Um problema social que há muito andamos vivendo.
Excelente síntese de PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. Gostei a
valer de uma análise, afinal, imprescindível, nos tempos que correm.
Agradeço-a, por isso. É necessário que surja um “Marcuse” de sentido contrário,
que inclua os conceitos de honestidade e bom-senso nos novos ditames.
Wokismo: a ilusão da inclusão
Para o wokismo tudo seria resultado de
uma construção patriarcal, heterossexual e branca, pelo que um mundo justo só
pode ser assegurado com o desaparecimento do agente corruptor.
PATRÍCIA FERNANDES Professora
na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 11 jul 2022, 00:184
Em 1974, George Steiner participou
como orador nas conceituadas Massey Lectures, debruçando-se sobre o vazio espiritual presente nas
sociedades ocidentais em resultado do declínio religioso decretado pela
morte de deus:
“a
decadência de uma doutrina cristã abrangente deixou em desordem, ou em branco,
percepções essenciais de justiça social, do significado da história humana, das
relações entre a mente e o corpo, da posição do conhecimento na nossa conduta
moral.”
Desta
desordem resultou uma nostalgia do absoluto (expressão que daria título ao livro):
“Essa nostalgia foi directamente
provocada pelo declínio na sociedade e no homem ocidentais da antiga e
magnífica arquitectura da certeza
religiosa. Neste momento do século XX, estamos sedentos como
nunca de mitos, de uma explicação total: ansiamos
por uma profecia garantida.”
De
acordo com Steiner, esta nostalgia e esta ânsia conduziram ao sucesso de um
conjunto de teorias que, apresentando-se como pós-religiosas, se traduzem em
estruturas próximas e substitutas do fenómeno religioso. Steiner designa
esses movimentos como mitologias,
que podem ser identificadas a partir de três condições: 1) são
sistemas de pensamento com pretensões de totalidade, apresentando uma história
total do homem no mundo; 2) assentam
em textos canónicos, trazidos pelo génio fundador, e que conduzem a conflitos
entre ortodoxia e heresia; 3) avançam
uma linguagem própria, com metáforas, símbolos e gestos cruciais.
E quais são as grandes mitologias do século XX? As três
primeiras palestras identificam três
mitologias racionais: o marxismo,
a psicologia freudiana e a antropologia de Lévi-Strauss; a quarta debruça-se sobre as mitologias irracionais,
desde as mistificações orientais às crenças anticientíficas.
Nestas quatro mitologias encontramos: 1) uma
narrativa totalizante, que explica como chegámos até aqui e o que está errado
no atual estado de coisas; 2) textos
fundadores, que geram confronto de interpretações e conflitos internos; e 3) recurso a um vocabulário próprio que é preciso
consagrar e divulgar.
Ora,
esta grelha de análise de Steiner, apresentada há quase 50 anos, revela hoje uma enorme pertinência. Ela permite-nos compreender melhor o Social
Justice Movement, geralmente designado
como cultura woke. Uma das dificuldades do estudo adequado deste
movimento prende-se com o facto de ele ser resultado da convergência de várias
posições e autores – mas
identifica-se facilmente a influência do marxismo, da psicanálise e
do estruturalismo neste conjunto de ideias que, desde a década de 70,
tem moldado a Nova Esquerda, e cujos lastros de anti-cientificidade remontam
à Escola de Frankfurt. O resultado
só poderia ser a construção
de uma grande mitologia, que
apresenta as três condições identificadas por Steiner:
Em primeiro lugar, o
wokismo apresenta-se como totalizante: a sua estrutura narrativa permite explicar o estado
atual do mundo e o lugar do homem, bem como todos os seus problemas. Tudo isto seria resultado de uma construção
patriarcal, heterossexual e branca, pelo que um mundo justo só pode ser
assegurado com o desaparecimento do agente corruptor. Tal significa esvaziar de significado aquelas categorias descritivas: é por essa razão que se fala em “destruição do patriarcado”, “fim da
heteronormatividade” e “morte do homem branco”. Identificado o agente do mal, só a sua eliminação
permitirá a salvação da sociedade.
