De uma retórica que se inspira em desejo
de libertação de uma tal opressão do forte macho sobre a frágil fêmea, característica
que se impõe, a da força física e intelectual masculina sobre a fragilidade
feminina, sendo esta, para todos os efeitos, o instrumento da gestão e
transporte, para continuação da raça. A evolução social trouxe a demonstração
de que a mulher pode ser mais do que isso, em termos de paralelismo intelectual
e não só, mas bom seria que a ligação entre os sexos se mantivesse, em termos
de amor e complementaridade, e nos deixássemos desses rebuscamentos malandros,
que atingem os próprios dicionários, para subverter e humilhar ainda mais o ser
feminino, que, afinal é o veículo da continuação da humanidade, pesem embora os
protestos ululantes dos convictos das suas verdades, feitas de pura rebeldia
pedante e provocadora.
A carne que se fez palavra
Será que uma mulher também é um
“adulto que vive e se identifica como fêmea apesar de lhe ter sido dito que
tinha um sexo diferente no nascimento”? O Cambridge Dictionary agora também
acha que sim.
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
OBSERVADOR, 19
dez. 2022, 24:1813
Celebramos em 2022 o quinquagésimo aniversário de Novas Cartas Portuguesas,
um marco fundamental na história da nossa literatura. Partindo de Cartas Portuguesas, talvez
escritas por uma freira de nome Mariana Alcoforado, as escritoras Maria
Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta desafiaram as formalidades literárias do seu tempo,
subvertendo a noção de autoria com uma obra escrita a três mãos e desconstruindo
a noção de género literário com um conjunto de textos de natureza muito
diversa.
Mas foi em termos políticos que o livro teve maior impacto uma vez
que procurou dar voz às mulheres e fê-lo com um tal excesso linguístico e
performativo que despertou a atenção do regime, levando à abertura de um
processo judicial por terem publicado um livro de “conteúdo insanavelmente
pornográfico e atentatório da moral pública”. Nesta acusação, encontramos o
elemento que animava o espírito das autoras e que consistia na exploração
literária do corpo: o sexo, o desejo, o prazer, mas também a maternidade e
a fragilidade física. “Ouve minha irmã: o
corpo. Que só o corpo nos leva até aos outros e as palavras.”
Era
a partir deste corpo, numa
reivindicação que se pretendia universal, que as autoras sentiam a clausura –
uma clausura que condicionava e determinava os papéis sociais que podiam
desempenhar. Não espanta, por isso, que, ao escrever sobre a mulher
em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir tenha começado pela biologia. “Que é uma
mulher?”, perguntava
a filósofa francesa. A mulher é um corpo, mas era preciso cortar o elo que
ligava esse corpo biológico às expectativas sociais tradicionalmente associadas
a esse corpo. Essa libertação corresponderia a uma verdadeira revolução, como
dizem as autoras das Novas Cartas:
Quando o burguês se revolta contra o
rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um
governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas
propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os
seus prazeres. Se a mulher se
revolta contra o homem nada fica intacto.
É
possível interpretar esta urgência de libertação do corpo como parte de um
caminho mais longo de emancipação biológica que está presente no pensamento
moderno. O início desse caminho é simbolizado por Francis Bacon, quando
afirma o poder do novo método científico sobre a natureza, prometendo uma
progressiva superação de todas as limitações e dependências que ela nos impõe.
A verdade que libertará seria agora a verdade científica, colocada em
substituição da palavra dos Evangelhos e dos dogmas da fé. E talvez seja esta a grande metanarrativa
moderna: a de que a Razão humana permitiria o controlo absoluto das condições
adversas; a de que o conhecimento científico permitiria eliminar todos os
nossos anseios e medos, até os da morte – como prometem os transhumanistas, que
asseguram a última grande libertação.
Mas há algo de grotesco na
forma que este caminho tomou. Aquela emancipação biológica traduz-se hoje não
na ideia de separar o corpo biológico do papel socialmente construído, mas
antes na ideia de prescindir do próprio corpo biológico como referência,
num processo de emancipação absoluta e de transmutação da carne em verbo. E em
última análise, o desejo
de desempenhar um certo papel social passa a determinar o corpo que queremos
ter. O género elimina o sexo e absolutiza-se.
O
corpo e a carne, que foram tão importantes para as três
Marias pensarem a condição feminina, a sua identidade, a sua clausura e a sua
libertação, parecem ter desaparecido. E
os dicionários têm, progressivamente, adoptado esta transformação do mundo.
O Cambridge Dictionary fê-lo recentemente, acrescentando à definição
clássica de mulher (“ser
humano adulto do sexo feminino”) a
seguinte versão: “adulto que vive e se identifica como fêmea
apesar de lhe ter sido dito que tinha um sexo diferente no nascimento”. (Entre nós, o Dicionário Priberam diz:
“Ser humano do sexo feminino ou do género feminino”.) Paradoxalmente, a ciência torna-se o alvo a abater.
Esta redefinição levanta claras dificuldades ao feminismo. Para a jornalista Suzanne Moore, o caminho percorrido impossibilita a luta
feminista: “Se não pudermos definir o que é
uma mulher ou nomear essa experiência, não nos podemos organizar politicamente.”
E essa definição tem de ser biológica: “Ou protegemos os direitos das
mulheres como tendo fundamento no sexo ou não os protegemos de todo.”
E se não estamos condenados a ser uma mera resposta biológica determinada por
um processo adaptativo e evolutivo, devemos ainda assim reconhecer a dimensão
fundamental que nos liga ao corpo: Sex matters, como diz a organização britânica (“And it
shouldn’t take courage to say so.”).
