Paralelamente a essa coisa do medo, que o
filósofo José Gil já associara
à própria existência lusa, demasiadamente confinada a coordenadas
idiossincráticas nacionais desprestigiantes, como essa das invejas
corriqueiras, debilidades afinal relacionadas com ausência de estudos ou de
seriedade nos estudos, e que se irão acentuando com a ausência de prática de
leitura, eu acho que o que há demais por cá é liberdade – liberdade no ruído, na
hilaridade, no desrespeito generalizado, e refiro-me a certos programas
televisivos, que pretendem ter implicâncias culturais, mas onde a cultura é o
que menos importa, na profusão das “graças” espalhafatosas da nossa gritaria
nacional. Por isso o título “A liberdade
em coma” do texto de Alberto
Gonçalves, visando essencialmente o Governo com as suas imposições de
confinamento e máscaras, implicando “reclusão no domicílio”, parece-me
exagerada na sua pretensão de implicância anti governativa e de defesa da “liberdade”
tout court, de revolucionário apegado
ao “sem fronteiras” e “sem limites” que tão gritados têm sido por cá, já deste
as alturas da tal gaivota sofisticada que voava, com asas de vento e coração de
mar, sem medos… No fundo, responsabilizando o governo ou a CS, estamos a
desresponsabilizar-nos a nós, os virtuosos, os sem máculas.
A liberdade em coma
A quarta figura da hierarquia compara
o país recente a uma distopia sinistra e não acontece nada (há semanas, uma
decisão do Supremo americano provou, por cá, comoção setenta mil vezes
superior).
ALBERTO GONÇALVES Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 16 jul 2022, 00:21
Um acórdão do Tribunal Constitucional (TC), de 24 de Junho e agora revelado, considerou os
confinamentos a pretexto da Covid uma “forma de privação da liberdade total”,
dado implicar a “reclusão no domicílio” e ser portanto comparável à “prisão
preventiva” ou “reclusão penitenciária”. Em suma, os três juízes do
TC que assinaram o acórdão acreditam que os confinamentos são formal e
materialmente inconstitucionais. Em Fevereiro, houve um acórdão idêntico.
Em
ambos os casos, a notícia não abriu telejornais, aqueles simulacros
informativos que durante dois anos se limitaram a transmitir, e a legitimar, os
abusos cometidos pelo governo. É natural que, por se terem empenhado
no objectivo oposto, os noticiários televisivos não estejam interessados em difundir
um raríssimo momento capaz de nos recordar a existência de um Estado de direito
e, o que é ainda mais importante, de um mundo vagamente civilizado. É uma memória ténue, após a descida aos
abismos dos últimos anos. Para os optimistas, talvez seja uma esperança face
aos abismos em que nos querem enfiar nos anos que aí vêm.
Segundo constitucionalistas ouvidos
pelo Observador, o acórdão compromete o advento da “lei de
emergência sanitária”. A dita lei
resulta da reflexão de um grupo de sumidades, evidentemente escolhidas pelo dr.
Costa, e permitiria que o conselho de ministros, evidentemente presidido pelo
dr. Costa, decretasse sem maçadas jurídicas a detenção sumária de qualquer
cidadão que violasse as regras necessárias ao bem comum, evidentemente
definidas pelo dr. Costa. A ideia é que o poder político, evidentemente
o dr. Costa, possa exercer o autoritarismo de modo legal com a mesma
despreocupação com que o tem exercido de modo ilegal. A ideia é
oficializar a ditadura.
É possível argumentar que seria uma
ditadura suave, mas não por virtude dos senhores que mandam, e sim pelos
defeitos dos senhores que obedecem. Há
15 dias, num evento público, o presidente do TC desenvolveu um pouco a triste
história das prisões preventivas, perdão, dos confinamentos e da placidez com
que foram acatados. Desconfio que a intervenção também não abriu telejornais.
Disse João Pedro Caupers (e vale a pena
ser generoso nas citações, colhidas neste jornal): “Se me perguntassem qual a principal lição que os anos de 2020 e 2021
me trouxeram, eu responderia: afinal, a garantia e proteção dos direitos
fundamentais, que eu tinha por certa e, tanto quanto possível, eficiente, é bem
menos segura e garantida”.
