O que o Homem calca, mas o resto dos
seres também, na eterna lei que Lavoisier definiu e que, olhando para trás, no
tempo, vemos como é curto este, em confronto com o das sucessivas mutações
iniciais no tal caleidoscópio infernal que as doutrinas humanas, juntamente com
as ambições despóticas dos homens que sonham ser deuses, ajudam a subverter e a
transformar sem descanso, no curto tempo histórico da sua estranha e
indecifrada projecção no universo.
O mapa e o caleidoscópio
A cidade onde Kant escreveu “A paz perpétua” alberga mísseis nucleares russos. O bêbado que tem nas mãos o caleidoscópio da história faz destas coisas.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 28 jul 2022, 07:2610
Macbeth dizia (numa circunstância difícil, é verdade) que a
vida é “uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, nada
significando”. E Stephen
Dedalus, pela sua
parte, sustentava que a história era um pesadelo do qual ele tentava acordar. Ora, há momentos em que nos apetece competir
com as grandes individualidades. Não há mal particular nisso: a loucura
mansa não afecta os outros e o ridículo das falsas frases imorredoiras não
estraga a vida de ninguém. Por isso, aqui vai a minha tentativa de emulação: a
história é um caleidoscópio nas mãos de um bêbado sofrendo de delirium
tremens.
Escrevo
isto tendo à minha frente a um mapa da Europa. Toda a gente gosta de mapas. Se prestarmos atenção à
história dos mapas, temos tudo lá: as marcas do conhecimento, da beleza (há
mapas que são obras de arte, e mesmo os mais frustes têm o seu encanto) e do
poder. Tudo, ou quase tudo: falta a transformação. Os mapas
são como os tratados de paz e as grandes conferências internacionais (Viena,
Versalhes ou Potsdam): fixam o mundo, que
se vai mudando no momento mesmo em que eles são debatidos e assinados. Para
a transformação, temos outra coisa que não os mapas: os caleidoscópios.
Suponho
que toda a gente gosta de caleidoscópios, pelo menos da memória da infância que
deles em nós sobrevive. Junto ao mapa que estou a olhar, tenho um. Agita-se
um pouco e a configuração dos pequenos vidrinhos muda subitamente. A beleza não
falha. De resto, “caleidoscópio” tem dentro de si a palavra grega para “belo”: kalos. A história humana – como a nossa
história individual, de resto – está cheia dessas mudanças de configurações.
Com a diferença que o resultado de cada agitação não é forçosamente belo. Às
vezes, o horror e a fealdade resultam da agitação.
No
mapa da Europa que tenho à minha frente, fixo o meu olhar num ponto preciso: um
pequeno território junto ao Báltico, encaixado entre a Polónia e a Lituânia: Kaliningrado. O nome vem de Mikhail Kalinin, presidente do
Soviete Supremo no tempo de Estaline e conhecido por ter enviado a sua mulher
para o Gulag. Mas não se chamou, obviamente, sempre assim. O historiador Norman
Davies, nesse livro de verdadeira história caleidoscópica que é Vanished
Kingdoms, conta as aventuras desse lugar, desde os remotos tempos dos prusai,
os nativos da Borussia (nome latino – como nos clubes de futebol alemães) até
aos tempos de Kaliningrado, passando pelo domínio dos Cavaleiros Teutónicos, da
Polónia e dos Hohenzollern.
É uma história fascinante. O tempo que mais conta para nós, a configuração que
se tornou mais decisiva, é certamente aquele em que Königsberg
(assim se chamava Kaliningrado) era a
capital da chamada Prússia Oriental. Um tempo longo. Foi em Königsberg que
nasceu e sempre viveu, escreveu e ensinou Kant. Foi aí que nasceu também E. T.
A. Hoffmann, escritor fantástico e um dos mais subtis críticos musicais do
século XIX. Foi aí igualmente onde nasceu o grande matemático David Hilbert e
onde cresceu Hannah Arendt. Depois,
o bêbado que tem nas mãos trémulas o caleidoscópio da história fez chegar os
nazis (que nunca ali ganharam eleições – mas não precisavam) e, em 1945, os
russos, que acabaram com a antiga cidade, ou com o que tinha dela sobrado dos
bombardeamentos da R.A.F.
