sábado, 16 de julho de 2022

Ça dépend


Paralelamente a essa coisa do medo, que o filósofo José Gil já associara à própria existência lusa, demasiadamente confinada a coordenadas idiossincráticas nacionais desprestigiantes, como essa das invejas corriqueiras, debilidades afinal relacionadas com ausência de estudos ou de seriedade nos estudos, e que se irão acentuando com a ausência de prática de leitura, eu acho que o que há demais por cá é liberdade – liberdade no ruído, na hilaridade, no desrespeito generalizado, e refiro-me a certos programas televisivos, que pretendem ter implicâncias culturais, mas onde a cultura é o que menos importa, na profusão das “graças” espalhafatosas da nossa gritaria nacional. Por isso o título “A liberdade em coma” do texto de Alberto Gonçalves, visando essencialmente o Governo com as suas imposições de confinamento e máscaras, implicando “reclusão no domicílio”, parece-me exagerada na sua pretensão de implicância anti governativa e de defesa da “liberdade” tout court, de revolucionário apegado ao “sem fronteiras” e “sem limites” que tão gritados têm sido por cá, já deste as alturas da tal gaivota sofisticada que voava, com asas de vento e coração de mar, sem medos… No fundo, responsabilizando o governo ou a CS, estamos a desresponsabilizar-nos a nós, os virtuosos, os sem máculas.

A liberdade em coma

A quarta figura da hierarquia compara o país recente a uma distopia sinistra e não acontece nada (há semanas, uma decisão do Supremo americano provou, por cá, comoção setenta mil vezes superior).

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 16 jul 2022, 00:21

Um acórdão do Tribunal Constitucional (TC), de 24 de Junho e agora revelado, considerou os confinamentos a pretexto da Covid uma “forma de privação da liberdade total”, dado implicar a “reclusão no domicílio” e ser portanto comparável à “prisão preventiva” ou “reclusão penitenciária”. Em suma, os três juízes do TC que assinaram o acórdão acreditam que os confinamentos são formal e materialmente inconstitucionais. Em Fevereiro, houve um acórdão idêntico.

Em ambos os casos, a notícia não abriu telejornais, aqueles simulacros informativos que durante dois anos se limitaram a transmitir, e a legitimar, os abusos cometidos pelo governo. É natural que, por se terem empenhado no objectivo oposto, os noticiários televisivos não estejam interessados em difundir um raríssimo momento capaz de nos recordar a existência de um Estado de direito e, o que é ainda mais importante, de um mundo vagamente civilizado. É uma memória ténue, após a descida aos abismos dos últimos anos. Para os optimistas, talvez seja uma esperança face aos abismos em que nos querem enfiar nos anos que aí vêm.

Segundo constitucionalistas ouvidos pelo Observador, o acórdão compromete o advento da “lei de emergência sanitária”. A dita lei resulta da reflexão de um grupo de sumidades, evidentemente escolhidas pelo dr. Costa, e permitiria que o conselho de ministros, evidentemente presidido pelo dr. Costa, decretasse sem maçadas jurídicas a detenção sumária de qualquer cidadão que violasse as regras necessárias ao bem comum, evidentemente definidas pelo dr. Costa. A ideia é que o poder político, evidentemente o dr. Costa, possa exercer o autoritarismo de modo legal com a mesma despreocupação com que o tem exercido de modo ilegal. A ideia é oficializar a ditadura.

É possível argumentar que seria uma ditadura suave, mas não por virtude dos senhores que mandam, e sim pelos defeitos dos senhores que obedecem. Há 15 dias, num evento público, o presidente do TC desenvolveu um pouco a triste história das prisões preventivas, perdão, dos confinamentos e da placidez com que foram acatados. Desconfio que a intervenção também não abriu telejornais.

Disse João Pedro Caupers (e vale a pena ser generoso nas citações, colhidas neste jornal): “Se me perguntassem qual a principal lição que os anos de 2020 e 2021 me trouxeram, eu responderia: afinal, a garantia e proteção dos direitos fundamentais, que eu tinha por certa e, tanto quanto possível, eficiente, é bem menos segura e garantida”.

