Da família vasta e dispersa e ruidosa e unida, em que o elo responsável e
generoso daquela prefere abdicar momentaneamente dos seus interesses habituais
de trabalho ou diversão para em torno dela se desdobrar, carinhosamente incansável
e atento. Assim o foi antes, segundo a crónica antiga, no encanto dos
pequeninos, buliçosos ou mais dependentes, duvido, contudo, que o seja ainda,
os pequenos de outrora a fazerem-se de certeza mais independentes e criando os
seus próprios laços afectivos, que necessariamente os tornam mais rebeldes ou
distantes, pese embora esse elo efusivo e generoso da matriz primeira, a rever-se
ainda num outrora/agora de uma intemporalidade desejada, na sucessão das
gerações. Um descritivo terno e vivo, brilhante de movimentação e graça, a que o
comentador Augusto Sousa, deu o seu parecer também brilhante e justo - a esse texto que aspira a um
ideal permanente de coesão afectiva, para uma sociedade mais saudável:
augusto sousa: Magnífico registo de uma vivência no seu estado mais
acolhedor, tolerante e identitário de família! Revejo-me na sua crónica cheia
de sensibilidade e com uma escrita de antologia. Obrigado MJA! Mas cada vez há menos este
espírito de abnegação em nome de uma criação de laços e afectos que tanto fazem
para o equilíbrio e desenvolvimento pessoal. Ficam para a vida, quando se tem
essa oportunidade de felicidade!
A outra face da “única estação”
Faz-se aliás cada vez menos caso – terá
caído em desuso? – da expressão “família unida” mas eu traduzo: é uma tribo que
gosta de si, se gosta entre si e quer continuar a gostar.
MARIA JOÃO AVILLEZ OBSERVADOR 20 jul 2022, 00:205
Antepropósito: podia ser a preguiça, com
este calor. Ou o chamamento do verão, mais os seus ex-libris, imutáveis ex-libris que fazem dele a “única “estação
que era a de Ruy Belo e é a minha: o alvorecer da manhã, a certeza do mar, o
desejo do ócio, a saudade do fare niente, o cheiro acre da terra quente,
as rosas do jardim que inexplicavelmente resistem a tudo. Os braços nus, o
linho, as sandálias. As noites que nunca deixamos que cheguem ao fim.
Sim
podia ser tudo isto que me levou hoje a não produzir prosa. Mas não. Troquei
voluntariamente um escrito novo pela reedição de partes de uma crónica já
antiga motivada pelo espanto de uma extraordinária descoberta: a imaculada
“actualidade” dessas linhas aqui estampadas há décadas. Podia tê-las redigido
ontem! Falo de quê, afinal? Falo da outra face da “única estação”, evoco o que
para abreviar se chama expeditamente um “verão em família”. O qual, como devem
já ter reparado, mais se aparenta muitas vezes a um levantamento de
rancho, uma alteração da ordem estabelecida, um circo, uma estação
desconhecida. E depois de repente descobrimos que é na dobra de tudo isto que
se esconde um dom e tão grande que exige um automático “hossana”. Faz-se aliás
cada vez menos caso – terá caído em desuso? – da expressão “família unida” mas
eu traduzo: é uma tribo que gosta de si, se gosta entre si e quer continuar a
gostar.
Continuemos
portanto por este Julho fora, balanceando entre o dom e as consequências do
dom. Seguem abaixo, como as vou vivendo. E como as vivi – e escrevi – há anos.
Alterei-as pouco. Não ganharam uma ruga.
Haverá
melhor sinal de vida?
Crónica reeditada
1Primeiro foi o caracol. Era muito grande
e pesava. Não foi fácil. Quatro braços para o arrastar para porto mais seguro
que o jardim, com a casca de cerâmica luzindo ao sol de Julho, tal como pela
primeira vez, há anos atrás, olhei um igual, em casa de José Pacheco Pereira, e
foi amor à primeira vista (com o caracol).
