terça-feira, 26 de julho de 2022

Um livro au point

 

Balada de amor ao vento”, de Paulina Chiziane, prémio Camões de 2021, fora publicado em 1990. Paulina Chiziane, a primeira mulher moçambicana escrever um livro, afirma a própria.

Comecei por gostar. Uma história de um amor primeiro, sensível e vibrante, de paixão fogosa, interpretada com a linguagem própria de quem leu muitos livros e viu muitos filmes e conhece as superstições e os costumes das terras de doces sons das árvores e dos animais exóticos que povoam esses espaços moçambicanos de balada, como de balada é, por vezes, a narrativa de evocação e referências bem desenhadas, nos descritivos rápidos das suas emoções de protagonista e narradora, aliadas ao apontamento de costumes ancestrais, a que não falta, todavia, a graça viva das descrições que sons e cores impregnam de magia e os diálogos vestem de sinceridade e leveza, na reflexão e na expressão dos sentimentos, sejam estes de ódios ou prepotências, invejas ou troças ou amores sinceros. Uma história, afinal, encantadora, que terá um remate feliz para os protagonistas – Rindau e Mwando - apesar do muito sofrimento na travessia de vidas que se desencontram e voltam a encontrar, a mulher, eterna Cinderela, que a vida madrasta pareceu menosprezar, joguete de destinos de brutalidade e torpeza, revestidas também do esplendor destinado às “rainhas” de eleição, como foi o destino inicial de Rindau.

Uma obra de feição, curiosa de referências, e de conceitos ásperos sobre a brutalidade do chefe – futuro - africano poderoso e sádico, rápida na evolução do enredo a que um destino favorável à protagonista proporcionou essa eventual ascensão social, fugaz mas plena de vaidades e frustrações, que a natureza brutal do futuro rei com quem casou – espécie de don Juan africano, “búfalo” na designação pragmática de Rindau, sua primeira mulher – faz aproximar de tantas outras histórias dos "Barbas Azuis" da História real ou imaginária que os livros ou o cinema, ou a experiência própria vão proporcionando a quem as saiba captar.

Sim, comecei por gostar deste livro ágil, sincero, no seu descritivo de balada, de 1ª pessoa, em torno desse primeiro amor que se revelaria definitivo, pontuado por sagaz enredo humano que a musicalidade e o colorido das referências espaciais tornam mais elástico e o uso de designações antigas – Lourenço Marques em vez de Maputo, por exemplo – demonstravam a isenção em termos de crítica política, contra os colonizadores do ódio racial, hoje em dia à la page.

Afinal, enganara-me. Todo esse enredo vivo em torno de Rindau, de narrador participante, torna-se - entre os capítulos 14 e 18, com a fuga de Mwando da nova relação com uma Rindau, tornada adúltera, nesse amor constante dos dois protagonistas, de fugas e reencontros – pretexto para a descrição do embarque de prisioneiros escravos para Angola, terra do degredo, da cana, do cacau e do café”. “Alguns deles eram condenados por crimes graves; outros por crimes sem fundamento e mais outros simplesmente porque eram negros”.  

E segue-se o descritivo bem expressivo da viagem tenebrosa e balouçante, com diálogos dos presos sobre as razões da sua condenação, com referência à sordidez de brancos que os condenaram injustamente, e à tristeza de uma partida definitiva para a morte ou o desconhecido.

“Os pretos gritavam para outros pretos como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano. O homem alcança as alturas cavalgando no ombro dos outros. A galinha no poleiro caga despreocupada para as que estão em baixo ignorando que no próximo pôr-do-sol a situação pode inverter-se. A força de um mede-se pela fraqueza do outro. Um irmão mata outro irmão para demonstrar a sua força ou sobrepor-se-lhe. Em todas as gerações há exemplos de indivíduos que dizimam outros para assegurar o poder. Os capatazes pretos empurravam os pretos, obrigando-os a subir a escadaria para a proa do navio. …»

E afinal, talvez me engane. Não, não foi por oportunismo que Paulina Chiziane introduziu o percurso desse herói da sua história numa época de escravatura como temática imprescindível hoje na crítica a esse colonialismo onde ela pôde estudar e formar-se e criar certamente amizades com esses brancos que as teorias em voga preferem condenar in limine como orquestradores cruéis dos seus destinos. Também eu, como Paulina Chiziane, nasci em Moçambique, nessa bela Lourenço Marques a que ela não quis trocar o nome e estou-lhe grata por isso. Também eu lá estudei e trabalhei, e colaborei com prosas de assento crítico sobre a sociedade branca e negra – o meu Finias, o meu Salvador, a minha Marta, que recordo com saudade - além de tantos alunos pretos a quem ajudei a erguer culturalmente nas aulas nocturnas desses tempos perdidos no tempo.

Um bonito livro, estaBalada de Amor ao Ventoque mereceu o Prémio Leya, a que eu concorrera também com umPátria minha no café da manhã”, refeito emCafé da Manhãapenas, sem o enredo sentimental da praxe, mas gracioso, espécie de tragicomédia sobre o tempo presente, que um dia, julgo eu, terá aceitação - se, entretanto, os Putins da nossa inquietação não fizerem explodir a máquina dos nossos destinos.

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