quinta-feira, 14 de julho de 2022

Retrato


Tenho presente a crónica de José Gil, do Público de 29 de Maio, lido tardiamente, é certo, mas, infelizmente, o texto não perdeu actualidade, sobre uma guerra que ainda não permite a esperança de um fim próximo e muito menos imediato. Um texto que confirma toda a implacável e grosseira destruição de uma nação, em frases certeiras provindas de um filósofo sensível que, naturalmente, se não exime a solidarizar-se com a indignação geral e a justifica no seu escrito humanista, que se não deixa influenciar por ideologias de uma esquerda acéfala e vazia de humanidade, conquanto não de pedantismo patético.

Alguns parágrafos, pois, da crónica «Ucrânia, forças de morte e forças de vida» - não sem constatar, todavia, a conveniência para nós, ocidentais acompanhantes no sofrimento à distância, dessa “sujeição” ucraniana às suas raízes, razão primordial da sua corajosa defesa pátria:

«……..Qualquer coisa de impensável está a acontecer naquele país. Qualquer coisa só comparável aos campos de extermínio nazis. O que é que nesta guerra nos tolhe e paralisa o pensamento? O que é que nos faz entrar numa vertigem de angústia e ansiedade sem fim? Às primeiras imagens juntaram-se, ao longo das semanas, outras, cada vez mais intoleráveis e cruéis. Prédios rebentados, escolas, hospitais, museus destruídos, apartamentos esventrados, mulheres, crianças, velhos executados, civis torturados, baleados, mulheres violadas, famílias inteiras abatidas e lançadas para valas comuns ou deixadas na rua a apodrecer. Cidades, vilas, e aldeias reduzidas a cinzas. Mariupol, Kharkiv, Severodonestsk. Os russos destroem primeiro tudo o que encontram pela frente, para passar a ocupar depois.

Qualquer coisa de monstruoso apareceu, dentro da monstruosidade que é a guerra. Para lá das leis da guerra, agora sistematicamente quebradas pelo Exército russo, que já nem pretende esconder os crimes que comete, a horda de assassinos avança, exibindo aos olhos do mundo a sua brutalidade sem escrúpulos. Não é só a ordem da paz que é perturbada, é a própria guerra que é subvertida e transgredida – não é uma guerra, é um massacre.

No plano das responsabilidades, Putin emerge, isolado e único. Detentor de um poder ditatorial quase absoluto, foi ele que desencadeou a “operação militar especial” delineou o plano geral da acção, traçou a estratégia política e moldou o discurso da propaganda. Encarna a soberania e o mal, a soberania do mal e o mal da soberania. Não se julgue que a invasão da Ucrânia, com todas as suas atrocidades, se deve à doença mental de um chefe. Mesmo se assim fosse, a psicopatologia aplicada de um ditador, indo para lá de todas as regras, não faz mais do que manifestar a natureza do poder que a torna possível: a eminência da sua soberania, que nenhuma lei limita.

No plano da vida de todos os dias, sobressai o sofrimento contínuo, sem tréguas, do povo ucraniano. Um abalo sísmico permanente trouxe a instabilidade e a vulnerabilidade máximas ao sentimento de existir. O que nós vemos e adivinhamos nas imagens (e no que exprimem os jornalistas quando insistem em que “as imagens não dizem o que isto é ao vivo”) é que, para cada um, por baixo da dor, transparece o medo e a ansiedade de ter sido arrancado ao chão, atirado ao ar, e ter ficado a flutuar, perdido, sem as referências e os laços afectivos que o uniam ao mundo – sem casa, sem terra, sem amigos, sem o lar, sem a cidade, sem o tempo dos gestos e ritos que fazem uma vida. O espaço vivo da casa, da vila ou da cidade, e o tempo pulsado do trabalho e do lazer desapareceram para os ucranianos. A brutalidade com que foram arrancados aos lugares e aos ritmos habituais mostra-se nos vídeos das ruínas de edifícios esburacados e queimados ou das ruas cobertas de destroços e cadáveres. O laço imediato à terra, laço de imanência e conivência de cada vida ao espaço e ao tempo que a sustêm, foi violenta e subitamente rompido.

Assim, talvez a adesão da opinião pública europeia à causa ucraniana se devesse à identificação desta última com o que estava (e está) a viver o povo da Ucrânia: o sentimento de vertigem e ansiedade provocado pelo rompimento brusco do laço de imanência com a terra, e a ansiedade e o medo do desconhecido que afectou a Europa, mal saída do medo da pandemia de covid-19, à beira de uma crise económica e temendo pelos efeitos anunciados da crise climática. O cruzamento improvável destes dois fenómenos afectivos aconteceu, e os povos europeus indignaram-se contra a prepotência do poder russo – dando vazão à sua própria angústia. Não foi a defesa da democracia contra a autocracia de Putin que esteve na origem da solidariedade europeia. Esta razão veio depois, elaborada por políticos e pensadores ocidentais.

«………….. Num gesto livre, a Ucrânia levantou-se para defender a sua vida, em vez de se submeter aos ditames de uma ditadura. Foi isso, e não a defesa da liberdade como valor ideal e abstracto, que levou os ucranianos a lutar tão energicamente. Às forças de destruição e morte trazidas pelo exército russo eles opuseram a força de vida vinda daquele laço que os une à sua terra e que define, todos os dias, a liberdade que os anima.»

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