quarta-feira, 6 de julho de 2022

E a fábula continua


Desta vez com gaivotas, figuras raras de fábula, de que ficámos a conhecer hábitos e sentimentos, numa praia real, com fainas reais, de que se podem extrair simbolismos, em descritivo de realismo e beleza, e evocações saudosistas de quem partiu e não esquece o seu ninho pátrio, mau grado o que se passa no Portugal de hoje, de tristeza e medo, como, de resto, num mundo a desfazer-se… ou talvez a reconstruir-se, na estranheza de quem envelhece, lembrando. 

NA PRAIA DOS CÃES - 2

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 04.07.22

 Choveu durante a madrugada e os cães ainda se espreguiçavam quando me cumprimentaram. Parece que o velho pescador mandou embora o galo-chefe que já estava um bocado depenado e o novo líder ainda está a afinar a goela. Hoje não houve cantorias. Galos e galarós parece estarem a medir distâncias…

Subimos todos à duna e eles, os cães, claro, espantaram duas gaivotas que estavam por ali alapadas. Só podia ser uma relação secreta pois os ninhos regulamentares delas são lá em cima na arriba fóssil ou suas cercanias. Na duna é que não pode ser nada pois não tem a segurança que elas querem para ovos e pintos. Nada de aberturas, vale o recato e o ocultismo. Mas também porque os barcos da arte da xávega zarpam às sete da tarde (horas a que as gaivotas começam a pensar na deita) e arribam pela uma da manhã não dando sossego à praia, à Lota «et pour cause» à duna e os barcos das redes fixas zarpam pelas sete da manhã e regressam antes do meio-dia. Apesar de haver menos um barco na faina (diz-se que está na doca seca a remendar um forte rombo provocado por marinheiro novato), esta é uma praia buliçosa, não é para fazer ninho nem para ocultar ilícitos. E as gaivotas fugiram. Não deu para lhes ver o rubor da vergonha nas faces. Ou seria no bico? Não sei, não vi. Também já não vi o pessoal que passara pelas tascas onde se vai matabichar à base de ginjinhas, bagaços e outros «combustíveis de aquecimento central» para quem vai manhã cedo ao mar.

Foi, pois, em serenidade que me deixei ficar no topo da duna a olhar para nenhures… e a pensar.

Voltei-me para o mar e pensei no Portugal sólido que se estendia para lá das minhas costas, pensei no Portugal líquido que se estendia à minha frente e pensei no Portugal imaterial que enche os sonhos de tantos lusófilos espalhados por todo o mundo… Sonhos de saudades, sonhos de um eventual regresso, sonhos de Pátria longínqua no tempo depois duma separação ditada pelas vicissitudes da História. Para todos, um Portugal representando uma terra prometida, uma Nação acolhedora de milhões de sonhos urdidos em todas as longitudes e em todas as latitudes. Sonhos tão sonhados que nem os telejornais conseguem apagar.

E o telemóvel tocou a dizer que o pequeno-almoço de café com leite e torradas, estava à minha espera na varanda da casa sobranceira à praia dos cães.

3 de Julho de 2022

Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS:

 Henrique Salles da Fonseca  04.07.2022  18:02: Such strong and romantic thoughts and words on Portugal,,,,and the sea the sands. the dogs,,,,,what beautiful writing,,,,!!!!!  Ely Ossy

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