Tenho presente a crónica de José Gil, do Público de 29 de Maio, lido tardiamente,
é certo, mas, infelizmente, o texto não perdeu actualidade, sobre uma guerra
que ainda não permite a esperança de um fim próximo e muito menos imediato. Um texto
que confirma toda a implacável e grosseira destruição de uma nação, em frases
certeiras provindas de um filósofo sensível que, naturalmente, se não exime a
solidarizar-se com a indignação geral e a justifica no seu escrito humanista,
que se não deixa influenciar por ideologias de uma esquerda
acéfala e vazia de humanidade, conquanto não de pedantismo patético.
Alguns parágrafos, pois, da crónica «Ucrânia, forças de morte e forças de vida» - não sem constatar,
todavia, a conveniência para nós, ocidentais acompanhantes no sofrimento à
distância, dessa “sujeição” ucraniana às suas raízes, razão primordial da sua
corajosa defesa pátria:
«……..Qualquer
coisa de impensável está a acontecer naquele país. Qualquer coisa só comparável
aos campos de extermínio nazis. O que é que nesta guerra nos tolhe e paralisa o
pensamento? O que é que nos faz entrar numa vertigem de angústia e ansiedade
sem fim? Às primeiras imagens juntaram-se, ao longo das semanas, outras, cada
vez mais intoleráveis e cruéis. Prédios rebentados, escolas, hospitais, museus
destruídos, apartamentos esventrados, mulheres, crianças, velhos executados,
civis torturados, baleados, mulheres violadas, famílias inteiras abatidas e
lançadas para valas comuns ou deixadas na rua a apodrecer. Cidades, vilas, e
aldeias reduzidas a cinzas. Mariupol, Kharkiv, Severodonestsk. Os russos destroem
primeiro tudo o que encontram pela frente, para passar a ocupar depois.
Qualquer
coisa de monstruoso apareceu, dentro da monstruosidade que é a guerra. Para lá
das leis da guerra, agora sistematicamente quebradas pelo Exército russo, que
já nem pretende esconder os crimes que comete, a horda de assassinos avança,
exibindo aos olhos do mundo a sua brutalidade sem escrúpulos. Não é só a ordem
da paz que é perturbada, é a própria guerra que é subvertida e transgredida –
não é uma guerra, é um massacre.
No
plano das responsabilidades, Putin emerge, isolado e único. Detentor de um
poder ditatorial quase absoluto, foi ele que desencadeou a “operação militar
especial” delineou o plano geral da acção, traçou a estratégia política e
moldou o discurso da propaganda. Encarna a soberania e o mal, a soberania do
mal e o mal da soberania. Não se julgue que a invasão da Ucrânia, com todas as
suas atrocidades, se deve à doença mental de um chefe. Mesmo se assim fosse, a
psicopatologia aplicada de um ditador, indo para lá de todas as regras, não faz
mais do que manifestar a natureza do poder que a torna possível: a eminência da
sua soberania, que nenhuma lei limita.
No
plano da vida de todos os dias, sobressai o sofrimento contínuo, sem tréguas,
do povo ucraniano. Um abalo sísmico permanente trouxe a instabilidade e a
vulnerabilidade máximas ao sentimento de existir. O que nós vemos e adivinhamos
nas imagens (e no que exprimem os jornalistas quando insistem em que “as
imagens não dizem o que isto é ao vivo”) é que, para cada um, por baixo da dor,
transparece o medo e a ansiedade de ter sido arrancado ao chão, atirado ao ar,
e ter ficado a flutuar, perdido, sem as referências e os laços afectivos que o
uniam ao mundo – sem casa, sem terra, sem amigos, sem o lar, sem a cidade, sem
o tempo dos gestos e ritos que fazem uma vida. O espaço vivo da casa, da vila
ou da cidade, e o tempo pulsado do trabalho e do lazer desapareceram para os
ucranianos. A brutalidade com que foram arrancados aos lugares e aos ritmos
habituais mostra-se nos vídeos das ruínas de edifícios esburacados e queimados
ou das ruas cobertas de destroços e cadáveres. O laço imediato à terra, laço de
imanência e conivência de cada vida ao espaço e ao tempo que a sustêm, foi
violenta e subitamente rompido.
Assim,
talvez a adesão da opinião pública europeia à causa ucraniana se devesse à
identificação desta última com o que estava (e está) a viver o povo da Ucrânia:
o sentimento de vertigem e ansiedade provocado pelo rompimento brusco do laço
de imanência com a terra, e a ansiedade e o medo do desconhecido que afectou a
Europa, mal saída do medo da pandemia de covid-19, à beira de uma crise
económica e temendo pelos efeitos anunciados da crise climática. O cruzamento
improvável destes dois fenómenos afectivos aconteceu, e os povos europeus
indignaram-se contra a prepotência do poder russo – dando vazão à sua própria
angústia. Não foi a defesa da democracia contra a autocracia de Putin que
esteve na origem da solidariedade europeia. Esta razão veio depois, elaborada
por políticos e pensadores ocidentais.
«…………..
Num gesto livre, a Ucrânia levantou-se para defender a sua vida, em vez de se
submeter aos ditames de uma ditadura. Foi isso, e não a defesa da liberdade
como valor ideal e abstracto, que levou os ucranianos a lutar tão
energicamente. Às forças de destruição e morte trazidas pelo exército russo
eles opuseram a força de vida vinda daquele laço que os une à sua terra e que
define, todos os dias, a liberdade que os anima.»
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