No criterioso estudo de JAIME NOGUEIRA PINTO.
Sim, o
saudosismo da canção “As time goes by” permanece, afinal, como uma aspiração
que julgaríamos definitiva, não fossem as transformações sociais deste nosso
tempo, de um radicalismo feito de pesporrência insana e autoritária que parece
destituída dos valores de superioridade moral que o filme transmite, no
sacrifício do amor pelo reconhecimento do justo mérito alheio, embora de um
rival, o que torna o gesto mais nobre. Mais um belo trabalho, desta vez sobre o
Cinema, que nos oferece o Professor
Jaime Nogueira Pinto fazendo-nos
reviver épocas passadas, pela reflexão histórico-política sobre essas e o
presente de tanta iniquidade “fraternal”. Sobre as lutas entre comunistas e os
defensores dos regimes liberais, não esqueço também a comédia franco-italiana “Le Petit Monde de don Camillo” do romance de G. Guareschi, que
nos pôs a par desses contrastes ideológicos de uma forma desempoeirada e
imparcial, num desempenho, sobretudo de Fernandel, cheio de hilaridade, que
hoje, pelos vistos, não seria mais possível, tal como o conteúdo da canção
saudosista, tão graves e vãos estamos, nas questões sentimentais, incompatíveis
com a arte… Salvo, é claro, em comédias “sérias”, extraordinariamente jocosas, no
seu elenco fabuloso, como “Quatro
Casamentos e um Funeral”, onde o papel da homossexualidade, discreto e
sincero, desempenhado por John Hannah
e Simon Callow, sobressai, comovedor
e intenso, no discurso do primeiro, aquando do funeral do amante, só nessa
altura assumido como tal, na sociedade convencional britânica que se pretende, educadamente, politizar.
A política do cinema, "as time goes by"
De 1942 a 1945 Hollywood produziu
cerca de 500 filmes de guerra ou relacionados. Casablanca foi dos primeiros com
a ideia de cruzada internacional até no leque de nacionalidades dos principais
actores
Jaime Nogueira Pinto Colunista do Observador
Observador, 03 dez. 2022, 12:183
Casablanca estreou no
New York’s Warner Hollywood Theater a 26 de Novembro de 1942, Dia da Acção de
Graças, poucas semanas depois do desembarque dos Aliados na África do Norte
francesa. O filme era de Michael Curtiz, um realizador nascido em Budapeste,
ainda no Império dos Habsburgo, e com uma longa carreira europeia. Curtiz fora
convidado pela Warner Brothers para Hollywood em 1926, depois de já ter feito
dezenas de filmes na Europa, entre eles épicos bíblicos, como Sodoma e
Gomorra. Em Hollywood, Curtiz dirigiria mais de 100 filmes, incluindo uma série
de sucessos, como The Adventures of Robin Hood, com Errol Flynn e
Olivia de Havilland, e White Christmas, com Bing Crosby, Danny Kaye e Rosemary
Clooney e música de Irving Berlin.
Casablanca, cujo guião era adaptado de
uma peça de teatro, Everybody Comes to Rick’s, reunia também um elenco de luxo
– Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Rains e Conrad Veidt –
e viria a ser, por várias razões, um “filme de culto”, com três Óscares e um
lugar cativo no topo das listas dos “melhores filmes da História do cinema”.
A Idade da Propaganda
Com uma intriga sentimental e passional
numa conjuntura de guerra e de ocupação, o filme era, claramente, um filme
político. O cinema tornara-se, desde os anos 20, uma importante arma de
propaganda política. Cmunistas e fascistas sabiam que o cinema, com a força da
imagem, era um instrumento poderosíssimo para conquistar e doutrinar as massas.
Logo em 1925, Sergei Eisenstein, com 27 anos, estreava o extraordinário Couraçado
Potemkine, inspirado numa revolta de marinheiros da Marinha Imperial russa, em
1905; em 1927, também ainda no “mudo”, Pudovkin realizava O Fim de São
Petersburgo, uma história passada na tomada de poder pelos bolcheviques. E na
década de trinta, já no sonoro e com Estaline no poder, Eisenstein, Dziga
Vertov, Pudovkin e outros, cobriam a História da Rússia até à revolução de 1917
e ao culto da personalidade de Estaline. De Eisenstein ficaram, memoráveis,
além de Outubro (1928), Alexandre Nevsky (1938) e Ivan,
O Terrível(1944-1946). Se a primeira parte de Ivan o Terrível valeu a
Eisenstein o Prémio Estaline em 1945, a segunda, acabada em 1946, que mostra
Ivan como um autocrata louco, foi proibida pelo Czar Vermelho e só seria
exibida cinco anos depois da morte de Estaline e 10 anos depois da morte de
Eisenstein em Moscovo, abandonado por todos.
***
O fascismo mostrou idêntica preocupação com a Sétima Arte: logo em 1924, Mussolini lançou o Istituto Luce, que se
especializou nos noticiários de actualidades, obrigatoriamente exibidos nas
sessões do cinema; em 1932, foi criado o Festival de Veneza e em 1937 a Cinecittà. O fascismo prosseguiu uma política
de apoio ao cinema italiano, mantendo as produtoras em mãos privadas, mas
concedendo-lhes generosos meios financeiros.
