domingo, 24 de julho de 2022

Uma pessoa honesta

 

Diana Soller, na simplicidade com que impõe verdades numa análise política bem reveladora de fragilidades na construção europeia, em função de dependências que hoje mostram o seu falhanço. Assustador. Dificilmente se poderá já aplicar o provérbio “Os cães ladram e a caravana passa”. Talvez que a caravana já não passe, porque há sempre cães que ladram, subservientes aos ossos da sua conveniência, como alguns comentários denunciam.

A Europa não é o que a Rússia quiser

Repetir a propaganda russa, nas nossas línguas, nos meios de comunicação social europeus não passa de antiamericano e antieuropeísmo que não nos faz falta nenhuma.

DIANA SOLLER Colunista do Observador

OBSERVADOR, 23 jul 2022, 00:1727

Não há outra forma de dizer: a Europa construiu a sua paz e prosperidade com base no fornecimento de segurança por parte dos Estados Unidos e da energia barata fornecida pela Rússia. Esta dupla dependência foi altamente favorável para todos nós. Permitiu-nos usufruir de décadas de paz e bem-estar inéditas na história. Foi tão favorável, que precisámos de uma guerra no nosso continente para questionarmos os fundamentos da nossa estabilidade confortável.

Avisos sobre o risco da dependência da Rússia não faltaram: a Guerra da Geórgia, a Guerra da Ucrânia de 2014 e a consequente anexação da Crimeia e o crescente desprezo de Moscovo pela Europa, que a diplomacia russa deixou de esconder há já vários anos.

O sentimento antieuropeu da Rússia deve ser lido no quadro da inimizade declarada aos Estados Unidos. Teve início unilateral em 2007 – sublinho unilateral – na Conferência de Segurança de Munique, onde Putin declarou a sua oposição hostil à unipolaridade norte-americana e à arquitetura de segurança europeia.

Mas é importante ter atenção a um pormenor: da perspetiva de Putin, a Europa não tem o mesmo estatuto que os Estados Unidos. Não é um estado soberano e por isso nunca poderá ser uma grande potência (como de resto a Rússia é, na perspetiva de Putin); não pode ameaçar a Rússia porque não tem estatuto militar autónomo; não pode ser um par da Rússia porque é uma civilização decadente nos seus valores pós-religiosos e pós-modernos.

Por isso – e porque o excepcionalismo russo é messiânico-conservador – a Europa está condenada política, militar e moralmente, perante uma Rússia em plena ascensão política (soberana), cheia de capacidade militar e moralmente superior. Pior. A Europa é “um vassalo dos Estados Unidos”, de forma a que nem chega a ser um inimigo. Não merece muito mais que desrespeito diplomático e desestabilização permanente. Por ataques híbridos de vária índole, inclusive pelo apoio a “homens (e mulheres) fortes” europeus que partilham com o Kremlin a ideia de que as democracias liberais são regimes fracos e sem futuro.

Quanto à outra dependência, é preciso dizer que a relação transatlântica nem sempre foi um mar de rosas. Teve momentos bastante difíceis como as divisões em relação à Guerra do Iraque e a quase-ruptura entre a Europa e a administração Trump. Mas ainda assim, comparar a relação transatlântica – assimétrica é certo – com a relação com a Rússia é não querer ver a realidade como ela é. Os Estados Unidos são nossos aliados. A Rússia é nossa inimiga.

Foi preciso a Guerra na Ucrânia para a Europa olhar para as suas fragilidades de sempre e começar a enfrentá-las. A nossa dupla dependência, que nos saiu barata durante décadas e o nosso sonho (irrealizável, de resto) de que podíamos nunca mais pegar em armas e, ainda assim, ditar regras de bom comportamento internacional, esfumaram-se, de um dia para o outro, porque a realidade que já era impôs-se definitivamente.

Regressar ao mundo real – o que, na minha opinião, só faz sentido no quadro transatlântico como bem têm entendido os líderes dos países europeus – está a ser difícil e vai ser ainda mais. Sem provocarmos, estamos indiretamente implicados numa guerra militar e directamente implicados numa guerra comercial que não tem data para terminar. E dependemos do nosso inimigo.