Depois acrescentou: “A anormalidade tornou-se uma nova normalidade. Entraram nas nossas rotinas coisas antes impensáveis como confinamentos forçados, proibição de deslocações, reconduções ao domicílio por agentes policiais, internamentos compulsivos, encerramento de escolas, serviços públicos e estabelecimentos comerciais”.

Quando o questionaram sobre a aceitação da prepotência, João Pedro Caupers, que refere a “situação comatosa” do Estado de direito, recusou as divertidas hipóteses da “consciência cívica apurada” ou da “resiliência e espírito de sacrifício”: “A minha explicação é bem mais simples: medo. Puro e simples medo”. Na opinião dele, “A principal luta do Tribunal Constitucional foi precisamente contra o medo, que o medo transformasse cidadãos livres em súbditos de um novo poder, o poder do vírus”. Terminou a temer que ao medo da epidemia se possam seguir outros medos e outras supressões da liberdade. Eu termino aqui as citações.

Alguns terão vontade de discutir a demora do TC em assumir estas posições, ou a eventual timidez que deixou implícita desde 2020. É uma opção justificada. Por mim, julgo preferível notar a extraordinária relevância das posições, e o extraordinário desprezo que o regime lhes dedicou. Num lugar menos folclórico, sobretudo as afirmações do presidente do TC suscitariam um abalo social se calhar irreversível, e uma crise institucional de certeza consequente. Aqui, na vasta maioria dos “media”, a coisa não chegou ao rodapé noticioso. Que eu reparasse, a totalidade dos partidos não lhe dedicou um pio. E a população nem soube da respectiva ocorrência. Se soubesse, suspeito que a teria achado impertinente.

Eis o facto: a quarta figura da hierarquia nacional compara o país recente a uma distopia sinistra e não acontece nada (há semanas, uma decisão do Supremo americano provou, por cá, comoção setenta mil vezes superior). É por isso que o realismo não aconselha a despejar esperança nos alertas do TC. Se em teoria é bom haver quem denuncie a deriva anti-democrática, na prática é péssimo o silêncio que as denúncias provocaram. O silêncio é a prova de que, de alguma forma, a Constituição, e os seus zeladores, já deixaram de contar. E a prova de que, tardio ou oportuno, João Pedro Caupers tem razão.

Não foram precisos os incêndios da praxe, e novas exibições de arbitrariedade, para que Portugal – e não só Portugal – entrasse na escuridão. E meia dúzia de luzinhas não chegam para contrariá-la: chegam para mostrar que a escuridão é imensa.

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COMENTÁRIOS:

