A Paula enviou: «Encontrei isto no Facebook. Está interessante. É
claro que não conheço o autor de quem fala.»
Eu também não conheço. Mas fiquei-lhe grata pelo texto que me mandou de alguém
que eu conheci naquele tempo em que esse alguém - Eugénio Lisboa - fazia parte de um escol literário em Lourenço
Marques, juntamente com Rui Knopfli, e outros que por ali projectavam saber e
arte, que uma descolonização fez apagar por lá, mas que a vida de saber e de
trabalho fez continuar por cá, decerto ofuscada hoje por todos os que são galardoados
por outros princípios de técnica aparentemente literária contra os quais justamente
EG se rebela, com a ciência e arte que sempre manifestou.
Ainda bem que pode continuar a projectar a sua sabedoria traduzida em arte e
causticidade, ainda que seja através de um Facebook, a que os habituais
consumistas de facebook têm a sorte de aceder. Como sempre, uma expressão
elegante e clara de racionalidade condutora do seu pensamento é alerta sagaz,
que só um povo de indigência em tantos níveis – conquanto rica em estridência
polémica em torno das concepções do altruísmo da moderna virtude espalhafatosa –
se recusa em seguir. Povo que aceita o pontapé na lógica do novo Acordo Ortográfico, (conquanto não generalizado ainda a todos os países
da CPLP), e que faz concessões de não seguimento, à vontade do freguês, numa flexibilidade
bem reveladora dessa tal indigência cultural, e desprezo pelo próprio país – do
“tanto faz”. É claro que Eugénio Lisboa não segue tal Acordo repugnante, como o
seu texto corajoso e lúcido no ataque às publicações d’ «as coisas
mais aberrativas e ofensivas de uma inteligência lisa e clara, que não teme
fazer escrutínios severos.» Não, a sua
inteligência lisa e clara nunca temeu fazer esses corajosos ”escrutínios”, bem necessários hoje. Conquanto inúteis, é
claro. Mas que aquecem os corações dos que sentem idênticas estranhezas.
Um texto amplo de sonoridade corajosa contra os absurdos da nossa pobreza
de espírito, que os mais responsáveis, afinal, contribuem para radicalizar. Só
podemos ficar gratos, os que amam o seu país, de facto.
O nosso meio intelectual anda, fora
de dúvida, a pedir uma honesta e radical barrela, E os nossos professores, escritores
e críticos andam a precisar de um sólido curso de ética profissional.
Publicam-se, actualmente, entre nós, as coisas mais aberrativas e ofensivas de
uma inteligência lisa e clara, que não teme fazer escrutínios severos.
Estas coisas aberrativas são,
porém, aclamadas aos gritos e com fórmulas aquecidas, indiciando um misto de
paranóia e imbecilidade. Textos que não são coisa nenhuma, a não ser mixórdias
indecifráveis, são elevados aos cornos da lua, onde ficam pendurados, para
benefício dos basbaques. E são promovidos por nomes egrégios e muito aclamados
na nossa praça literária.
Alguns destes textos são
afoitamente brindados com afirmações que os declaram, nem mais nem menos, “os mais
importantes de todos os tempos” e
outros biscoitos neste gosto.
Pergunto: quem sobrevive a
isto?
É que tudo isto anda a infectar o
meio intelectual e o meio académico, induzindo, nos aspirantes a professor, a
escritor, a ideia de que “agora é
assim que se faz” e que “esta é a
literatura que temos de fazer”.
Para espanto de muito poucos, eu incluído, Portugal tornou-se, às mãos
destes trapaceiros, a capital universal da “inovação” literária,
onde linguagem e estrutura narrativa são revistos e actualizados todos os
quartos de hora. Ao escritor mal saído dos cueiros, já se lhe exige um “teor de
inovação”. Produzem-se trambolhos que ninguém lê e
todos aclamam e premeiam.
Portugal é, acima de tudo, um
centro de pedantes provincianos e, em geral, de pouquíssima verdadeira cultura,
totalmente desorientados, mas que, infelizmente, se tornam “influentes” (a
pobreza intelectual do meio permite-o). Quando o perpetrador de um mau
livro detém uma tribuna crítica, o desastre não tem remédio. O putedo
literário não quer confrontos com ele, porque pode vir a precisar dos seus
futuros favores de crítico. Há que engolir e calar.
Mas como eu já não ando a
fazer curriculum e
tenho 92 anos, possuo aquilo a que Pirandello chamava a “franqueza do
túmulo” e não tenho medo de chamar os bois pelos
nomes (aliás, devo dizê-lo a meu favor e sem favor que não precisei de
chegar a esta idade para dizer sempre o que penso).
Publicou-se agora, entre nós,
um “romance” que
mereceu duas suculentas páginas de louvor destemido, num conhecido
quinzenário literário, sendo o louvor da autoria de uma festejada escritora
portuguesa. O “romance” intitula-se
um dia lusíada, sendo seu autor António Carlos Cortez (com quem
tive sempre relações amistosas) e a autora do vasto louvor a eminente Lídia Jorge, com quem
nunca tive qualquer querela, só lhe devendo atenções. Confesso que me custa a
acreditar que Lídia Jorge, com a grande responsabilidade que lhe assiste, se
tenha prestado a este exercício de um louvor de alta amperagem, dedicado a uma incrível
mixórdia literária.
O “romance” de
Cortez não tem qualificação possível. No final do livro (p. 383), o autor, com
louvável candura, diz: “Uma prosa diamantina, uma irradiação
absoluta – isso pretendi.” Não se
pode dizer que pretendesse pouco, mas todos temos direito a ambicionar a lua.