Há muitas lições a tirar do nosso prolongado intervalo da história. Mas há duas imediatas. A primeira é que a Europa cometeu erros, mas não é “fantoche dos Estados Unidos”. É aliada dos Estados Unidos. Nem é uma entidade desprezível como Moscovo quer que pensemos. E repetir a propaganda russa, nas nossas línguas, nos meios de comunicação social europeus, não passa de antiamericano e antieuropeísmo que não nos faz falta nenhuma.

A segunda é que a Europa terá de fazer sacrifícios e terá de ser solidária entre si, não só porque subscrevemos e comprometemo-nos com esse valor (que não belisca o nosso interessa nacional), mas também porque os estados são senhores da sua soberania, mas a economia, a nossa maior frente de batalha, está indelevelmente interligada. Quer se goste quer não.

A guerra é um daqueles momentos na história onde não há duas oportunidades para tomar uma boa decisão. Não fizemos nada que evitasse este conflito, não fizemos nada que atenuasse as nossas dependências. Mas também não tomámos decisões, desde o colapso da União Soviética, que justifiquem o comportamento da Rússia. Agora temos de viver a nossa própria circunstância. Cabe-nos fazê-lo o melhor que pudermos. Cabe aos governos nacionais explicarem essa nova circunstância para que o apoio da opinião pública se mantenha firme. Joga-se aqui o futuro que, certamente, não voltará a ser o que o passado foi. Mas que se pode fazer de liberdade e democracia, que são bens em si só. Prefiro uma ordem transatlântica a uma ordem que até poderá ser próspera (caso a China entre na equação), mas onde os nossos direitos individuais não são reconhecidos.

GUERRA NA UCRÂNIA   UCRÂNIA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:

