De
trabalho. De entusiasmo. De mérito. De recompensa. A de Maria João Avillez.
Dona
Antónia servida pelas minhas palavras
Uma coisa me
alegraria muitíssimo hoje: ter-se percebido que em décadas de trabalho
ininterrupto usei tanto de entusiasmo quanto de decência – é outra forma de
dizer que tentei travar o bom combate.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 06 jul 2022, 00:203
(Texto lido na aceitação da 34ª edição dos
prémios Dona Antónia, Prémio Consagração.)
1Começar
estas breves palavras por apenas manifestar a minha imensa gratidão, nunca
chegaria. E no meu caso, não seria sequer possível. O meu agradecimento terá
hoje de fazer um triplo salto para acolher os três grandes obrigados que faço
absoluta questão de aqui deixar.
O
primeiro é obviamente o ter sido eleita para o prémio “Dona Antónia Ferreira”.
Ver o meu trabalho distinguido por um júri presidido por Artur Santos Silva de
tão reconhecida e pública qualidade é uma sensação talvez difícil de
transmitir. A alegria que produz, além de grande, é particular, quase íntima; e
o orgulho pessoal de quem começou aos 17 anos na televisão nos idos de sessenta
do século passado e agora aqui está, é quase intimidante de exprimir.
O
segundo obrigado é ter esta distinção um nome feminino e que nome Santo Deus!
Dona Antónia Adelaide Ferreira concentra na sua formidável e raríssima
personalidade tudo o que admiro, enalteço e tento que me inspire. A
tenacidade, a bravura, a capacidade de trabalho; o empresariado avant la
lettre; o nunca ter consentido que as adversidades que conheceu se
transformassem em irremediabilidades; a resiliência face á solidão que terá
certamente experimentado ao longo de longa e árdua caminhada; a permanente
generosidade: D. Antónia, a adorada Ferreirinha que a todos atendia, foi uma
benemérita. Uma grande portuguesa enfim: nunca desistiu, não recuou, não
abandonou, não temeu. Pisou forte um chão de pedras e dizendo nada às
intempéries deixou incomparável legado que a Sogrape cuida e amplia com tanto
de honra quanto de saber. Que me poderia então satisfazer mais do que ser
profissionalmente distinguida com o nome de alguém que concretizou obra tão
ambiciosa no Douro vinhateiro e deixou tão impressiva assinatura na vida?
Na vida e na história deste desinquieto rio.
Saúdo
agora directamente D. Antónia Adelaide Ferreira, da Terra para o Céu. A fé que
pratico não é de todo incompatível com ter a firme certeza de que neste preciso
momento ela está sentada numa frisa de boca no Paraíso, a testemunhar a minha
alegria por um prémio que leva o seu nome. Oxalá não ache que eu destoe…
O
último obrigado tem o nome da água que vejo correndo diante desta Quinta do
Porto. Talvez não
haja muita gente que saiba da nossa paixão, -do Francisco e minha – por esta
morada encantatória, espelhada em águas que ora nos surpreendem pela mansidão
ora nos afligem de tormenta. Já as vou conhecendo.
Tao
grande foi esse deslumbramento que alugámos casa à beira do Douro por quatro
vezes; convencemos amigos a alugarem eles próprios casas para onde também
vínhamos; descobrimos hotéis e pousadas de sonho, visitamos quintas, trepamos
socalcos, perdemo-nos por lugares de incomparável esplendor, cruzamos vezes
infindas este espelho liquido, ora a braços ora de barco. E o primeiro poiso
para onde saímos após os confinamentos, foi a Quinta do Valado, na Régua.
Deixei intencionalmente para o fim deste último obrigado – os últimos serão os
primeiros – o meu tributo ao admirável e saudoso Fernando Guedes que aqui muito
viveu e muito labutou com a felicidade que se sabe.
Contei-lhes
enfim a história de uma descoberta que desaguou numa relação de amor. Ora
receber um prémio justamente nascido destas vinhas, e impresso nesta paisagem
foi surpresa maravilhosa, de tão “encaixada” comigo. Melhor teria sido
impossível. Percebem agora certamente que nunca poderiam ter sido outros os
meus três obrigados.
2Comecei
esta vida de roda das palavras, frente a uma câmara de televisão falando sobre
Florbela Espanca no Programa Juvenil de Ivette Centeno. Na RTP. Eram meus
companheiros Júlio Isidro, Paulo Ramalho, e o meu saudosíssimo João Lobo
Antunes, então um lindo estudante de Medicina. As emissões eram em directo, nada se podia emendar,
não nos podíamos enganar, nem encostar aos cenários que por vezes abanavam,
periclitantemente: a emissão era seguida, tudo tinha que correr bem. E corria.