Lily Lx: Viva a Liberdade!         Emanuel Almeida: Muito bom AG! Como sempre…           Emanuel Almeida: Queria dar os parabéns ao Observador por ter banido de vez os comentários anónimos, que mais não eram do que spam, um meio de dar voz a todos os grunhos por trás de um ecrã, e não favorecendo uma verdadeira e civilizada discussão de ideias.           f Teixeira: É lamentável chegar ao final do artigo e ter de reconhecer que o Alberto tem razão. De fio a pavio! Os antigos "heróis do mar", são hoje um povo manso e amorfo que vive numa miséria subsidiada, assente num regime autoritário dito socialista que nos amestra de Segunda-feira a Domingo, e que nós, os verdadeiros culpados, aceitamos assobiando para o lado. E assim vamos, um passinho abaixo a cada dia, até ao tralho final. Ou então não! Pode ser que um dia se levante a fúria do "nobre povo" e isto mude. Assim espero.           Eduardo L: Muito bom! A CS é a maior culpada do que nos aconteceu e continua a acontecer em matéria de perda de direitos fundamentais. Os seus pseudo-jornalistas mais não são do que criminosos a soldo do governo (também criminosos - há que o dizer) e outros poderes económicos (mais globais). Isto nunca poderá ser esquecido. Sem a conivência da CS o que nos aconteceu nos últimos 2 anos e meio nunca se teria passado!          Vitor Batista: Estamos entregues a uma seita de malfeitores, que nos tratam como carneiros, e ai de algum que tenha a veleidade de tresmalhar, porque será reconduzido de volta ao rebanho sem dó nem piedade.  Mas isto pode e deve ser revertido, e não há nada como umas esperas e uns sopapos no lombo desses xuxalistas vergonhosos, e podem ser os do governo, os do nosso bairro ou da nossa freguesia, têm é de ser postos na linha.          Maria Tubucci: Bom dia. Sim, a escuridão é imensa mas a CS não a sente, por exemplo, com os incêndios o caos na saúde desapareceu, o teatro de operações é agora outro, e a seguir vai existir sempre outro teatro para substituir o anterior. Vivemos numa realidade camuflada, vivemos na realidade da ditadura dos interesses do PS e afins, do respeitinho ao dono, do cumprir a vontade do dono, nem que para isso se condene Portugal ao empobrecimento e à agonia económica e demográfica. Antigamente, no pré-geringonça-Costa, imperavam as “sábias” decisões do TC, discutidas até à exaustão, agora suprime-se a liberdade e todos ficam satisfeitos, não se ouve uma voz do contra nem mesmo um pio, a lavagem ao cérebro foi completa e eficiente. Obrigado, CS ou máquina da propaganda, espero que as 30 moedas de prata vos tenham feito bom proveito.     Fernando Cascais: Haverá uma razão sentimental de fundo para o PS ter ganho uma maioria absoluta?  Egoísmo é pensar em si mesmo e esquecer os outros, um sentimento. Foi este sentimento - o egoísmo - que deu a vitória a António Costa nas últimas eleições. Curiosamente, num país com uma população caracterizada pelo envelhecimento, os avós, preferiram ouvir a promessa de um aumento nas suas pensões do que ajudar a tomar conta dos netos. Por sua vez, os funcionários públicos, apostaram tudo para evitar reformas na administração pública que pudessem no futuro melhorar a vida das próximas gerações, nomeadamente dos seus filhos. O egoísmo impera e imperou na pandemia e carateriza-nos. Os confinamentos fizeram a delícia do egoísmo. Os idosos viram na obrigatoriedade da máscara e nos confinamentos a justiça que faltava para os mais novos e mais saudáveis saberem respeitar os mais velhos e deixarem de ser irritantes felizes. O egoísmo dos mais velhos não queria saber da necessidade dos jovens serem jovens, queriam viver, viver eternamente. Já os funcionários públicos atingiram o paraíso na terra recebendo o vencimento por inteiro, incluindo subsídios sem colocarem os pés no serviço. A determinada altura, ter Covid não se evitava, procurava-se. Hoje continua-se a procurar com exceção no período de férias. Portanto, caro articulista, a indignação contra a injustiça dos confinamentos não se coloca nem interessa, porque, com os confinamentos fez-se a mais elementar justiça para a maioria dos eleitores portugueses.     António Silva: O triste disto tudo é que apesar de se dizer que o poder judicial é independente não haja ninguém que dê continuidade ao trabalho efectuado por estes juizes. Passa-se rigorosamente o mesmo com as denúncias do tribunal de contas. Alerta para uma série de irregularidades em contratos públicos e fica-se por aí. A justiça portuguesa é um coito interrompido.          Luis Ferreira: O filósofo Karl Popper preconizava sólidas instituições e leis porque bem via a mediocridade geral dos políticos (e isto a meio do século passado). Agora compreendemos e constatámos a debilidade de leis e instituições. Somos uma manada em pânico, como nos descreveu um brilhante artigo do Observador, A marcha dos gnus, há dois anos. É duro ser realistas e não ver razão para optimismo. Não vai ficar tudo bem, está a ficar tudo pior.         MPSRRS: Nem sei o que dizer.... vieram-me as lágrimas aos olhos ao ler esta crónica, excelente como sempre. Obrigada, muito obrigada AG.

 

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