Demonstrar filosoficamente -
elegantemente – a pertinência de uma impertinência – e lavarmos as nossas mãos
imaculadas sobre uma questão perversa, de bem com Deus e com o Diabo… Questões
que não se põem aos Putins de caras imaculadas, para quem a morte dos seus adversários
– a morte apenas - é coisa de mera trivialidade. Ou vais ou rachas. O que eu
acho é que se pretende transformar essa coisa da eutanásia numa lei de
cortesia, de contemplação piedosa para com o moribundo, mantendo-nos nós de
mãos lavadas, encarregando o médico do acto piedoso. Instituir a morte do seu
semelhante em lei parece pura cobardia, ao encarregarmos outros disso, tal como
o fazem, afinal, os raivosos Putins, dominadores do mundo.
Sofrimento, morte, legislação
Legislar sobre morte medicamente
assistida é procurar fazer sentido de um sem-sentido – introduzir uma
positividade na morte que é negação pura – o que logo coloca a possibilidade
fatal do arbitrário.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 15 dez. 2022, 24:19
A
coisa mais radicalmente apolítica que há é a morte. O amor também o é, mas num
grau infinitamente menor. Ela dá-se num indivíduo que abandona a comunidade,
numa solidão única cuja experiência é literalmente indizível. Tudo o
que se tenta dizer sobre a matéria – inclusive tudo o que a filosofia, ao longo
dos séculos, sobre ela disse – depara-se com um abismo de sem-sentido. De facto, a morte é o paradigma do
sem-sentido, daquilo de que o sujeito não consegue, faça ele os esforços que
fizer, fazer sentido. É a negação em estado puro, inabsorvível pela psique. Dizer isto não é dizer que a morte é uma injustiça.
Ao contrário. Da injustiça nós conseguimos fazer sentido – e opor-lhe um desejo
de justiça. A morte não é justa nem injusta. Pura e simplesmente, vale a pena
repeti-lo, não faz sentido. E,
não fazendo sentido, não há boa nem má morte. Há apenas morte.
Com
o sofrimento é diferente. E não falo sequer do sofrimento moral, que tem
tonalidades particulares. Falo do sofrimento físico. Em si mesmo ele não representa uma saída única e irrepetível
para fora da comunidade. O sujeito que sofre está ainda ligado a nós, até
porque a experiência do sofrimento físico é uma experiência que, em graus
diversos, todos nós partilhamos. Nesse sentido – no sentido em
que aquele que sofre habita o nosso mundo, faz parte da nossa comunidade –, a
experiência do sofrimento é também em parte uma experiência política. É uma experiência dizível, mesmo nos
casos de sofrimento excruciante em que o sujeito deixa de poder sequer pensar
na dor como algo que lhe acontece e se confunde por inteiro com ela. E, sobretudo,
a comunidade pode e deve agir, se tiver meios para isso, no sentido de eliminar
a dor. Eliminar a dor faz justamente sentido, um sentido que a comunidade deve
primacialmente reconhecer como um seu dever maior e sobre o qual não deve, a
que pretexto seja, hesitar.
Aristipo
de Cirene, o filósofo, tinha para
isto uma boa imagem: “Três são os estados relativos ao nosso
temperamento: um, pelo qual sentimos dor, semelhante à tempestade no mar;
outro, pelo qual sentimos prazer, parecido com a leve onda, porque o prazer é
um leve movimento, comparável a uma brisa favorável; o terceiro é o estado
intermediário pelo qual não sentimos dor nem prazer, análogo à calma do mar”. Face ao sofrimento físico excruciante que não
apresenta possibilidade de remissão, é este último estado que deve ser buscado
a todo o custo. E quando digo “a todo o custo”, quero dizer: correndo todos os
riscos – nomeadamente a morte – implicados no atingimento desse estado.