Seguiram-se
jornaizinhos artesanais, a Rádio Renascença, mais programas de televisão. E um dia, era eu novinha, houve algo que foi quase
um pré-aviso do que poderia vir a ocorrer: obtive duas entrevistas com
cantoras francesas que estando na moda nesses anos sessenta, tinham vindo
cantar e encantar a plateia do lisboeta Teatro Monumental. Silvie Vartan e
Françoise Hardy.
Seguiram-se
outras coisas, muita coisas, nos jornais, rádio, écrans. Mas seguiu-se
sobretudo a vida. A vida, a constituição da minha família, os cinco
filhos que foram nascendo, viagens, o culto dos amigos e sempre, sempre o
jornalismo. E também sempre essa tentativa -muitas vezes certamente gorada
– de estar a travar o “bom combate”. Com vontade, curiosidade,
energia, entusiasmo. As mesmíssimas coordenadas que até hoje não deixei de
usar.
O
25 de Abril e o Expresso catapultaram-me para o jornalismo político: não houve quartel onde a direcção do jornal não me
mandasse, militar que não tenha conhecido, sedes partidárias onde não tenha
quase vivido. A confissão será desconcertante mas uma das mais
extraordinárias épocas que testemunhei foi indiscutivelmente a incandescente
vivência do processo revolucionário em curso: o país ardia e o nós corríamos à
frente do incêndio, imprimindo-o depois em letra de imprensa, sob todos os seus
mais díspares ângulos e ouvindo os seus irracionais sub-protagonistas. O único
protagonista principal, racional e nacional era um e chamava-se Mário Soares.
Apagado
o PREC era preciso contar o Portugal que titubeantemente saía de feroz ameaça
comunista. Foi o que me
fartei de fazer. Era preciso usar as palavras para isso mesmo. Separação de
águas, clarificação das coisas. De um lado o trigo, do outro o joio. O
trabalho fez-me crescer, aprender, amadurecer, descobrir, viajar. Entrevistei
grandes políticos e intelectuais nacionais e internacionais, privei com homens
e mulheres muito dotados, admirei gente com alto sentido de serviço público,
conheci patriotas verdadeiros. Lidei enfim de perto e ao vivo com o
Portugal da política, da economia, da cultura, da academia, da administração.
Da Igreja. Em 1976 – nunca o esquecerei – vi o melhor do país sentado no
hemiciclo de S. Bento. Eram os primeiros deputados do novo Estado de Direito
que nascia aos tropeções mas hoje – pequeno desabafo melancólico – o melhor já
lá não se senta. Nem serve um país que empalidece, esmorece e envelhece.
Em
tudo isto e tal como na vida, houve marés altas e marés baixas mas o que vivi
-em casa e na família – sempre fomos uma tribo – na profissão ou com os amigos,
foi um privilégio, uma escola, uma lição de vida.
Os
nossos filhos nasceram politizados, aprendendo à nascença a saudar Mário Soares
ou algum militar quando eles entravam para jantar e mais tarde Sá Carneiro,
Jorge Sampaio, Cavaco Silva, António Costa, Passos Coelho. Os filhos achavam
natural a roda-viva de jornalistas estrangeiros que lá aterravam, consideravam
verosímil o nível dos decibéis que a casa produzia, nunca estranharam ver a mãe
a trabalhar tanto como o Pai.
Da
mesma forma o Francisco e eu nunca esqueceremos o olhar da nossa filha mais
velha, então com 12 anos, a descer a escada da casa a correr ao nosso encontro,
“morreu o Sá Carneiro, avião caiu…” A Verónica já sabia muito bem quem era
Francisco Sá Carneiro e o que ele representava.
3 Passaram-se
muitos anos, mil anos e ao mesmo tempo nenhum ano, estranha impressão: foi tudo
ontem, de tudo me lembro e de grande parte do “tudo”, dei conta em alguns dos
livros que fui publicando. Oxalá possam vir outros livros, mais livros.
Fiz
o que pude? Talvez, não se sabe. Mas uma coisa me alegraria muitíssimo hoje: ter-se
percebido que nestas décadas de trabalho ininterrupto usei tanto de entusiasmo
quanto de decência. O que é outra forma de dizer que tentei travar o bom
combate.
COMENTÁRIOS:
Carlos Chaves: Caríssima
Maria João Avillez, muitos parabéns pelo merecidíssimo prémio com que foi
inteira e justamente agraciada. E um muito obrigado por tudo o que fez, faz, e
com certeza fará até que a voz ou a “pena” lhe doam. A sociedade Portuguesa
deve-lhe muito não só pelo seu imenso trabalho jornalístico de primeira água,
mas também pela inigualável riqueza da sua escrita em inúmeros livros e
artigos, que ficam para memória futura, e sobretudo enriquecem o enorme mundo
onde se fala português. Bem-haja.
bento
guerra: Pediu a reforma? Américo Silva:
Tanto bafio. S
Belo: Excelente ! Outro prémio?
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