Anne
Applebaum conta, em Between East and West, o que aí viu no princípio dos
anos 90 do século passado. Conta sobretudo a fealdade, típica do império
soviético, da nova cidade construída sobre as ruínas da antiga. Kakos,
o mau e o feio, substituiu kalos, o bom e o belo. E conta a quase
completa erosão da memória do passado alemão. Depois da terrível batalha de
1945, os nativos foram mortos ou expulsos e substituídos por russos. Os poucos
que ainda restavam quando Applebaum lá passou ocultavam a sua origem. Era como
se aquilo sempre tivesse sido russo. O túmulo e a estátua de Kant são, parece,
regularmente vandalizados. Para a alucinação retrospectiva da história, era
“russófobo” – mais dia, menos dia, temos o sr. Lavrov a repeti-lo. E a cidade
onde escreveu A paz perpétua alberga mísseis nucleares russos. O
bêbado que tem nas mãos o caleidoscópio da história faz destas coisas.
É
claro que a mudança das configurações guarda, à sua maneira, uma memória. Há
uma espécie de memória caleidoscópica, que vale também, de resto, para a nossa
existência pessoal. Mas se neste último caso ela é, apesar dos ocasionais
recalcamentos, inevitável, em história cabe aos historiadores reconstrui-la. A história é, por essência, morfológica: lida com
a transformação das formas, um ponto em que Spengler acertou, quaisquer que
tenham sido os seus vários erros. Penso muitas vezes nisto, porque essa é uma
das razões pelas quais nunca poderia ter sido um historiador. Mesmo que um dos
livros que mais me impressionou na adolescência tenha sido um livro de história
– A história começa na Suméria, de Samuel Noah Kramer –, rapidamente
percebi que aquilo não era para mim. Não conseguia lidar inteligivelmente com a
sucessão de migrações, deslocações e transformações caleidoscópicas. Daí ter
emigrado muito precocemente para a filosofia, e, dentro da filosofia, para o
estudo dos sistemas filosóficos, que são mundos autónomos perfeitamente
coerentes e fechados sobre si, cada um dispondo de uma realidade própria que
nos cabe descobrir.
Resta
que estas coisas continuam a fascinar-me. A vida, de resto, lembra-as
constantemente. A nossa e a do mundo. O destino da Borussia guarda ainda muitas
surpresas, algumas das quais – não forçosamente boas – nos podem afectar
directa ou indirectamente. O que o mapa não nos diz, diz-nos, e continuará a
dizê-lo, o caleidoscópio que o bêbado tem nas mãos.
MAPAS GEOGRAFIA CIÊNCIA RÚSSIA MUNDO
COMENTÁRIOS:
José Paulo C Castro: O mais interessante na história atual de Kaliningrado é o facto de manter o
nome (sinal da fraca rejeição de Estaline), na tradição contínua de líderes
russos nomearem cidades em lugares com nome, e de os russos a considerarem sua,
sendo os últimos a chegar ao sítio. Como se a mãe Rússia fosse uma mãe de acolhimento de
territórios órfãos e os seus filhos não passassem de criadores de órfãos. Rolando Lima: Excelente como sempre Inácio Rodrigues: Obrigado e parabéns ao Paulo
Tunhas bento
guerra: Está-se sempre a aprender, oh Tunhas. E esta?.. Américo Silva:
A história não
tem moral nenhuma, a paz
perpétua alberga mísseis nucleares russos, ainda se fossem
americanos... Otavio
Luso > Américo Silva: Nem mais. Ao país que defende,
e bem, mas com contratos leoninos (mal, aqui), os seus interesses, tudo se
perdoa. Sobre os misseis nucleares que os USA colocaram na Europa, depois de
terem sido o único país do mundo a utilizá-los para assassinarem milhares de
cidadãos indefesos (no maior crime contra a humanidade que desde sempre o
planeta conheceu), nunca o autor teve uma palavra de recriminação, o que revela
da sua imparcialidade. Pode escrever-se bem e ser-se simultaneamente desonesto. Fernando CE: É para mim indispensável ler a
suas crónicas. Aprendo e reflicto muito com o que escreve. Parabéns. Soeiro: O Paulo Tunhas é o cronista
mais interessante da comunicação social em Portugal. luis doriaSoeiro: Subscrevo a sua opinião. O facto de ter sempre poucos
comentários (em comparação com outros cronistas) diz muito sobre os leitores. Álvaro dos Santos > luis doria: Boa tarde. Pode explicar a sua
teoria: "O facto de ter sempre poucos comentários (em comparação com
outros cronistas) diz muito sobre os leitores". Não consigo fazer uma ligação.
Obrigado.
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