Depois acrescentou: “A
anormalidade tornou-se uma nova normalidade. Entraram nas nossas rotinas coisas
antes impensáveis como confinamentos forçados, proibição de deslocações,
reconduções ao domicílio por agentes policiais, internamentos compulsivos,
encerramento de escolas, serviços públicos e estabelecimentos comerciais”.
Quando o questionaram sobre a aceitação
da prepotência, João Pedro
Caupers, que refere a “situação comatosa” do Estado de
direito, recusou as divertidas hipóteses da “consciência
cívica apurada” ou da “resiliência e espírito de sacrifício”: “A minha
explicação é bem mais simples: medo. Puro e simples medo”. Na
opinião dele, “A principal luta do Tribunal Constitucional foi
precisamente contra o medo, que o medo transformasse cidadãos livres em
súbditos de um novo poder, o poder do vírus”. Terminou a temer que ao medo da
epidemia se possam seguir outros medos e outras supressões da liberdade. Eu
termino aqui as citações.
Alguns terão vontade de discutir a
demora do TC em assumir estas posições, ou a eventual timidez que deixou
implícita desde 2020. É uma opção justificada. Por mim, julgo preferível notar a extraordinária relevância das
posições, e o extraordinário desprezo que o regime lhes dedicou. Num lugar
menos folclórico, sobretudo as afirmações do presidente do TC suscitariam um
abalo social se calhar irreversível, e uma crise institucional de certeza
consequente. Aqui, na vasta maioria dos “media”, a coisa não chegou ao rodapé
noticioso. Que eu reparasse, a totalidade dos partidos não lhe dedicou um pio.
E a população nem soube da respectiva ocorrência. Se soubesse, suspeito que a
teria achado impertinente.
Eis o facto: a quarta figura
da hierarquia nacional compara o país recente a uma distopia sinistra e não
acontece nada (há semanas, uma decisão do
Supremo americano provou, por cá, comoção setenta mil vezes superior). É por isso
que o realismo não aconselha a despejar esperança nos alertas do TC. Se
em teoria é bom haver quem denuncie a deriva anti-democrática, na prática é
péssimo o silêncio que as denúncias provocaram. O silêncio é a prova de que, de
alguma forma, a Constituição, e os seus zeladores, já deixaram de contar. E a
prova de que, tardio ou oportuno, João Pedro Caupers tem razão.
Não foram precisos os incêndios da
praxe, e novas exibições de arbitrariedade, para que Portugal – e não só
Portugal – entrasse na escuridão. E meia dúzia de luzinhas não
chegam para contrariá-la: chegam para mostrar que a escuridão é imensa.
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL TRIBUNAL JUSTIÇA LIBERDADES SOCIEDADE CORONAVÍRUS SAÚDE
PÚBLICA SAÚDE
COMENTÁRIOS:
Lily Lx: Viva a Liberdade! Emanuel
Almeida: Muito bom AG!
Como sempre… Emanuel Almeida:
Queria dar os
parabéns ao Observador por ter banido de vez os comentários anónimos, que mais
não eram do que spam, um meio de dar voz a todos os grunhos por trás de um
ecrã, e não favorecendo uma verdadeira e civilizada discussão de ideias. f Teixeira:
É lamentável chegar ao final do artigo e ter de
reconhecer que o Alberto tem razão. De fio a pavio! Os antigos "heróis do
mar", são hoje um povo manso e amorfo que vive numa miséria subsidiada,
assente num regime autoritário dito socialista que nos amestra de Segunda-feira
a Domingo, e que nós, os verdadeiros culpados, aceitamos assobiando para o
lado. E assim vamos, um passinho abaixo a cada dia, até ao tralho final. Ou
então não! Pode ser que um dia se levante a fúria do "nobre povo" e
isto mude. Assim espero.
