“Balada de amor ao vento”, de
Paulina Chiziane, prémio Camões de 2021, fora publicado em 1990. Paulina Chiziane, a primeira
mulher moçambicana escrever um livro, afirma a própria.
Comecei por gostar. Uma história de um
amor primeiro, sensível e vibrante, de paixão fogosa, interpretada com a
linguagem própria de quem leu muitos livros e viu muitos filmes e conhece as
superstições e os costumes das terras de doces sons das árvores e dos animais exóticos
que povoam esses espaços moçambicanos de balada, como de balada é, por vezes, a
narrativa de evocação e referências bem desenhadas, nos descritivos rápidos das
suas emoções de protagonista e narradora, aliadas ao apontamento de costumes
ancestrais, a que não falta, todavia, a graça viva das descrições que sons e
cores impregnam de magia e os diálogos vestem de sinceridade e leveza, na reflexão
e na expressão dos sentimentos, sejam estes de ódios ou prepotências, invejas
ou troças ou amores sinceros. Uma história, afinal, encantadora, que terá um
remate feliz para os protagonistas – Rindau e Mwando - apesar do muito
sofrimento na travessia de vidas que se desencontram e voltam a encontrar, a
mulher, eterna Cinderela, que a vida madrasta pareceu menosprezar, joguete de
destinos de brutalidade e torpeza, revestidas também do esplendor destinado às “rainhas”
de eleição, como foi o destino inicial de Rindau.
Uma obra de feição, curiosa de
referências, e de conceitos ásperos sobre a brutalidade do chefe – futuro -
africano poderoso e sádico, rápida na evolução do enredo a que um destino
favorável à protagonista proporcionou essa eventual ascensão social, fugaz mas
plena de vaidades e frustrações, que a natureza brutal do futuro rei com quem
casou – espécie de don Juan africano,
“búfalo” na designação pragmática de Rindau, sua primeira mulher – faz aproximar
de tantas outras histórias dos "Barbas Azuis" da História real ou imaginária que os livros ou o
cinema, ou a experiência própria vão proporcionando a quem as saiba captar.
Sim, comecei por gostar deste livro
ágil, sincero, no seu descritivo de balada, de 1ª pessoa, em torno desse
primeiro amor que se revelaria definitivo, pontuado por sagaz enredo humano que
a musicalidade e o colorido das referências espaciais tornam mais elástico e o
uso de designações antigas – Lourenço Marques em vez de Maputo, por exemplo –
demonstravam a isenção em termos de crítica política, contra os colonizadores
do ódio racial, hoje em dia à la page.
Afinal, enganara-me. Todo esse enredo vivo
em torno de Rindau, de narrador participante, torna-se - entre os capítulos 14
e 18, com a fuga de Mwando da nova relação com uma Rindau, tornada adúltera, nesse
amor constante dos dois protagonistas, de fugas e reencontros – pretexto para a
descrição do embarque de prisioneiros escravos para Angola, “terra do degredo, da cana, do cacau e do
café”. “Alguns deles eram condenados
por crimes graves; outros por crimes sem fundamento e mais outros simplesmente
porque eram negros”.
E segue-se o descritivo bem expressivo
da viagem tenebrosa e balouçante, com diálogos dos presos sobre as razões da
sua condenação, com referência à sordidez de brancos que os condenaram
injustamente, e à tristeza de uma partida definitiva para a morte ou o
desconhecido.
“Os pretos gritavam para outros
pretos como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano. O homem
alcança as alturas cavalgando no ombro dos outros. A galinha no poleiro caga
despreocupada para as que estão em baixo ignorando que no próximo pôr-do-sol a
situação pode inverter-se. A força de um mede-se pela fraqueza do outro. Um irmão
mata outro irmão para demonstrar a sua força ou sobrepor-se-lhe. Em todas as
gerações há exemplos de indivíduos que dizimam outros para assegurar o poder. Os
capatazes pretos empurravam os pretos, obrigando-os a subir a escadaria para a
proa do navio. …»
E afinal, talvez me engane. Não, não foi
por oportunismo que Paulina
Chiziane introduziu o percurso desse herói da sua história numa época de
escravatura como temática imprescindível hoje na crítica a esse colonialismo
onde ela pôde estudar e formar-se e criar certamente amizades com esses brancos
que as teorias em voga preferem condenar in
limine como orquestradores cruéis dos seus destinos. Também eu, como Paulina Chiziane, nasci em Moçambique, nessa bela Lourenço Marques a que ela não quis trocar o nome e estou-lhe grata
por isso. Também eu lá estudei e trabalhei, e colaborei com prosas de assento
crítico sobre a sociedade branca e negra – o meu Finias, o meu Salvador, a minha Marta, que recordo com saudade - além de
tantos alunos pretos a quem ajudei a erguer culturalmente nas aulas nocturnas desses
tempos perdidos no tempo.
Um bonito livro, esta “Balada de Amor ao Vento” que mereceu
o Prémio Leya, a que eu
concorrera também com um “Pátria minha
no café da manhã”, refeito em “Café
da Manhã” apenas, sem o enredo sentimental da praxe, mas
gracioso, espécie de tragicomédia sobre o tempo presente, que um dia, julgo eu,
terá aceitação - se, entretanto, os Putins da nossa inquietação não fizerem
explodir a máquina dos nossos destinos.
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