Seguiu-se a retirada da águia de ferro
(comprada nos idos de oitenta a um escultor belga num inextricável misto de
paixão pelo Benfica e amor à arte) e depois levou-se a grande cigarra que nunca
conseguiu ter formiga por companhia como aqui se teria ambicionado, porque o
escultor (da cigarra) não era afeiçoado a formigas. Com este “habitat sobre
relva” devidamente removido, puderam montar-se as balizas, anunciadoras da
iminente aterragem dos netos nesta freguesia oestina. E passar ao acto 2.
Fazendo camas e outras camas que saem por
de baixo dessas; trazendo a cama de grades da garagem para a prodigiosa Sofia
Helena, neta mais nova que mora em Viena, está a chegar a Óbidos e vai ter um
irmão em Outubro; instalando a rede de vólei no tanque de rega (em boa hora nos
idos de oitenta “transformado” em piscina por mor dos bisavós dos netos);
provendo a dispensa e enchendo o frigorífico (actos sempre falhados porque
ambos, por definição, logo “desenchem”.) E, claro, respirando fundo. Muito
fundo, antes do mergulho no caos que é o outro nome das férias da tribo. Que
por sua vez é o outro nome de um dom.
Ora apetecido ora desapetecido, o caos
porém anunciava-se: virá para ficar.
2A casa encher-se-á de filhos, netos,
cônjuges, namoradas, sobrinhos, parentes e sobretudo os omnipresentes “amigos”,
nacionais e estrangeiros, de uns e outros. Sempre sem data fixa de chegada nem
de partida, o que desnorteia qualquer pequena, média ou grande dona de casa.
Sempre famintos e sempre largando atrás de si um caudal de toalhas de praia,
havaianas, mochilas, telemóveis, chaves, iPads, brinquedos avulsos, bóias,
livros, revistas, jornais, jogos. E outros díspares objectos. por vezes também
misteriosamente abandonados para todo o sempre, no sitio onde pela primeira vez
foram largados (alguns ainda lá jazem até hoje).
Fazem-se e desfazem-se camas a alta
velocidade, avança-se com 32 graus centígrados para lavandarias superlotadas
quando a máquina de lavar se cansa de vez de engolir tanta roupa; abrem-se e
fecham-se estonteantemente frigoríficos, há biberons em lugares insólitos,
descobrem-se legos nas banheiras e os depósitos dos nossos carros -nossos, do
patriarca e da matriarca desta feira – estão normalmente sempre vazios.
Enfim, arruma-se, corre-se, organiza-se
(ingloriamente) o caos. Mas vive-se.
Com líquida fluidez, o dinheiro some-se
dos bolsos enquanto o tempo (quem diria, em “férias”?…) está sempre em contagem
decrescente para ir ao super, à praça, à farmácia, ao parque, aos jornais, ao
infrequentável aeroporto levar ou trazer os membros da tribo que chegam
finalmente à pátria, vindos dos países onde labutam.
Curiosamente, vive-se em estado de
“emoção à flor da pele” e, por razões certamente sazonais, eleva-se com
espantosa facilidade o tom de voz: de repente, é como se o grito substituísse o
verbo, e a gritaria equivalesse a uma amável conversa familiar. Coisas do ócio,
talvez.
É também um tempo onde, mal “abrem as
férias”, eu me chamo – ou melhor chamam-me — “alguém”: “Alguém pode ir a Lisboa
buscar o Vasco que chega de Viena?”; “Alguém traz as meloas da praça?”; “Alguém
pode levar-me ao ténis? “
3 Por aí fora, por aí fora, que é verão,
estamos em férias, temos mar e campo. E celebra-se acima de tudo a família, que
é coisa séria e prioridade forte. Mas que isso não nos iluda sobre a efectiva
alteração da ordem que passou a vigorar nas nossas casas, nem nos faça achar
normais os altíssimos decibéis da vozeraria que incessantemente vêm da mesa;
dos mergulhos; das (recalcitrantes) idas para o banho dos pequenos, das
acaloradas discussões políticas dos grandes.
Acredito que, em maior ou menor grau,
muitíssimas mulheres vivem e convivem nas suas férias (?) com este — como
dizer? — singular “estado de sítio” e só por essa espécie de
“universalidade” o descrevo: quase como uma homenagem, certamente com alta
solidariedade.
