Da nossa profusão
de modus dicendi com multiplicação de
desvios, ou, mais patrioticamente exprimindo, através da não menos ilustre
prata da casa, o tal rabo do lagarto que continua a ser rabo, depois de
cortado, para aquém do lagarto, remexidamente...
Não, suponho que Álvaro de Campos se não importaria de ser usado, tal como a
hidra com as suas cabeças multiplicadas, após o corte, para significar o estado
de sítio do nosso circo habitual. Mas o pior é que a esperança se vai diluindo,
também remexidamente, é bem certo, mais de rabo que de cabeça, todavia, à
medida da sua proliferação, pela mão do homem cortador.
Cala-te, cínico!
A melhor descrição do woke, pasme-se,
é a que na Teogonia Hesíodo faz da Hidra, a serpente marítima de hálito e
sangue venenosos com as suas múltiplas cabeças que uma vez cortadas logo
crescem de novo
EUGÉNIA DE VASCONCELLOS, Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 24
jul 2022, 00:159
Na
quarta-feira, sentei-me ao computador, diante da televisão, a assistir ao
debate do Estado da Nação e a tomar notas para a crónica de hoje. Anotei
intervenções. Perguntas sem resposta. Risos. Palmas. E os exercícios de vaidade
e menoridade política do costume. Se o Partido Socialista e o seu
governo não exibissem uma auto-satisfação desfasada da realidade do país e dos
portugueses; se impunes, crise após crise, sustentados pela administração
pública e pelas suas próprias clientelas, não se arrogassem uma superioridade
moral onde se espelha o mais profundo desprezo pelas dificuldades dos
portugueses; se não respondessem sempre anacronicamente ao maior partido da
oposição em claro desrespeito pelos seus eleitores; se não se tivessem negado a
responder às perguntas daqueles que são os nossos representantes; se houvesse a
menor esperança de que o abismo diante de nós é evitável, teria escrito a
crónica que me propus escrever.
Assim, e sobre este lamentável PS – e o quanto ele se prestaria ao anacronismo
socrático e fácil – nada mais direi. Hoje, pelo menos, em que o estado é
de absoluta decepção. Mas pergunto: onde raio está o resto do Partido
Socialista? E não me refiro, obviamente, aos pedronunistas. Ou já é só o Sérgio
Sousa Pinto?
Então,
volto à silly season do pensamento que teima em tornar-se
permanente, já que por cá, depois de consolidado nos media, se infiltrou na
coisa pública que herdámos a reboque da geringonça: o woke. A melhor
descrição do woke, pasme-se, é a que, na sua Teogonia, Hesíodo faz da Hidra, a serpente marítima de hálito e
sangue venenosos, com as suas múltiplas cabeças que uma vez cortadas logo
crescem de novo. Na
base do Movimento de Justiça Social,
vulgo, woke, está a Teoria Crítica, a cabeça primeira e imortal da Hidra.
É a cabeça nascida nos anos 20-30 com a Escola de Frankfurt. É a que se
multiplica em teorias críticas. Múltiplas cabeças. A Teoria Crítica defende a
«explicação de todas as circunstâncias que escravizam o ser humano», todas têm
de ser mudadas. Todas. Da
cultura ao trabalho, à ideia de si e do outro. Só assim o «ser humano será
emancipado em circunstâncias de opressão e domínio».
A
Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt
agora designam não apenas os seus filósofos iniciais, os célebres Horkheimer e
Adorno e até Marcuse e Habermas, e o pensamento que produziram, mas também as
gerações que lhes sucederam de tradição marxista ocidental. A sua génese tem um século e resulta de levar para a
academia a revolução que o proletariado não fez nos países ocidentais. O ideal
soviético desconseguido nos estados democráticos encontraria, ao abrigo das
liberdades que a democracia garantia, o seu caminho nos centros de estudo, nas
salas de aula.
Vista
assim, da forma mais simples, a teoria crítica não é um mal em si mesma, muito
menos quando identifica problemas transculturais e promove a sua resolução. Mas
não pode é apresentar-se como a única visão explicativa da realidade e o único
meio efectivo de resolução, muito menos quando se radicaliza e põe em causa os
fundamentos da sociedade ocidental.
O feminismo, por exemplo,
para além da sua organicidade,
também é devedor da Teoria
Crítica. Mas
quando é convertido no Movimento de Justiça Social, isto é, quando é processado pela
agenda woke, acordamos,
de facto, mas dentro de um pesadelo para os seus mil fragmentos, as mil cabeças
de Hidra: a questão
deixa de ser a paridade legal e social, para ser a da natureza da própria
mulher; o
que/quem a define; o valor dos próprios critérios de definição, da biologia à
medicina; o uso da linguagem nas estruturas de poder que enformam a mulher;
etc, etc, até à aniquilação dos que se oponham ao todo ou à parte – este é o
poder do hálito venenoso.