Já em pleno “sonoro”, houve filmes de
exaltação ideológica, como Vecchia Guardia, de Alessandro Blasetti (que trata
do esquadrismo e da Marcha sobre Roma), ou 1860, também de Blasetti, que induz
a convergência ideológica do fascismo com o Risorgimento e a unidade da Itália.
Por sua vez, os filmes históricos, como a superprodução Scipione l’Africano, de
Carmine Gallone (1937), faziam apelo ao império romano para glorificar a
aventura africana do regime fascista.
Houve também uma vasta produção
de comédias com grandes actores, como Totó e Vittorio de Sica, dirigidos por
Mario Camerini, o género de comédia de costumes que, à semelhança das produções
portuguesas da época, acabava também por servir a imagem do poder. E entre 1937 e 1941 foi o tempo dos chamados Telefoni
Bianchi, filmes cor-de-rosa, com
enredos românticos em ambientes de luxo (onde os telefones eram invariavelmente
brancos) e finais felizes.
Hitler e o nacional-socialismo apostaram também no cinema como
instrumento de propaganda, ficando famosos os filmes de Leni Riefenstahl sobre
grandes eventos nazis, como Der Sieg des Glaubens (sobre o Congresso de Nuremberga, de 1933) ou Olympia (sobre as Olimpíadas
de 1936).
A produção cinematográfica era posta
ao serviço do Partido e da Alemanha em guerra; mas embora
a indústria do cinema estivesse sob direcção governamental, através da UFA
(Universum-Film Aktiengesellschaft), Goebbels, ministro da Propaganda,
procurava não bombardear a população com excessos de ideologia e de guerra.
Assim, a par de filmes anti-semitas, como Die Rothschilds e Jud Süss, ou
de glorificação de figuras históricas, como Frederico II e Bismarck, entre
1933 e 1945 a Alemanha produziu mais de mil fitas, a maioria comédias ligeiras
ou mesmo comédias musicais, que procuravam transmitir uma certa “normalidade”
em tempos bastante extraordinários.
A Guerra e as guerras de Hollywood
As democracias – e a democracia
americana – também não hesitaram em seguir um caminho paralelo: a
partir de 7 de Dezembro de 1941, depois do ataque japonês a
Pearl Harbour, a América mobilizou o cinema para o esforço de
guerra, numa linha de estado de excepção, criando um organismo, o Office of War Information, para
coordenar os meios culturais de propaganda.
Hollywood, “a fábrica dos
sonhos”, foi arregimentada: o inimigo número 1 era o fascismo, mas o fascismo
alemão, até porque Mussolini era bastante popular entre os italo-americanos.
Casablanca foi alvo
de polémica entre os especialistas, com críticas à ambiguidade de algumas
personagens, nomeadamente a do herói, Rick (Humphrey Bogart), um cínico
convertido à renúncia e às causas do bem comum. No
entanto, como propaganda de guerra, e apesar da ambiguidade – ou por causa dela
–, Casablanca cumpria
bem a missão de explicar as razões da intervenção a um povo favorável à
não-intervenção (segundo uma sondagem do Gallup, de 1942, 96% dos
americanos eram favoráveis à neutralidade).
No âmbito dessa mesma missão, e muito “à
americana”, Hollywood vai produzir,
entre 1942 e 1945, cerca de 500 fitas de guerra ou relacionadas com a
guerra. Casablanca foi das primeiras e, como notava um crítico, a
ideia de cruzada internacional começava logo por aparecer na nacionalidade dos
principais actores do elenco: Bogart (Rick) era americano, Bergman
(Ilsa), sueca; Paul Henreid (Lazlo), austríaco; Conrad Veidt (major Strasser),
alemão; Claude Rains (capitão Renault), inglês.
A moral, prescrita pelo Office of War
Information e recomendada pelo produtor Hall Wallis, da Warner Brothers, para
o guião de Casablanca, era a de que “os desejos pessoais deviam ser
subordinados à tarefa de derrotar o fascismo”. Os
guionistas, os irmãos gémeos Julius e Philip Epstein e Howard Koch, outro judeu
nova-iorquino, compuseram a narrativa da paixão de Ilsa e Rick tornada
impossível pela guerra e pelo dever, num ambiente de film noir, mais europeu
que americano, reforçado pelo protagonismo de Bogart.
Koch ia ser,
no ano seguinte, o argumentista de um outro filme político de guerra, também
dirigido por Curtiz. Com um elenco bastante mais modesto do que o de Casablanca,
Mission to Moscow dava uma imagem paradisíaca da URSS de Estaline. O
comunismo despertava grande hostilidade na América e a ideia era torná-lo
aceitável. Koch era comunista e teria depois problemas no tempo de McCarthy.