Porém, logo a seguir, com uma não menos louvável modéstia, acrescenta: “Falhanço
mais que provável e mais que legítimo.” Tenho
grande dificuldade em desmenti-lo, mas também em confirmá-lo. Já lhe explico
porquê.
É que, falando do seu livro, não é
apropriado falar de falhanço. O grande físico Wolfgang Pauli cunhou uma
expressão mortífera, que aplicava aos trabalhos que os aprendizes de cientista
lhe apresentavam e que não tinham ponta por onde se lhes pegasse: ideias
estapafúrdias, que não eram coisa nenhuma. Despachava-os com este
veredicto: “Not even wrong” (“Nem sequer
está errado”), isto é, o trabalho nem sequer
tinha a dignidade mínima que permitisse dizer-se dele que estava errado.
Do livro de Cortez, que é uma mixórdia
indecifrável, só se pode dizer que nem sequer é mau.
Nesta mixórdia mal batida, o autor mete tudo e mais alguma coisa, a eito e
sem jeito: Apocalipse, Leonard Cohen, António Nobre, Ruy Belo, Alfonso
Costafreda, T. S. Eliot, Octavio Paz, Camões, Susan Sontag, Jankélévitch,
Gastão Cruz, Fiama, Luísa Neto Jorge, Franco Alexandre, Hart Crane, Herberto
Hélder e muitos, muitos, muitos mais, quase não deixando espaço para si e tendo
o meticuloso cuidado de só citar aquela gente que estava,
indiscutivelmente, “in”.
Mesmo assim, apesar de ter enchido
o seu livro com textos de tantos outros autores, vou contar-lhe uma história e
fazer-lhe um reparo, quanto a uma omissão essencial de um autor. Conta-se que o
grande enfant
terrible, Orson Welles, organizou
um dia, na Broadway, um espectáculo provocador, no qual fez questão de fazer
passar pelo palco tudo quanto era objecto ou ser vivo. Um crítico brincalhão
acusou-o de se ter esquecido de fazer passar por lá um elefante. Na sessão
seguinte, Orson Welles fez-lhe a vontade e apareceu, no palco, um elefante. O
meu reparo é este: não percebo que Cortez tenha metido no seu texto excertos
de quase toda a literatura mundial e não tenha incluído, na sua longa lista, a
teoria da Relatividade, que tanto revolucionou a nossa concepção do universo.
Confesse que é uma gaffe de
monta. Porém, ainda está a tempo.
Este livro, com a publicidade que
está a ter – incluída esta que lhe estou a dar – irá
conseguir, de certeza, uma segunda edição, na qual poderá então incluir
passagens significativas da obra de Einstein. Para não falarmos da teoria dos
quanta, a qual daria ao livro de Cortez um charme e um chic irresistíveis. De qualquer
modo, apesar de Cortez, com louvável autoapagamento, deixar, para si, pouco
espaço, ainda encontra maneira de nos dar pedaços de prosa inovadora
razoavelmente apocalíptica, deste jaez (apertar os cintos de segurança):
“Estou dentro
da História, com uma voz só minha, uma máquina de escrever como quem lança
incêndios, um facho de ternura dentada, de rodas, milhões de rodas dentadas
mordendo a humana dor, esfarelando-a, tornando-a consubstancial à fome de
falar, de olhar, de comentar o dia, de fazer amor, de ir às compras, de dar o
troco, de consumir, de abraçar; a escrita tão informe que ninguém vai querer
aceitar essa tumultuosa gangrena de linguagens várias dentro da linguagem
única, sol sobre a testa como um sinal.”
O livro está cheio de passagens
neste género, isto é, impregnadas da “tumultuosa
gangrena” que é a linguagem preferida de Cortez.
Passagens cujo significado é despiciendo: o que interessa é, como se diz, “a linguagem”, mesmo que
se não saiba bem o que isto quer realmente dizer.
Livros deste género, em que as
palavras andam à solta, numa libertinagem sem freios, têm uma vantagem: já que
não são lidos, por serem ilegíveis, prestam-se admiravelmente para serem “estudados”;
inclusivamente, cuidadosamente “investigados”, em
dissertações de doutoramento. Como é, por exemplo, o caso de
Gastão Cruz, que andou mais de cinquenta anos a proclamar que a poesia “não diz nada” e que
é apenas “linguagem”, como se
esta fosse, também, por sua vez, intransitiva e não dissesse igualmente nada.
Gastão Cruz está a ser, segundo me consta, “investigado”, numa dissertação de doutoramento
e vai ser curioso ver como se investiga a obra de um autor que não quer dizer
nada e só combina palavras à toa, congeminando uma linguagem que nada pretende
significar. Não havendo nada que escrutinar, o doutorando tem a vida
manhosamente facilitada.
O mais deprimente disto tudo é as nossas
Faculdades de Letras, com medo cobarde de perderem o comboio da moda, da “inovação” e
do chic da última
hora, meterem a bordo todo este embuste de dimensões gigantescas. E fazem-no,
cantando e rindo, em vez de arregaçarem as mangas e fazerem um escrutínio sério
àquilo que se lhes propõe. O medo de se não estar à la page é um dos medos mais abjectos que conheço. O mal
que se anda a fazer aos jovens universitários, aos jovens aprendizes de
escritor, aos leitores, em geral, apadrinhando dislates, como este “romance” de
António Carlos Cortez é um mal que merece severa investigação e uma barrela
radical.
Vou fazer uma afirmação atrevida e
peço a Lídia Jorge que honestamente me desminta, se for capaz: digo que
Lídia Jorge não leu este livro de ponta a ponta, pela simples razão de que não há
nenhum ser humano, debaixo da Via Láctea, capaz de o fazer. Venha o desmentido.
EUGÉNIO
LISBOA
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