quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

ENIGMA ETERNO


Quando, em alturas depressivas, ou porque nos julgamos injustiçados na vida, nos choramos intimamente, de repente pensamos que somos abençoados, porque não nos falta saúde nem aos nossos filhos e ficamos gratos por tal, a um deus desconhecido, mas que amamos - também pelo universo e beleza que nos rodeiam – a par, é certo, das tais monstruosidades a que o mundo assiste, mais ou menos impotente, mas colaborando, por vezes, para sanar esse Mal – e a isso também ficamos gratos. O budismo, muito sábio… Mas não será que menos altruísta, nessa preocupação-mor de libertação pessoal, desligada do mundo? Para mim, é esta também a lição da bela história pessoal de Luís Soares de Oliveira.

LUIS SOARES DE OLIVEIRA

FACEBOOK, 19 de Dezembro de 2020  · 

CONVERSA COM DEUS

Era em Macau, num pequeno templo Budista que tinha a porta aberta ao público. Minha mulher e eu entrámos e deparámo-nos com um monge sentado em pose Lotus com as costas para a entrada. O monge emitia um longo gemido nasalado e, de quando em quando, fazia soar um gongo que produzia vibrações cordiais, calmantes que se silenciavam gradualmente. Chamava Deus, pensei eu. Não resisti. Rapei da câmara de bolso e preparei-me para fotografar a chegada de Deus. O monge interrompeu imediatamente a sua cantilena e, sem se virar, disse em inglês "no photos". Repetiu o aviso, após o que retomou o seu cântico monocórdico. Interrompi uma conversa com Deus, pensei eu. Na realidade, não interrompi porque os Budistas não acreditam em Deus. Entendem os budistas que acalmando a mente e libertando-a de todo o cuidado e preocupação terrenos encontram a sabedoria. Esta está lá, instalada não se sabe por quem. Ao homem compete descobri-la.

Tudo se resolveu O monge sentado continuou o seu auto alheamento e eu retirei-me privado de registo fotográfico. Intrigou-me, contudo, o facto de o monge, mesmo de costas para mim, ter dado conta do meu gesto, mas atribui isso a efeito da meditação que o libertava de cuidados e preocupações para o tornar consciente de si e de tudo o que o cercava.

Mais para Ocidente, a coisa não é assim tão simples - aqui, o homem procura falar com Deus e não com a sua própria consciência. Talvez por isso, na maior parte dos casos não dá conta da presença de Deus quando O encontra. Eu - por exemplo - só muito mais tarde me apercebi de ocasiões da minha vida em que Deus estava lá. A mais remota, teria eu os meus sete anos, deu-se quando, em encontro ocasional de rua e conversa despreocupada com um vizinho de meus pais - um abastado engenheiro da construção civil -, confessei que a coisa mais desejava era uma bicicleta. Estávamos no Verão, em São João do Estoril. Por alturas do Natal, o vizinho convidou-me a entrar na sua garagem, apontou para a bicicleta do seu filho, três anos mais velho do que eu, e disse-me :- O meu filho cresceu muito e já não cabe nesta bicicleta. Vou dar-lhe uma maior no Natal e, se tu quiseres, esta fica para ti. Eu não cabia em mim de alegria. Nunca mais larguei a bicicleta. Por vezes até me esqueci da escola. Só mais tarde percebi que ali houvera mão de Deus - só Ele me poderia ter dado uma bicicleta de boa marca inglesa e simultaneamente vacinado para o resto da vida contra a raiva aos ricos, insanidade mental que viria a afligir a grande maioria das gentes da minha geração.

2 COMENTÁRIOS

Francisco Velez: Realmente é uma história que dava quase uma novela, gostei da partilha eu que acho que sou crente.

Francisco G. de Amorim: Sempre me fazem bem as suas memórias. Obrigado

 

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