Mas o impacto vai muito para além do feminismo. O editor político da Spiked, Brendan O’Neill,
reagiu à alteração do Cambridge Dictionary recordando a função da linguagem e
dos dicionários, e propondo um exercício de reflexão a partir da definição de “post-truth” presente
no mesmo dicionário: uma situação de pós-verdade seria aquela “em que é mais
provável que as pessoas aceitem um argumento baseado nas suas emoções e crenças
do que um argumento baseado em factos.”
A incapacidade de compreenderem a sua própria contradição parece simbolizar a
loucura dos nossos dias.
“Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto”, disseram
as autoras. Mas seria este o resultado desejado? E será possível recuar e
recuperar alguma sanidade?
Em
boa verdade, o problema não é apenas político. Ele não pode ser separado de um
sentimento de desadaptação que marca o mundo ocidental. Os nossos corpos não
foram feitos para uma vida tão sedentária, tão confortável, tão segura – acima
de tudo, não foram feitos para uma vida tão digital. Não surpreendem, por isso, os sintomas
individuais – de stress, ansiedade, depressão ou uma sensação de desencontro
contínuo com a vida – que parecem dar forma a uma doença colectiva. Mas será
possível libertarmo-nos da ilusão de emancipação biológica e recuperar a palavra
que se fez carne?
Votos
de um feliz Natal.
PS: A discussão em torno do
tema “o que é uma mulher?” torna indispensável uma referência a Suzanne Moore,
famosa colunista do The Guardian e que se afastou do jornal depois das reacções
de censura ao seu artigo “Women must have the right to
organise. We will not be silenced”. Moore conta a sua história aqui (uma entrevista muito
interessante, e de particular relevo para os directores de informação que Maria João Avillez entrevistou
recentemente e que consideram que a preocupação com as ideias woke são mera
paranoia injustificada).
DIREITOS DAS
MULHERES DIREITOS
HUMANOS SOCIEDADE IGUALDADE DE
GÉNERO
COMENTÁRIOS:
Carlos Chaves: Caríssima Patrícia Fernandes, sendo eu um homem adulto do sexo masculino,
proponho uma solução muito simples para manter a definição clássica de mulher
como, “ser humano adulto do sexo feminino”, deixem de votar à esquerda! Obrigado,
e retribuo os votos de um feliz Natal. P.S. Obrigado pelo link com a entrevista
da Suzanne Moore Francisco
Almeida: Era inevitável que o "wokismo" fosse um
Ouroborus. Mas a revolta das feministas, além de tíbia, é tardia. Excederam-se
no #metoo mas estão já ultrapassadas. Não só ficaram para trás como agora
começam a perceber que estão a ser devoradas. Discordo da autora no encómio às
"Três Marias". Não acho que se tenham inspirado em Mariana Alcoforado
mas que a deturparam ou subverteram pois a freira de Nª Sª da Conceição de Beja
quebrou tabus mas sempre num quadro de amor heterosexual e, adivinha-se,
monogâmico. O sujeito era esse amor, a quebra de tabus mera consequência.
Bem sei que sendo homem - branco, hetero e monogâmico - é-me difícil, talvez
impossível compreender o feminismo. Não certamente as opções de Simone de
Beauvoir, especialmente na sua relação aberta de uma vida com Jean-Paul Sartre,
de quem quase tudo desaprovo. Nem com as ditas "Três Marias" que vejo
muito mais como rebeldes insatisfeitas do que como heroínas à conquista de
um espaço de liberdade. Aliás, depois de ler "O Senhor das Ilhas"
até fiquei desconfiado que Maria Isabel Barreno, lá no fundo, nutria grande
admiração pelo personagem que retratou - Manuel António Martins - um
aventureiro arribado numa tempestade, sem família nem passado conhecidos, que
se auto-promoveu pelo casamento e chegou a prefeito de Cabo Verde com escassez
de escrúpulos e de ética. Maria Clotilde Osório: Muito bom. E sempre um ponto
de partida para quem quer conhecer mais bento
guerra: O corpo da fêmea tem em si a "fábrica" de fazer outros como nós. E
essa fábrica é induzida à "produção" doze vezes por ano, durante
cerca de trinta anos. Para isto tem mecanismos hidráulicos e fluidos
próprios, que afectam o comportamento."Why can´t a woman be more
like a man?" prof Higgins Maria
Clotilde Osório > bento guerra: E quando a fábrica deixa de
funcionar e os mecanismos e fluídos produtivos deixam de existir a
"fêmea" transforma-se em quê? bento guerra > Maria Clotilde Osório: A "fábrica" nunca
acaba, pelo menos no "software e cultura da empresa". Veja A Lili Maria Clotilde
Osório > bento guerra: ???? Estou como a Lili: não entendi. Mas calculo que
seja defeito meu. Não estar à altura de uma tese tão profunda do Prof Higgins
mas fundamental errada. Quanto às mulheres serem homens e os homens mulheres
não tenho qualquer dúvida: não é biologicamente possível. bento guerra
> Maria Clotilde Osório: Adoro as mulheres! Não sei se
dizer isto é crime? NUNO
SILVA: O último parágrafo pareceu-me, como dizer, simplesmente genial José Boto: Um bom artigo que abre caminho
à reflexão! Ausenda
Rodrigues > José Boto: Reflectir sobre o quê,
mesmo? O artigo é interessante mas ... ? Follow the science. É só
isso. José Boto > Ausenda Rodrigues: Se não precisa de reflectir, ou
de pensar, isso é um seu problema! Manuel Cardozo: Confuso, não? Será pela
complexidade ou pela falta de "ideias claras"? É que carne e verbo
são intermutáveis, não a carne da biologia mas a da vida. Por isso a confusão.
De qualquer forma não deixa de ser um interessante artigo.
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