E isto é grave de diferentes maneiras. O elemento distintivo das teorias críticas, o seu
separador de águas em relação às teorias tradicionais, é a praxis.
Isto é, o seu propósito é a acção. O activismo. A Teoria
Crítica, e as
teorias críticas, assentam em três requisitos: têm de ser explicativas, práticas e normativas.
Portanto, têm de identificar o
problema social; identificar
os agentes de mudança; fornecer
os elementos normativos para a crítica e objectivos exequíveis de mudança
social. Se
transpusermos estes princípios, e eles já foram transpostos para a Academia,
felizmente não no seu todo, encontramos uma geração de
professores que promove, se não a acção, pelo menos a tomada de posição por
parte dos alunos. Tal como os alunos activistas a exigem dos
professores. Não há neutralidade. Não há imparcialidade. Não há contraditório.
Em circunstância alguma um aluno, ou professor, que queira ser neutral, ou
tenha uma convicção distinta, pode ser o inimigo. Em circunstância alguma a ciência pode estar sujeita à
ideologia. O pensamento único não serve à Academia.
Os fundamentos das sociedades
ocidentais, nos seus valores axiais, estão a ser metódica e sistematicamente
destruídos. Mas são
eles que permitem o Estado de Direito, a pluralidade
democrática, a ciência. Sem eles
não há salvaguarda da polarização política. Nem há a
liberdade que só as democracias garantem, inclusive a de serem postas em causa.
Dito
isto, e já que no debate do Estado da Nação, António Costa afirmou abrir uma
excepção de leitura aos seus romances para ler o livro do líder da bancada do
PSD, aconselho outra excepção, só para cortar uma das cabeças, vá, do marxismo
cultural dominante: leia
as Teorias Cínicas – e boas férias.
A autora escreve segundo a
antiga ortografia
COMENTÁRIOS:
Madalena Sa: Bom artigo! O PS de outrora foi só para disfarçar ! Isto é o verdadeiro PS! Luís Barreto:
Então woke não
foi inventado pela Erykah Badu (acho ser assim que se escreve)? O hip hop foi
criado em Frankfurt?? As únicas coisas alemãs de que os americanos gostam, é de hamburguer (porque não sabem de onde vem) e carros
(porque sabem ver quando um carro é bom). Agora a sério: está toda a
gente a complicar um assunto que, em primeiro lugar, não é assim tão relevante.
A auto satisfação anafada de um PS absurdo é bem mais importante. Foi pena
desistir de escrever a crónica original. Paixão:E não é com Montenegro que isto
vai mudar👎👎👎👎 R C: Sim, a imagem da Hidra é óptima. Mas é bem anterior à Teoria Crítica da Escola de
Frankfurt... Paulo
Silva: Cara colunista, num debate há
perguntas, há repostas. Fizeram-se perguntas não houve
respostas. Mas pudera, cara Eugénia. Qual o espanto?... Após o golpe palaciano de
2015 os portugueses de selectiva memória resolveram sancioná-lo por duas vezes,
e da última com maioria absoluta! Os donos dito tudo estão nas suas sete
quintas ou quintinhas... Fala-se muito em comunicação, na mensagem e no
mensageiro, mas fala-se pouco do receptor. E quando o receptor não está
receptivo à mensagem, ou escolhe a mensagem que quer ouvir, é muito complicada
a comunicação. É como se o receptor estivesse preso a uma realidade, à SUA
realidade. E qual foi essa realidade dos portugueses? Como é óbvio, os
malfadados cortes, para os quais a oposição construiu a narrativa perfeita: ‘Austeridade’ e ‘Ir além da
Troika’. Desta mensagem colada às costas e ao peito do Governo de Passos Coelho os
portugueses não conseguiram retirar os olhos… Foi fatal. Os portugueses já não se
lembravam dos PEC’s nem do incêndio nas finanças com os juros da divida a
passarem linhas vermelhas, (tal como em 2019 já não se lembraram dos “incêndios
trágicos” de 2017). Mas a verdadeira realidade dos portugueses, não apenas
aquela que eles querem ver, nasceu atrelada ao famoso programa abrileiro dos
«3D’s». Como sabemos a ‘Descolonização’ foi logo o primeiro «D», como não podia deixar de ser. Acabar com a razão
de fundo do golpe militar – a guerra do ultramar - e entregar as colónias aos
patronos. Plenamente conseguido, à excepção das sangrentas guerras civis que se
seguiram nos territórios. Mas isso já não era problema dos portugueses… O
segundo era a ‘Democracia’, isto é, ‘a transição pacifica para o socialismo’, através do
parlamentarismo com uma direita domesticada, um belo simulacro democrático,
