem este vício de pensamento: a riqueza distribui-se, só depois se pensa em criá-la. E enquanto houver dinheiro [dos outros], fundos estruturais e PRR’s, a luta... a festa continua! Quanto à Hidra das múltiplas cabeças a imagem é bem interessante. Dava pano para mangas, desde o gnosticismo ao radicalismo. No conceito woke podem rever-se os ecos da ‘consciência de classe’, consistindo a estratégia deste movimento do ‘marxismo cultural’, precisamente, como refere a autora, em levar para a sala de aula a Revolução que o proletariado, (o ‘sujeito histórico’ eleito de Marx no séc. XIX), não fez nem nas fábricas nem nas ruas das cidades do Ocidente. Por isso há quem fale de ‘marxismo ocidental’. E a primeira lição de mudança de paradigma revolucionário, a passagem do campo económico para o cultural, vem do sr. Gramsci. O igualitarismo radical, o comunismo, ou se preferirmos - a Religião da Igualdade - tem muitos rostos… e não tem de vir de foice e martelo em riste, nem seguida de procissão. Vem da forma mais conveniente às circunstâncias revolucionárias em direcção aos fins últimos. É a tal práxis.               José Miranda: Repito mais uma vez: Um socialista deseja ser rico, viver como rico ou, na pior das hipóteses, viver à custa do Estado              Paulo Silva > José Miranda: Não, sim. Acima de tudo um socialista tem ódio aos ricos, porque não sabe como criar a riqueza. Sabe roubar: tira daquele bolso, põe neste... tira do outro, põe neste... tira daqueloutro, põe neste... etc, etc...             João Ramos: As esquerdas, começando nas radicais e acabando nas moderadas com grandes complexos de não se considerarem de esquerda, haverá outras, poucas, mas infelizmente estão completamente dominadas pelas primeiras, ora estas esquerdas estão impregnaras pelos movimentos woke, teorias de género, etc…e foram introduzidas pelas esquerdas mais radicais, a fim de criarem conflitos dentro das democracias e desse modo as enfraquecerem, neste caso os tais moderados complexados, são os tais idiotas úteis como diria Lenine. Ora num momento em que Europa está em guerra isto é música para as pretensões de Putin, o tal enfraquecimento Ocidental, quem não consegue reconhecer isto, neste momento é criminoso!           Francisco Tavares de Almeida: Finalmente um artigo de Eugénia de Vasconcellos com que me identifico. bento guerra: Mas,o que esperavam do Costa? Apanhou o tenrinho Sarmento, conhecedor e sério e aplicou-lhe o golpe baixo, sem esclarecer as questões. É aproveitar, enquanto o Santos Silva não "malha" em toda a direita Pobre Portugal: O wokeismo é tão maior quanto a dignidade da sociedade que ela ataca é menor! É como um vírus: basta estar vacinado e ter regras rígidas de higiene, que ele já não nos pega. Cada um que se proteja! Maria Tubucci: Onde raio está o resto do PS? Pergunta a Poeta. Simples, estão a alimentar-se dos impostos dos portugueses  e a alimentar a Hidra.           Paulo Silva  > Maria Tubucci: Na cegueira do poder o PS deixou-se infiltrar pelo radicalismo faz tempo. Quando o PS se alimenta, alimenta a Hidra que tem dentro se si… Um parasita que este partido e outros apanharam a seguir a 1989 com a “Terceira Via”. Muitos convenceram-se de que o fim do sistema solar soviético representaria o fim da esquerda revolucionária e anti-democrática. Era «O Fim da História», diziam, (enquanto outros pouco depois começavam a avisar, e bem, para ‘Choques’). Como se enganaram. A derrocada do Muro só permitiu que outras sementes lançadas geminassem livres em direcção à luz do sol, para lançarem as trevas da destruição sobre a civilização Ocidental. As sementes do ‘marxismo cultural’, ou neo-comunismo.         Carlos Medeiros: Excelente artigo. O Partido Socialista do início da democracia já não existe. É hoje um grupo de tendências saudosistas que se odeiam cordialmente. O pior é que roubam o amanhã ao país porque gastam tudo hoje.           Gustavo: "Onde está o resto do Partido Socialista" - Presente, cara articulista             João RamosGustavo: Se « isto » é o estar presente… Deus nos acuda !!!

 


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