Casablanca acabou por
ser um belo filme e por cumprir a sua função propagandística. Rick, encarnado por um Bogart que em
outras fitas do film noir americano aparecia como gangster, detective privado
ou marginal, percorria ali todo um caminho de redenção. De cínico e egocêntrico dono de um “gin
joint” neutral ou mesmo colaboracionista a encapotado resistente anti-nazi com
um coração de oiro (que permitia, com aceno de cabeça, que a Marselhesa de
Lazlo se sobrepusesse ao Die Wacht am Rhein dos alemães no seu
estabelecimento), o ambíguo herói iria revelar-se, no final, um devotado
altruísta que sacrificava a sua paixão para salvar o rival, em nome da
liberdade.
Para
o americano médio, talvez céptico quanto ao destino de uma Europa que os seus
antepassados tinham abandonado e que ainda era, na tradição dos Quakers, “o
Reino do Mal”, a conversão de Rick-Bogart, ou de Bogart-Rick, à causa da
liberdade, sacrificando a sua velha paixão, e o abandono simbólico de Vichy do
igualmente cínico e simpático capitão Renault-Rains, no Aeroporto, antes do
avião para Lisboa, poderiam bem simbolizar o abandono do isolacionismo e o
arranque da América para a salvação do mundo.
Mas com política a mais ou a menos,
nunca é pela propaganda que as coisas ficam; o que, com o passar do tempo, permanece agarrado à nossa memória são
coisas como o As Time Goes By, tocado e cantado repetidamente por um relutante
Sam-Arthur (Dooley) Wilson, a pedido ora de uma nostálgica Ilsa-Bergman ora de
um masoquista Rick-Bogart.
Tudo
coisas que devem estar prestes a ser canceladas pelas novas e mais descarnadas
e descaradas propagandas.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR POLÍTICA CINEMA CULTURA
COMENTÁRIOS
manuel rodrigues: Tem razão JNP ao advertir no último parágrafo: "Tudo coisas que devem
estar prestes a ser canceladas pelas novas e mais descarnadas e descaradas
propagandas". Tenho comigo a primeira "Histoire du Cinema", da autoria de
Maurice Bardèche e Robert Brasillach. Muito pelo talento de
Brasillach descreve a espantosa aventurados primeiros passos do cinema (desde
1895), das aventuras do cinema mudo à revolução do sonoro. A Poche publicou-a
em 2 volumes. O primeiro, até aos anos 40 tem a marca de Brasillach. O segundo
é de Bardèche. Serviu de referência para várias gerações de cinéfilos, como Henri
Langlois, que o tinha como livro de cabeceira. Também aqui a esquerda se
apropriou da obra, eliminando um dos autores e engavetando a obra, cancelada
avant la lettre ainda no século XX. C Costa: Excepcional resumo, para
guardar!.. . bento guerra: A sociedade de conteúdos, dirigida pelo Zelensky ,
também é muito eficaz e produz obra tão popular como a "Cinderella "
João Ramos “As time goes by” , só que na verdade ele (time)
também não vai nada para melhor e a propaganda actual é um péssimo presságio… João
Floriano > João Ramos:. Pode-se sempre
adaptar aos tempos modernos. Se em vez do Bogart e da ingrid puser um casal
homo, vai ver o sucesso que a canção volta a ter Se reparar bem o poema da
canção até se adapta lindamente à modernidade. Há só ali uma mudançazinha que
tem de ser feita: «Woman needs man and man must have his mate». Experimentemos
assim: «Woman hates man and man must have his mate» e fica perfeito para ser
tocada num bar de engate gay.
Maria Nunes: Outros tempos. Filmes e actores excepcionais. Obrigada JNP por nos
relembrar épocas que parece terem acontecido há "milénios". João Floriano: O cinema americano sempre
serviu para propaganda política e nesses aspecto não é muito diferente do
cinema europeu como prova o texto de JNP. Quando iniciei a leitura pensei que a
Tobis seria referida assim como as deliciosas comédias dos anos 40 como a
Cantiga de Lisboa, o Pai Tirano e a Menina da Rádio. Também serviram e muito a
propaganda salazarista.
João Ramos > João Floriano: Os referidos filmes portugueses
poderão ter servido de algum modo a propaganda da época, mas tiveram um grande
mérito, fizeram nos rir e ainda fazem, coisa de que bem precisamos!!! João Floriano > João Ramos:Foram de facto comédias
impagáveis com figuras brilhantes como António Silva, Vasco Santana, Beatriz
Costa, Ribeirinho e tantos outros. Em relação à propaganda do regime, a cena
mais clássica é um momento do Pátio das Cantigas em que no meio do arraial
popular há uma grande zaragata e o Vasco Santana, o Narciso copofónico
arrabanha a gaiatada para um canto protegido. Entretanto rebenta o fogo de
artifício e o Narciso diz qualquer coisa como isto: «Não tenham medo, que eu
tomo conta de vocês!», uma alusão aos jogos diplomáticos de Salazar durante a
Segunda grande guerra. Tem algo de semelhante com o que vivemos hoje. vitor Manuel > João Floriano: No que se refere a propaganda,
Salazar não passava de um anjinho em comparação com os abrileiros. A utilização
do futebol é só um exemplo. . Domingas Coutinho: Excelente como sempre.
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