onde o PS se sente como um peixe na água. Assim foi, e é o que temos tido. E o
terceiro seria o ‘Desenvolvimento’, obviamente relacionado e na perspectiva do segundo. Os donos disto tudo só se esqueceram de mencionar mais
dois «D’s»: Défices e Dívida. Porque o socialismo tem este vício de pensamento: a riqueza distribui-se,
só depois se pensa em criá-la. E enquanto houver dinheiro [dos outros], fundos
estruturais e PRR’s, a luta... a festa continua! Quanto à Hidra das múltiplas cabeças a imagem é bem interessante. Dava pano
para mangas, desde o gnosticismo ao radicalismo. No conceito woke podem
rever-se os ecos da ‘consciência de classe’, consistindo a estratégia deste
movimento do ‘marxismo cultural’, precisamente, como refere a autora, em levar
para a sala de aula a Revolução que o proletariado, (o ‘sujeito histórico’
eleito de Marx no séc. XIX), não fez nem nas fábricas nem nas ruas das cidades
do Ocidente. Por isso há quem fale de ‘marxismo ocidental’. E a primeira lição
de mudança de paradigma revolucionário, a passagem do campo económico para o
cultural, vem do sr. Gramsci. O igualitarismo radical, o comunismo, ou se
preferirmos - a Religião da Igualdade - tem muitos rostos… e não tem de vir de
foice e martelo em riste, nem seguida de procissão. Vem da forma mais conveniente
às circunstâncias revolucionárias em direcção aos fins últimos. É a tal práxis. José
Miranda: Repito mais uma
vez: Um socialista deseja ser rico, viver como rico ou, na pior das hipóteses,
viver à custa do Estado Paulo Silva
> José Miranda: Não, sim. Acima de tudo um
socialista tem ódio aos ricos, porque não sabe como criar a riqueza. Sabe
roubar: tira daquele bolso, põe neste... tira do outro, põe neste... tira
daqueloutro, põe neste... etc, etc... João Ramos: As esquerdas, começando nas
radicais e acabando nas moderadas com grandes complexos de não se considerarem
de esquerda, haverá outras, poucas, mas infelizmente estão completamente
dominadas pelas primeiras, ora estas esquerdas estão impregnaras pelos
movimentos woke, teorias de género, etc…e foram introduzidas pelas esquerdas mais
radicais, a fim de criarem conflitos dentro das democracias e desse modo as
enfraquecerem, neste caso os tais moderados complexados, são os tais idiotas
úteis como diria Lenine. Ora num momento em que Europa está em guerra isto é
música para as pretensões de Putin, o tal enfraquecimento Ocidental, quem não
consegue reconhecer isto, neste momento é criminoso! Francisco
Tavares de Almeida: Finalmente um artigo de Eugénia de Vasconcellos com
que me identifico. bento guerra: Mas,o que esperavam do Costa? Apanhou
o tenrinho Sarmento, conhecedor e sério e aplicou-lhe o golpe baixo, sem
esclarecer as questões. É aproveitar, enquanto o Santos Silva não
"malha" em toda a direita Pobre Portugal: O wokeismo é tão maior quanto a
dignidade da sociedade que ela ataca é menor! É como um vírus: basta estar
vacinado e ter regras rígidas de higiene, que ele já não nos pega. Cada um que
se proteja! Maria Tubucci: Onde raio está o resto do PS?
Pergunta a Poeta. Simples, estão a alimentar-se dos impostos dos
portugueses e a alimentar a Hidra. Paulo Silva > Maria Tubucci: Na cegueira do poder o PS
deixou-se infiltrar pelo radicalismo faz tempo. Quando o PS se alimenta,
alimenta a Hidra que tem dentro se si… Um parasita que este partido e outros
apanharam a seguir a 1989 com a “Terceira Via”. Muitos convenceram-se de que o
fim do sistema solar soviético representaria o fim da esquerda revolucionária e
anti-democrática. Era «O Fim da História», diziam, (enquanto outros pouco
depois começavam a avisar, e bem, para ‘Choques’). Como se enganaram. A
derrocada do Muro só permitiu que outras sementes lançadas geminassem livres em
direcção à luz do sol, para lançarem as trevas da destruição sobre a
civilização Ocidental. As sementes do ‘marxismo cultural’, ou neo-comunismo. Carlos Medeiros:
Excelente artigo.
O Partido Socialista do início da democracia já não existe. É hoje um grupo de
tendências saudosistas que se odeiam cordialmente. O pior é que roubam o amanhã
ao país porque gastam tudo hoje. Gustavo: "Onde está o resto do
Partido Socialista" - Presente, cara articulista João RamosGustavo: Se « isto » é o estar presente…
Deus nos acuda !!!
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