4Manda porém a seriedade intelectual (e
qualquer das outras seriedades, de resto) que percebamos o poderoso significado
de um clã familiar unido, como elemento aglutinador de tudo. Entrevendo,
antecipando, esperando que ele seja o melhor ponto de partida para como outrora
os filhos e hoje os netos poderem levantar voo para a vida. O melhor dos voos.
COMENTÁRIOS:
Pedro de Freitas Leal: Maria João, adorei como sempre! Que lindo texto! Quem
não se identifica, mude de canal. Umas ótimas férias! Seu primo Pedro Nuno Andrade:
Algumas memórias
que são minhas também felizmente mas que infelizmente têm sido intermitentes. O
espírito no entanto é actual. Pena alguns comentários totalmente inoportunos e
que só desclassificam quem os faz. João Floriano: Não gosto de tribos. O barulho
dos outros cansa-me. Ter de dar atenção constante a alguém torra-me a
paciência. O ano passado tive um verão tribal e suspirei de alívio quando me vi
finalmente só num bom hotel de praia. Este ano está tudo ainda muito sossegado.
Esperemos que assim continue. João
Ramos: Bela prosa que
faz saudades e nos anima para mais umas férias com toda a inerente e sádia
confusão, só me faz confusão é como alguém que viveu quase uma vida junto ao
estádio de Alvalade tenha tanta atração pela Luz, será encandeamento (não me
permito dizer encantamento) kkk. Beijinho Maria João. Do MM Alberico Lopes: Ó Maria João: estive a elaborar
uma nota para lhe enviar através do mail que consta como sendo seu no
Observador. Como, entretanto, foi devolvido por aparentemente estar
desactivado, não lhe vou aqui reescrever o que constava dessa nota, mas tão só,
afirmar-lhe como fiquei desiludido com a sua prestação na TV7-CNN, no último
programa com Sergio Sousa Pinto e o outro moço cujo nome me fugiu! Como é
possível que a Maria João chame de "general" ao dr. Costa, quando
sabe tão bem ou melhor que eu, que se trata de um oportunista, um centro de negócios,
um dos maiores causadores da crise em que o País mergulhou? Um homem que desde
Soares, Guterres, Sócrates sempre esteve no jogo político com as decisões que
mais prejuizo nos causaram. Por favor: faça uma reflexão e reveja o que disse.
E, se tiver coragem, diga no próximo programa que as críticas que lhe terão
sido dirigidas tinham razão de ser! Só assim voltarei a ter por si a
consideração que sempre lhe dediquei!? Fiquei muito chateado consigo! João Floriano > Alberico Lopes: Caro Alberico. Pensei «ipsis verbis» o mesmo
que o amigo. Não percebi aquele entusiasmo pelo «general» que não fez mais do
que a sua obrigação e que aqui para nós o que fez até agora foi ter-nos dado um
ralhete generalizado por mau comportamento, porque andamos para aí todos a
atear fogos e fez também um discurso à «la Guterres» quando inaugurou a central
flutuante de luz solar. Mas a MJA, sempre tão sensata pode ter encontrado
motivos que eu não consegui enxergar e pelos vistos o Alberico também não. augusto sousa: Magnífico registo de uma
vivência no seu estado mais acolhedor, tolerante e identitário de família!
Revejo-me na sua crónica cheia de sensibilidade e com uma escrita de antologia.
Obrigado MJA! Mas cada vez há menos este espírito de abnegação em
nome de uma criação de laços e afectos que tanto fazem para o equilíbrio e
desenvolvimento pessoal. Ficam para a vida, quando se tem essa oportunidade de
felicidade! Maria
do Céu Cunha: Como me revejo, numa tribo Da trabalho, mas traz um enorme
consolo João
Floriano > Valquíria: Boa tarde Valquíria Estou a
gostar do novo Jedi. Quanto ao texto de MJA, também não gostei. Não renego a
minha costela pequeno burguesa, ou até mesmo várias, mas a crónica de hoje além
se ser repescada/requentada, é muito burguesa. E havia tanto, mas mesmo tanto
por onde MJA podia pegar.
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