Em segundo lugar, é possível reconhecer um conjunto de textos
sagrados, que determinam o modo como devemos orientar a nossa vida. Esses
textos provêm de vários autores, como Michel
Foucault, Jacques Derrida, Herbert Marcuse, Jacques Lacan ou Frantz Fanon, e permitiram lançar as bases para um conjunto de
teorias, como o pós-colonialismo, a teoria queer, a
teoria crítica da raça e o feminismo. Por forma a não dispersar as diferentes lutas, Kimberlé Crenshaw desenvolveu
a ideia de interseccionalidade, pensada para o cruzamento entre
reivindicações feministas e raciais, e que faz notar a relação existente entre
todas as lutas. O objetivo seria manter os grupos oprimidos unidos
contra o grupo opressor – mas a prática tem-se traduzido em contínuas lutas de
purificação interna, com antigos companheiros de luta transformados em inimigos
quando questionam as demandas mais vanguardistas do movimento. Pensemos em J. K. Rowling ou Margaret Atwood,
denunciadas por TERFismo; Caitlyn Jenner,
criticada por ser republicana; ou Arielle Scarcella, acusada de transfobismo
por ser lésbica.
Em terceiro lugar, há todo um vocabulário que é preciso explicar e impor: interseccionalidade, heteropatriarcado, homonacionalismo,
heteronormatividade, binário, TERF,
Queer, etc.. A questão da linguagem é de
suma importância: a introdução de um vocabulário específico tem como
objetivo criar as condições para que a mitologia se imponha de forma
hegemónica, afastando outros discursos possíveis. E a estratégia é
particularmente perversa: apresentando-se como fomentadora de inclusão, o que
se pretende é impor uma nova forma de ver o mundo e percecionar as
dinâmicas sociais. A mais recente campanha ABCLGBTQIA+ pretende exactamente
divulgar esse novo vocabulário para condicionar o nosso pensamento. Não é
inclusão, é substituição – e esta é, necessariamente, excludente.
Na verdade, a reivindicação de
inclusão não passa de uma ilusão: todos os projetos políticos geram exclusões e
os projetos mitológicos mais do que todos os outros. Começam pela exclusão dos crentes iniciais que ousam
questionar os textos ou valores fundamentais. Continuam com a exclusão daqueles
que, partilhando a mesma identidade, se recusam a partilhar as mesmas ideias. E
terminam com a exclusão de todos aqueles que se recusam a aceitar que esta
verdade representa toda a verdade. Para
cada um destes momentos, a solução é o silenciamento, com acusações de fobismos vários,
discriminação, discurso de ódio ou incentivo à violência.
Mas
não é nada que nos deva surpreender. Um dos pais fundadores do atual movimento
de justiça social, Herbert Marcuse, publicou em 1965, um ensaio em que redescreve os
valores da tolerância e da liberdade de expressão. Para Marcuse, esses valores só fazem sentido
quando toda a sociedade tiver condições para pensar livremente. Até lá,
nenhuma tolerância deve ser dada aos que se opõem à construção do novo mundo. O
texto de Marcuse é hoje de importância vital (voltaremos a ele), pois tem vindo
a ser dogmaticamente seguido e aplicado por estes movimentos. Fala-se em
inclusão, mas a sua verdadeira natureza é a da radical intolerância.
Professora da Universidade da
Beira Interior
FILOSOFIA POLÍTICA POLÍTICA POLITICAMENTE CORRECTO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Carminda Damiao: Texto claro e preciso, sobre o Wokismo. É preciso acordar a sociedade,
porque a maior parte dela, parece que adormeceu e nem repara no que se passa à
sua volta. Obrigada e parabéns.
Américo Silva: Mesmo a igreja católica anda absolutamente desnorteada
e confusa, a transformar-se num aglomerado de fanatismo e superstição, num
lastimoso exercício de auto-flagelação, onde clérigos que nunca pecaram atiram
pedras a outros clérigos, e chamam em seu auxílio os inimigos de sempre, para
dragar testemunhos de abusos dum modo que ofende o direito, e apontam a necessidade de materialização de
pedido de perdão, ou seja, a necessidade de remunerar a delação. Henrique Frazão:
Wokismo =
Neo-fascismo josé
maria: À colunista só faltou também falar na disciplina da Cidadania e
Desenvolvimento e na "Ideologia de género". Fora isso, veio muito bem
embalada. Mas cá para mim, que também tenho direito à minha democrática
opinião, ninguém, em Portugal, consegue protagonizar tanto o wokismo como o
chefe da família Guimarães. S Belo > josé maria: Já agora, explique
porquê.
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