FC: Concordo absolutamente! Vamos é  precisar de novos "governos nacionais" que assumam uma UE verdadeiramente independente como o nosso desígnio futuro. Vamos precisar de políticos de uma outra estirpe e deixar de louvar os "Costas" deste mundo —a que chamamos "habilidosos" quando não o são— que apenas vivem para os seus curtos e muito pouco ambiciosos calendários eleitorais. E para isso precisamos de eleitores muito mais atentos e exigentes. De meios de comunicação muito mais aguerridos. E de preparar as próximas gerações. Para já, importa ganhar a guerra e chamar os bois pelos nomes.           Liberales Semper Erexitque:  Li o subtítulo e tive a esperança de encontrar aqui, finalmente, alguém que repetisse a propaganda russa, à qual não tenho acesso - nisso a Ucrânia ganhou a guerra ainda antes desta começar. Foi tempo perdido! Vou continuar a consumir apenas propaganda ocidental, já estou habituado e já desenvolvi anticorpos mais saudáveis do que os das "vacinas" covinhas! Sempre que leio acerca de alguma "grande vitória" da Ucrânia, já nem preciso de ir aos pormenores, já sei que é mais uma "peta".            ………….Francisco Tavares de Almeida > Pontifex Maximus: No plano teórico tem toda a razão. Mas no plano prático, qual ou quais são as alternativas? O petróleo do Mar do Norte não tem grandes reservas, tem uma extracção cara e vulnerável a acidentes meteorológicos. Diversificar as aquisições? Gás do Qatar, da Nigéria e da Argélia, não chega e, além da sempre possível instabilidade política desses fornecedores, a Europa não pode garantir a segurança das rotas marítimas. Mesmo a Inglaterra, com dois porta-aviões modernos, teve de cortar o orçamento e não construiu os navios de apoio. Assim terá de os integrar numa força conjunta com os americanos no âmbito do AUKUS, com a prioridade no Índico-Pacífico. França tem um porta-aviões nuclear, o Charles de Gaulle, e os caças-bombardeiros Rafale. À justa, se não insuficientes para as suas rotas de abastecimento mediterrânicas. A Alemanha, cujo rearmamento ainda assusta muitos, levará alguns anos até ter uma marinha e terá de dar prioridade ao Báltico. Petróleo é ainda pior. Instabilidade política, fornecedores ideologica e religiosamente hostis ao Ocidente e a concorrência fortíssima da China, que é e será o maior importador mundial de hidrocarbonetos. Novas energias e energia verde? Poucos sabem mas até as eólicas dependem de metais e terras raras que a Europa simplesmente não tem e que se encontram maioritariamente na China, na Rússia e na zona de influência desta última, especialmente na Transcaucásia. O mesmo para carros eléctricos ou meramente "chips"  de que tudo depende e a Europa é fortemente deficitária. Excepto um ou outro especialista isolado, ainda ninguém teve a coragem de explicar que o nuclear é incontornável e no tempo que irá demorar a construir centrais, sobretudo a testar e ultimar o mininuclear, ainda não operacional, ou a Europa tem o apoio forte dos EUA ou vai passar calor no Verão e frio no Inverno. Se não passar alguma fome pois, sem a marinha americana, a Europa não consegue por si assegurar o fornecimento de cereais e, sobretudo de adubos.              Liberales Semper Erexitque > Pontifex Maximus: Só acabando com a NATO e fundando uma política de defesa da UE poderemos livrar-nos dessas "dependências".            J Sm: Insistir no erro não é muito saudável. Veja lá se percebe que a Rússia faz parte da Europa e em termos culturais é mais Europa que a sua Europa americanizada.              manuel soares Martins: Tem toda a razão: era só o que faltava! A Europa é o que EUA querem e mais nada!           Francisco Tavares de Almeida: É certo que a Europa dependeu dos EUA, não só na sua defesa como no comércio. Meios de pagamento, estabilidade monetária, rotas comerciais seguras, tudo foi assegurado e pago pelos EUA. E a energia só se manteve barata porque os EUA, para conter a Rússia, influenciaram e mesmo intervieram junto dos produtores do Médio-Oriente. Com energia barata, baixa despesa militar e possibilidade de ir buscar bens e mão-de-obra onde eram mais baratos, a Europa sustentou as suas democracias, luxos caríssimos, com despesas renovadas a cada eleição. Pior ainda, estribada na superioridade moral de um sistema político, em parte pago por terceiros, criticava os EUA pelo Iraque e a Rússia pela falta de liberdade. Momentos difíceis na relação com os EUA? Haja Deus! Pior que as críticas ao Iraque foi o escandaloso apoio de França e Alemanha a um Irão que desesperadamente se quer nuclearizar, Pior do que o Iraque, foi a oposição e promessas falsas à entrada da Turquia na CEE, que a foi afastando do Ocidente, permitiu Erdogan e estava já à beira do desastre - para a Europa - quando optou por adquirir mísseis S-400 à Rússia. A crise deu-se quando Trump verificou a inutilidade dos avisos que vinham já muito de trás, para a Europa cumprir os orçamentos de defesa de 2%, como acordado na NATO. Bruto e malcriado como era, disse aos dirigentes europeus para irem tratar de vida. Na minha interpretação, disse para crescerem, deixarem-se de idealismos juvenis, e começarem a pagar as suas contas com dinheiro a sério e não papel saído das rotativas dos bancos centrais e do BCE. Salvo erro em 2017/2018, começou a pressionar Merkel para não avançar com o Nordstream-2. Em 2019, quando constatou que nada a demovia, bruto e malcriado como era, disse que ela não servia nem para porteira de uma das suas torres. Pessoalmente