sexta-feira, 22 de julho de 2022

Devaneios


Enfim, Costa tem tudo nas mãos. E aos pés. Perfeita síntese no título da crónica de Paulo Tunhas. E na síntese em epígrafe. Para seguir, até ver. Pouco importa, de resto. Afinal, a última palavra estará em Putin… Ou numa União Europeia impotente. Costa conhece as linhas com que cose. Sempre conheceu.

Estado da nação, nação do Estado

Os discursos sobrevoavam sistematicamente a realidade, sem nunca a tocar. Com um quase virtuosismo na matéria, só possível por uma total indiferença em relação à verdade, como António Costa.

PAULO TINHAS                       OBSERVADOR, 21 jul 2022, 00:1816

Vi ontem o debate do Estado da Nação, que foi sobretudo, como de costume, um debate sobre a nação do Estado, que é o que Portugal é. O esforço para prestar atenção a tudo aquilo foi propriamente desmesurado e não me perdoarei tão cedo a decisão fatal. Nunca se deve supor uma disponibilidade de espírito que não se tem – e foi justamente isso que eu fiz. Gostava de poder dizer que aprendi a lição. Mas aos 62 anos estas coisas não se aprendem: sofrem-se apenas. Pathei mathos, uma ova! Não há nenhum saber novo, penosamente conquistado, no horizonte. Só uma má recordação.

No princípio, saltei para a Sport TV para ver o final da etapa da Volta à França, a chegada a Peyragudes. Depois, sempre que me lembrava de alguma coisa para fazer, aproveitava e saía a correr da sala da televisão. Arrumei várias prateleiras. Costumo adiar estas coisas indefinidamente. Desta vez, fui lesto e diligente. Em desespero, fui à Dona Rosália da mercearia S. Miguel comprar víveres e, de caminho, abastecer-me com uma bebida gelada, de que bem precisava para me animar. E, sempre que voltava ao triste poiso do sofá, as máquinas de palavras lá estavam a falar. Falavam, falavam, com propósitos indecifráveis. Contra todas as minhas forças, o espírito voava-me para longe. Cada vez para mais longe. Mais umas horas e tinha saído do planeta Terra.

São estas as notas que um cidadão comum foi tirando, arrancadas a um inominável abismo de tédio. Vão por ordem alfabética dos nomes dos deputados e membros do Governo que fixei.

André Ventura – Tem uma teoria: é a única oposição. É a teoria dele e ele gosta muito dela. Gosta tanto que não cessa de a proclamar. Enquanto o ouvia lembrei-me que me apetecia uma longa viagem à Escandinávia. Belas paisagens, fiordes, lagos, o cisne de Tuonela, museus, etc. Aproveitava, de passagem, para ver Hamburgo, onde nunca fui. Depois veio-me à cabeça “O Grito” de Munch e a minha condição presente tornou-se-me clara.

António Costa – A pandemia e a guerra encontraram pela frente a energia e a resolução do Governo e Costa soube e saberá contrariar o “discurso do caos”, protegendo crianças e velhinhos. A resposta às “emissões negligentes” causadoras dos fogos não tem sido, nem será, menos efectiva contra o “discurso fatalista” dos Velhos do Restelo. Mais genericamente, o governo encontra-se possuído por uma “agenda reformista” que tem por base uma reforma do Estado, levada a cabo com confiança, firmeza e determinação. Venceremos mais esta crise. O país não empobreceu. O Governo gasta uma chusma de dinheiro connosco. Ou Malta? Também nunca fui a Malta. Li algumas coisas sobre a Ordem de Malta. Valletta pode ser interessante. Comer-se-á bem?

Catarina Martins – A questão do empresário Mário Ferreira – sobretudo os cruzeiros no Árctico, que julga inacreditáveis e danosos para o planeta – interessa-lhe, tal como a Uber. Catarina é contra a “distopia liberal”. Além de abominar os eucaliptos, é claro. A Croácia e a Bósnia conheço, não conheço a Eslovénia. À Sérvia não me apetece ir. Vou pensar. Em todo o caso, começa a parecer-me uma urgência.