Isto
que disse até agora parece-me uma evidência. A partir daqui, a partir do
momento em que a questão se coloca fora do plano do combate ao sofrimento
físico radical e inescapável, tudo me parece muito mais duvidoso. Estamos aqui
face a uma aporia, uma dificuldade, que é provavelmente irresolúvel.
Legislar sobre a morte medicamente assistida é procurar fazer sentido de um
sem-sentido – introduzir uma positividade na morte, que é negação pura –, o
que, além de tudo, logo coloca a possibilidade fatal do arbitrário. E podem-se amontoar cláusulas sobre cláusulas,
instâncias sobre instâncias, que a possibilidade do arbitrário não desaparece.
Não quero com isto dizer que não perceba todos os argumentos a seu favor, que,
na sua maioria, giram em torno da autonomia individual. Percebo-os – há
vasta literatura filosófica sobre a questão – e, em larga medida, partilho-os.
O problema é que eles ignoram – não podem deixar de ignorar – o
carácter apolítico da morte, isto é, a intrínseca e irredutível resistência
desta a qualquer ordem legislativa. Trata-se, convém lembrá-lo, de
um acto de saída do nosso mundo comum, único e por definição irrepetível. Ora,
ignorar isto, por mais impecavelmente racionais que os argumentos pareçam, é
legislar sobre o ilegislável.
Um
defeito em parte afim verifica-se naqueles que recusam a morte medicamente
assistida sob o pretexto da sacralidade da vida. Os argumentos – aqueles que os
católicos defendem, por exemplo – merecem ser levados a sério, mesmo em certos
casos-limite. E não convém nunca esquecer a importância da voz da Igreja contra
as tentações eugénicas que seduziram, a certa altura, os mais improváveis
espíritos. Mas os
defeitos de que padece a posição têm pontos de contacto com os da posição
anterior, nomeadamente no facto de sustentarem uma legislação sobre o
ilegislável (por meio de uma proibição).
Há,
no entanto, uma assimetria entre as duas posições. A positividade da morte
sustentada pela primeira alicerça-se em valores como a autonomia e a dignidade
humana que valem apenas para a própria vida, já que supõem um universo de
sentido que a morte, por definição, nega. Na segunda posição, pelo contrário, a
morte não se vê afectada de qualquer positividade extraída da vida. Nesse
sentido, ela é mais coerente. O problema, poder-se-ia dizer, é que a coerência
nestas matérias pode, em certos casos, ser excessiva.
O
que disse nos parágrafos anteriores assinala apenas a perplexidade
face às tentativas de legislar, num sentido ou noutro, por relação à morte. E a perplexidade vem, como disse, de se tratar de
uma situação única, irrepetível e radicalmente apolítica, insusceptível de
legislação social. O único gesto que logicamente corresponde a
tal estatuto é, quando o indivíduo julga por si mesmo, sem necessidade de atestação
alheia, que a vida não tem condições para ser vivida, o suicídio, que dispensa
a mediação social.
Não
quereria acabar dando a ideia de um qualquer agnosticismo nesta matéria.
Limitei-me a assinalar que, excepto nos casos de sofrimento irremissível e nas
condições que apontei, onde a questão não me oferece qualquer dúvida, a
maioria dos casos supõe uma legislação sobre a morte que é ilegítima. Transforma o acontecimento apolítico por
excelência – a saída solitária deste mundo – num acontecimento político. O que
dispensar, na medida do possível, a mediação do social, neste caso a mediação
hospitalar – eventualmente o suicídio assistido, quando o outro não é possível
–, não padece, por mais problemático que seja, de uma tal ilegitimidade.
Em
todo o caso, uma coisa é certa: não há boa morte. Há morte, e a tarefa dos
médicos é evitá-la, até aos limites que o bom-senso determina. A nós, cabe-nos,
enquanto podemos, decidir se os devemos seguir ou não. E, como em tudo, é
preciso sorte.
EUTANÁSIA SAÚDE MORTE SOCIEDADE
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