acho engraçado que em 2019, Merkel era quase santificada e menos de três anos depois, qualquer cronista da imprensa portuguesa já se acha no direito de a criticar e comparar a Schroeder. E já se começa a dizer que o seu apoio è imigração também contribuiu para enfraquecer a Europa. Menos de três anos para passar de bestial a besta. Diana Soller conclui bem. A Europa não tem outra possibilidade e a alternativa é a irrelevância e o empobrecimento, não para os nossos netos mas já para os nossos filhos. Se a Europa ainda tem força anímica para esse caminho é duvidoso. Se continuar a permitir a destruição da sua base histórica, moral e ética - a profética judaica, a religião cristã, a filosofia grega e o direito romano - parece-me que já não será possível. Se persistir nestas democracias desvirtuadas em que são eleitos os que mais prometem, no fundo os que mais mentem, e nunca ninguém é responsável, é mesmo impossível.               Eduardo L: Quando é que as crianças saem da sala e entram os adultos??            cristina elias: Muito bom            João Ramos: Bom e realista artigo de Diana Soller, como aliás nos tem habituado, só não vê quem não quer ou não consegue, o mundo está muito perigoso e grande parte da culpa provém da Europa e do seu desleixo!              Carlos Quartel: Um texto escorreito, sem grandes novidades, mas com a verdade necessária. Apetece convidar os leitores (os que o possam fazer) a ler a crónica de Miguel Sousa Tavares no Expresso. Branquear Putin e a pôr as tintas no Ocidente, no dia em que Putin, após a assinatura do acordo a libertar os portos ucranianos resolveu presentear os esforços de Guterres e de Erdogan,  mandando uma salva de misseis sobre o porto de Odessa, anunciada principal via de escoamento dos cereais. Felizmente para ele, em Portugal um cronista sobrevive, mesmo depois de uma série de disparates publicados. E sobrevive com a imagem intocada ....                  Miguel Ramos: Excelente texto, de facto, o único caminho possível é o reafirmar da nossa aliança com os EUA. A Rússia de Putin é um estado criminoso, castrador das liberdades e direitos fundamentais do Homem, que não merece credibilidade nem a nossa confiança.               bento guerra: Outra que deve ser paga à peça. Vamos pedir à América que adira ao "euro"?            Nelson Soares > bento guerra: Que visão simplista (diria até simplória) do Mundo : Os EUA mandam em tudo (excepto na Rússia e China), e quem não partilhe uma visão anti-americana do Mundo é algum sem qualquer pensamento critico e que repete apenas a propaganda que lhe foi incutida. Apenas um pequeno punhado de iluminados (nos quais está incluido) anti-americanos e anti-globalistas é imune a qualquer propaganda e fake news....Dê algum crédito às pessoas que têm ideias diferentes das suas e não os tome por marionetas acéfalas.             bento guerra > Nelson Soares: Eu fico na minha e você na sua que não sei qual é).Esta Diana,do que escreve aqui e fala na televisão, não merece um argumento               João Ramosbento guerra: Pois merece muito mais que uma pobre mente acéfala… à bon entendeur…            António Gomes > bento guerra: Mais um que continua ser pago pelo putin... espero que lhe pague bem ou que um dia lhe ofereça uma datcha... desde que não seja num gulag!!!             Paulo Neves: Leia o artigo de novo e se ainda não compreender, pergunte.            Nuno Filipe; Enquanto não tivermos armas nossas em número dissuasor       (inclusive ter + armas nucleares) ninguém nos leva sério. Os americanos só continuam a “proteger” a Europa porque lhes compramos muitos produtos (inclusivamente  armas)….               José Dias: E repetir a propaganda ucraniana - ou, melhor dizendo, a propaganda norte-americana difundida por ucranianos e não só - será mais exactamente o quê?            CarLos > José Dias: O ataque russo ao porto de Odessa menos de 24 horas depois de assinado o acordo é propaganda de que lado? Eu digo-lhe: é o estado terrorista e amoral russo a mostrar a sua verdadeira face. A rússia é inimiga da europa e de Portugal, e você, por tudo o que escreve, também.            Paulo Morisson:  “o excepcionalismo russo é messiânico-conservador” mas não é só. É também um regionalismo instrumental de algo bem mais perene e profundo: o movimento progressista/Woke/comunista. O Império do Meio que vai assim finalmente tomar o Mundo à frente da Internacional  Comunista / Nacional Chinesa. Depois de lançar Putin aos cães, repete-se o erro da Segunda Guerra mantendo a segunda mas principal ditadura viva e a democracia exaurida falece aos seus pés.  Ou finalmente acordamos?              Fernando Fernandes: Excelente artigo que retrata muito bem a apatia e condescendência com que a Europa aceitou o regime de Putin e ajudou a enriquecer. Nada de novo, a próxima ameaça será a expansionista China, com as suas ilhas artificiais e a ameaça constante sobre Taiwan. Estamos avisados.           Paulo Morisson > Fernando Fernandes: A mesma conclusão em simultâneo! Coincidência? Sim, perante o óbvio só podemos ter visões coincidentes.            Fernando Fernandes > Paulo Morisson: Nem mais. Negociar com regimes autocráticos sectores chave como energia, águas e todas as áreas de interesse nacional (exemplo os portos) são um verdadeiro tiro no pé.  Não são parceiros comerciais, são rivais que nos vêm pilhar, sem darem nada em troca. Que as guerras não são só bélicas. Cumps

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