Duarte Cordeiro – Ocupou-se das alterações climáticas. O Governo faz tudo para proteger as nossas florestas. O que implica, como é bom de ver, uma reforma estrutural da energia. É pelo crescimento e pela sustentabilidade. Reformas, crescimento e sustentabilidade. Duarte Cordeiro está confiante. Cracóvia parece que é uma linda cidade. Ah, a Polónia! Chopin, Paderewski. Woodrow Wilson dizia que este último tinha a sensibilidade fácil. Não me esquecer de responder aos mails deixados para trás. Amanhã.

Eurico Brilhante Dias – Está tudo a melhorar a olhos vistos. Está tudo a melhorar a olhos vistos. Está tudo a melhorar a olhos vistos. Sempre gostei de guias turísticos. Até tenho alguns Baedecker antigos. Não do século XIX, exceptuando um sobre a Grã-Bretanha, mas do princípio do século XX. Aqueles da DK, completamente diferentes, não são maus. Até gosto da fórmula. Já os Lonely Planet são mais para jovens que têm boas pernas e querem beber uns copos baratos longe de casa. Gente do século XXI. Eu devo ter nascido no século XIX. Em todo o caso, sinto-me às vezes como se tivesse idade para isso. Regar os metrosideros.

Hemiciclo – O hemiciclo anima-se de vez em quando. Também me aconteceu a ver a Volta à França. Ali, confesso que não percebo o ar de felicidade que por vezes banha os deputados. E conseguem rir e bater palmas (têm a palma fácil) simultaneamente. Chama-se a isto versatilidade. O passo seguinte é andar e mascar chiclete ao mesmo tempo. Albânia? Dantes, havia muitos intelectuais comunistas italianos que iam lá passar férias. Serão mesmo boas as praias? Afinal de contas, já não é uma ditadura.

Inês Sousa Real – Luta contra os eucaliptos (com Catarina Martins, já são duas). Os eucaliptos são a Uber exclusiva do PAN. E se os motoristas da Uber plantassem eucaliptos? A Uber transformar-se-ia num tema para a Inês. Não levou a bem que o ministro Duarte Cordeiro não tivesse falado dos animais. Países bálticos? Ali no meio há Kalininegrado, a antiga Königsberg de Kant e de E. T. A. Hoffmann, escritor fantástico e um dos maiores críticos musicais do século XIX. Königsberg era a flor da Prússia Oriental, sobre a qual me pus a comprar livros. O túmulo de Kant, a sua estátua e a placa na casa que está no lugar daquela onde ele viveu, são regularmente objecto de vandalização. Dizem que era “russófobo” (pobre Kant) e que ninguém compreende os livros dele. Mikhail Kalinin, de onde vem o nome russo da cidade, foi Presidente do Soviete Supremo no tempo de Estaline, célebre por ter mandado a mulher para o Gulag.

João Cotrim de Figueiredo – O PS contenta-se com o pouquinho e a mediocridade. Por acaso, é verdade. Daí o auto-contentamento que por lá reina. Há a Roménia, é claro. Também nunca lá fui. E também, como a Albânia, já não é uma ditadura. Li há uns tempos um livro muito curioso sobre as pessoas que, nesses países, são nostálgicas dos tempos das ditaduras. Tirar a limpo se o Drácula vivia naquilo que hoje em dia é a Roménia ou se foi na actual Hungria. Parecendo que não, pode ser importante.

Joaquim Miranda Sarmento – Os governos de Costa conduziram-nos a um cada vez maior empobrecimento. O Governo fica com uma chusma de dinheiro nosso. As partes da Suiça que não conheço? O problema é que a Suíça é caríssima. E o que é que me dizem da turbulenta Tchizé dos Santos? Em Moçambique, chamam-lhe “a princesa”. Bom, pelo menos os jornais deixaram de falar do falecido “Zédu”, hábito que me parecia horrível. Há “apropriações culturais” que são verdadeiramente inconvenientes.

Jerónimo de Sousa – Jerónimo é contra o domínio do grande capital e dos grupos económicos, que obtêm lucros bilionários. Só uma política patriótica e de esquerda, é claro, nos pode salvar. Notei que não falou de “capitalismo de casino”, o que é sempre uma pena. A Ásia? É verdade: escrever à Blé para lhe agradecer o envio da revista.

Luís Graça – Um senhor deputado do PS, que jura que a cultura é o máximo, que o PS faz tudo por ela e a direita tudo contra. África?