Eduardo L: Muito
bom! A CS é a maior culpada do que nos aconteceu e continua a acontecer em
matéria de perda de direitos fundamentais. Os seus pseudo-jornalistas mais não
são do que criminosos a soldo do governo (também criminosos - há que o dizer) e
outros poderes económicos (mais globais). Isto nunca poderá ser esquecido. Sem
a conivência da CS o que nos aconteceu nos últimos 2 anos e meio nunca se teria
passado! Vitor
Batista: Estamos entregues a uma seita de
malfeitores, que nos tratam como carneiros, e ai de algum que tenha a veleidade
de tresmalhar, porque será reconduzido de volta ao rebanho sem dó nem
piedade. Mas isto pode
e deve ser revertido, e não há nada como umas esperas e uns sopapos no lombo
desses xuxalistas vergonhosos, e podem ser os do governo, os do nosso bairro ou
da nossa freguesia, têm é de ser postos na linha. Maria Tubucci: Bom dia. Sim, a escuridão é imensa mas a CS não a
sente, por exemplo, com os incêndios o caos na saúde desapareceu, o teatro de
operações é agora outro, e a seguir vai existir sempre outro teatro para
substituir o anterior. Vivemos numa realidade camuflada, vivemos na realidade
da ditadura dos interesses do PS e afins, do respeitinho ao dono, do cumprir a
vontade do dono, nem que para isso se condene Portugal ao empobrecimento e à
agonia económica e demográfica. Antigamente,
no pré-geringonça-Costa, imperavam as “sábias” decisões do TC, discutidas até à
exaustão, agora suprime-se a liberdade e todos ficam satisfeitos, não se ouve
uma voz do contra nem mesmo um pio, a lavagem ao cérebro foi completa e
eficiente. Obrigado, CS
ou máquina da propaganda, espero que as 30 moedas de prata vos tenham feito bom
proveito. Fernando
Cascais: Haverá
uma razão sentimental de fundo para o PS ter ganho uma maioria absoluta?
Egoísmo é pensar em si mesmo e esquecer os outros, um
sentimento. Foi este sentimento - o egoísmo - que deu a vitória a António Costa
nas últimas eleições. Curiosamente, num país com uma população
caracterizada pelo envelhecimento, os avós, preferiram ouvir a promessa de um
aumento nas suas pensões do que ajudar a tomar conta dos netos. Por sua vez, os
funcionários públicos, apostaram tudo para evitar reformas na administração
pública que pudessem no futuro melhorar a vida das próximas gerações,
nomeadamente dos seus filhos. O
egoísmo impera e imperou na pandemia e carateriza-nos. Os confinamentos fizeram
a delícia do egoísmo. Os idosos viram na obrigatoriedade da máscara e nos
confinamentos a justiça que faltava para os mais novos e mais saudáveis saberem
respeitar os mais velhos e deixarem de ser irritantes felizes. O egoísmo dos
mais velhos não queria saber da necessidade dos jovens serem jovens, queriam
viver, viver eternamente. Já os funcionários públicos atingiram o paraíso na
terra recebendo o vencimento por inteiro, incluindo subsídios sem colocarem os
pés no serviço. A determinada altura, ter Covid não se evitava, procurava-se.
Hoje continua-se a procurar com exceção no período de férias. Portanto, caro
articulista, a indignação contra a injustiça dos confinamentos não se coloca
nem interessa, porque, com os confinamentos fez-se a mais elementar justiça
para a maioria dos eleitores portugueses. António Silva: O triste disto tudo é que
apesar de se dizer que o poder judicial é independente não haja ninguém que dê
continuidade ao trabalho efectuado por estes juizes. Passa-se rigorosamente o
mesmo com as denúncias do tribunal de contas. Alerta para uma série de irregularidades
em contratos públicos e fica-se por aí. A justiça portuguesa é um coito
interrompido. Luis
Ferreira: O filósofo Karl Popper preconizava sólidas
instituições e leis porque bem via a mediocridade geral dos políticos (e isto a
meio do século passado). Agora compreendemos e constatámos a debilidade de
leis e instituições. Somos uma manada em pânico, como nos descreveu um
brilhante artigo do Observador, A marcha dos gnus, há dois anos. É duro ser
realistas e não ver razão para optimismo. Não vai ficar tudo bem, está a ficar
tudo pior. MPSRRS: Nem sei o que dizer....
vieram-me as lágrimas aos olhos ao ler esta crónica, excelente como sempre. Obrigada, muito obrigada AG.
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