Pedro Adão e Silva – O Governo não teme nada. Foi capaz de virar todas as páginas: a da austeridade, a da pandemia, e por aí adiante. Dêem-lhe um problema e o Pedro vira a página. Tirou um curso de leitura rápida e ei-lo ministro. Tem uma doutrina sobre o que são as boas reformas e como as fazer. A Oceânia? Mas não na Nova Guiné, que parece que ainda andam por lá antropófagos e não me apetece acabar no papo de um papua.

Rui Tavares – Sempre simpático, luta contra os eucaliptos (com Catarina Martins e Inês Sousa Real, já são três). O Norte do Canadá? Rever o “Nanook” do Flaherty, sobretudo aquela cena em que a família vai saindo toda dos fundos do kayak.

Sinceramente, não me lembro de quatro horas tão perdidas como estas, e nos últimos tempos tenho tido direito a várias. Juro que não me apanham outra vez numa assim. Os discursos sobrevoavam sistematicamente a realidade, sem nunca a tocar. Com um quase virtuosismo na matéria, só possível por uma total indiferença em relação à verdade, como António Costa, ou com uma estranha debilidade, como Pedro Adão e Silva. A oposição não foi menos fraca (aquela bancada do PSD, escolhida a dedo por Rio – nem faltou aquele jovem de rabo de cavalo!). O toque na realidade foi puramente instrumental, sem a força de uma qualquer visão que lhe desse sentido político. Foi tudo, mesmo com aquele recurso constante ao discurso dos “problemas estruturais”, como se nenhum problema fosse verdadeiramente detectado. Enigmas e mistérios houve muitos. Problemas, nenhuns. E, no entanto, são os problemas – não os enigmas e os mistérios – que queremos ver resolvidos. Os enigmas e os mistérios não nos fazem mal nenhum. Até nos fazem bem. O mal é eles estarem ali em vez dos problemas. Estamos lixados.

ESTADO DA NAÇÃO         POLÍTICA

COMENTÁRIOS:

Antonio Bentes: Que bela crónica e que bem fez o Observador em apenas permitir comentários dos assinantes. Os desvairados que por aqui vinham praticamente desapareceram. Respiram um ar mais civilizado. José Paulo C Castro: Poucos repararam mas o leque disponível de escolhas para ministro de Costa é cada vez mais reduzido desde há uma legislatura e meia atrás. Devíamos ter percebido a pressa de Centeno em sair para o Banco de Portugal. Com um grupinho cada vez mais reduzido, as escolhas são o que são. Nos deputados, então, nota-se o efeito 'capelinha privada' das distritais e concelhias deste país. Quando algo fica tão fechado, o bolor alastra.           Joaquim Ribeiro: Quando as coisas não correm bem, há sempre espaço para umas graçolas para acalmar a azia. As melhoras.              Paulo Silva > Joaquim Ribeiro: O cliente têm sempre razão, e é sempre bom vê-lo satisfeito...             Paulo Silva: Confesso que pouca atenção prestei ao debate, mas ainda fui a tempo de assistir à fase final com o inefável Pedro Adão. Diz-se que é o ministro da Cultura, mas se de cultura falou, não sei… talvez dos ‘Monty Phyton’. Mais parecia o ministro da Propaganda. Esta é de facto a nação do Estado súcial(ista) das maravilhas onde a direita doméstica teve de recorrer ao eufemismo para poder participar do debate político sem continuar a ser vilipendiada como reaccionária, e coisas piores. O paradoxo que seria para a Esquerda ter de ouvir expressões do seu universo linguístico, como ‘social-democracia’ ou ‘reformismo, pela boca da dita direita. Mas finalmente o PS lá assumiu o ‘reformismo’, só falta dizer que é social-democrata. Coisa que já é há muito... Infelizmente a única verdadeira oposição à Direita na AR parece ser o «Chega!» É claro que à Esquerda do PS temos os amigos da geringonça, mas esses sempre foram mais amigos da onça...              José Tomás: Obrigado ao cronista. É mesmo isto: o único efeito do debate sobre o Estado da Nação (e só vi os resumos) é a vontade que dá de fugir para o sítio que fique mais longe da Nação. PS: Hautacam, hoje: Imperdível! Mas na RTP2, com o Sr. Marco Chagas (pode-se ouvir no CPU enquanto se trabalha).          Francisco Assis: Confesso que me fiquei pela Volta à França.                João Floriano: Malta, sem qualquer hesitação! Eu adoro tudo o que é mediterrânico. Não perder Gozo e sobretudo Comino. Se o mar estiver picado, ainda melhor. História por debaixo de cada pedra, uma rede pública de autocarros que circula por toda  a ilha, segurança, mar e aquelas cidadezinhas em frente a La Valleta são deliciosas. Nada de especial no menu. Acho que têm um coelhito bravo à caçadora que eu não experimentei. Preços muito acessíveis. Eu adorei. Este ano vou a Dresden e Nuremberga via Berlim...... se a TAP quiser. E já agora, André Ventura é mesmo o único que faz oposição, espalhafatoso. é certo mas dá para irritar. Os outros nem isso fazem.            Valquíria > João Floriano: Uma delícia, Malta. Ia exactamente fazer um comentário sobre a dita, você antecipou-se 😅 Bom dia João Floriano. Tenho uma enorme curiosidade em visitar Dresden. Bem sei que foi totalmente destruída pelos aliados no final da guerra, ainda por cima sem qualquer necessidade estratégica militar (um crime de guerra), depois conte qualquer coisa… Vim agora de umas férias bem burguesas em Itália, agora vou rumar ao sul.  Divirta-se e boas férias. Ah, cada vez mais me impressiona a sua “adoração” pelo AV, é que no perfil que lhe tracei o AV não encaixa 😁              João Floriano > Valquíria: Também adoro Itália. Para além dos clássicos: Roma, Florença e Veneza, os locais mais bonitos para mim são Siena, San Gimignano, Ravena e  a costa Amalfitana. Esperava mais da Sicília.  Não posso deixar de sorrir com o perfil que traçou da minha pessoa. Eu confio muito no meu sexto sentido. Com todos os defeitos que tem identifico-me com o CHEGA. E também não exageremos Valquíria: não tenho adoração pelo Ventura, mas aprecio o estilo, sobretudo o ardor e nunca perder a pose quando está a ser entrevistado por «profissionais»  que o querem assustar com caras feias e juizos de valor que não são compatíveis com o exercício de um jornalismo isento.              bento guerra > João Floriano: Partindo do principio de que o vosso diálogo não é de "género" ,deixe-me dizer-lhe que aprecio imenso a sua postura e atitude séria nos comentários.Tem a temperança e paciência que eu não tenho.Já visitei todos lugares que mencionam.Dresden é a festa do barroco alemão,que os ingleses miseravelmente destruiram,guerra acabada ,para vingar as "V2 sobre Londres".Eu não vejo o Ventura como PM ,por agora,mas é uma voz indispensável na inação e compadrio entre políticos e comunicação             João Floriano > bento guerra: Já que estamos em troca de galhardetes, tenho também a declarar que gosto do seu estilo sintético e cirúrgico. Numa palavra o Bento diz aquilo que eu digo em vinte.  E mais uma vez  acertou quando destaca a importância de Ventura no momento presente: totalmente de acordo.            Carlos Quartel: Penso que o sistema está bloqueado e que tudo isto não passa de faz-de-conta. Com maioria absoluta, com o PR do seu lado, por vezes até tomando atitudes e fazendo declarações como se fosse o chefe do Governo, Costa está nas suas 7 quintas. Um cidadão consciente, inclusive, pode ter dúvidas sobre a oportunidade da queda do PS. Tal só acontecerá se a situação se agravar de tal modo que seja Costa a querer saltar do barco, se sentir que nada  o salva  do naufrágio. E isto significa que quem pagará a fatura, como sempre, será o povo, ironicamente, o mesmo povo que lá o pôs. Costa já está na fase de considerar ofensiva a pergunta sobre os dinheiros para o tipo dos barcos do Douro. É ofensiva a pergunta, não é ofensiva a atribuição da benesse. Curiosa concepção da democracia ............              Rui Matos: Muito bom, obrigado PT       bento guerra: Um Estado-narrativa, mérito dos políticos, que a imprensa alimenta              Cisca Impllit: Como popularmente se diz: "pimba num olho"!

 

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