Evocação do Belo e do Bom em que é
perito o espírito atento e entusiasta de Maria
João Avillez, em meio das notícias de um “mundo cão”, como o desta
«GUERRA NA
UCRÂNIA» como expõe o mesmo OBSERVADOR, no mesmo dia de
hoje:
«Putin disposto a negociar ou quer culpar Kiev? Putin diz-se pronto para negociar, mas só admite "soluções aceitáveis". Para os EUA e a Ucrânia não há dúvidas: «Militar português explica que Putin está, na verdade, a falar para os russos.»
O dom
Por entre o incenso, as velas acesas e
uma intima expectativa sempre renovada, aquele fortíssimo halo musical tornou
ainda mais poético o mistério do Natal e o seu espantoso anúncio.
OBSERVADOR, 28
dez. 2022, 00:20
1Ah os criadores… Diz-se que são especiais e são. Com o corpo,
a voz ou o gesto, com a mente ou o verbo, fazem o que não somos capazes de
fazer, dizem o que não sabemos dizer, olham o que não vemos. Espanto-me sempre.
Com os que já estão em museus ou bibliotecas, com os que vão estar, com os que
ainda criam em surdina, longe das luzes. O diálogo que mantêm com eles próprios
só pode relevar da graça, dom entre todos apetecido mas avaro na sua própria
distribuição. Poucos são os que quando pressentem o sopro o levam até á
criação. Guardei o instante precioso em que reencontrei alguns em 2022, guardei
o que de belo me emprestaram e quero levar comigo na dobragem do ano. Como quem
leva um álbum de fotografias.
2“Estou
espantado comigo próprio, com o que aqui vejo” dizia-me Jorge Martins num murmúrio quase aturdido: “Lembro-me que enquanto
pintava ia gostando cada vez mais, era a pintura a trabalhar e eu a trabalhar
nela, sem sequer me dar conta do tempo sombrio que vivíamos – estávamos na
pandemia. Afinal não se reflectia no que pintava.…”
Era a festa naquela tarde em Évora.
Era o que as telas e os papeis convocavam, a vibração da festa, os seus sinais
exteriores de cor e de sedução. E
tão fortes, coisa rara em Portugal, isto da festa. Um “espirito que pairava de
sala em sala”, repletas de espectadores a tomar partido por aquela súbita
cintilação. Trabalhei bem” disse-me o pintor. Sabia – e sabia-o jubilosamente –
que “tivera a responsabilidade das coisas que pusera na parede”:
“Os papéis têm de facto qualquer coisa de novo, foi um passinho em
frente, usei uma técnica que até aí só tinha usado em tela…”
Semanas
depois Jorge Martins ainda se
emocionava. A lembrança da inauguração da sua exposição neste ano de 2022 era-lhe
doce e amável. Escorria
por ele como mel. Conhecendo o artista plástico há tantos anos, acompanhando
de muito perto o seu trabalho, tendo-o elogiado publicamente, ainda me
desconcerto com uma simplicidade, meia racional, meia auto-irónica que nada contagiou
ou subverteu. Insisto na minha perplexidade: como é que das
sombras da pandemia nascera tanta luz? AH,
“ a pandemia havia de passar, como outras coisas passaram por ele, logo se
havia de ver.” O que há a ver permanece no sul alentejano, ainda podemos
participar da festa. Até à primavera, as muitas tonalidades da cor e da
forma “deste” Jorge Martins, estão á nossa disposição na branca Évora. Á nossa
espera.
3Quando
entrei no camarote do S. Carlos
onde simpaticamente me acomodaram com soprano Elisabeth Matos e o maestro
António Pirolli, titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, a Companhia
Nacional de Bailado já interpretava o primeiro acto da “Giselle”.
Tão datado e sempre actual no
dramático contraste entre a graciosa inocência do primeiro acto e a
irremediabilidade da morte na segunda parte. Envolta na pungência de um fúnebre
romantismo onde as “Wilis” evoluíam pelo palco, recolhidas sobre a sua própria
morte, num lago de tristeza. Tão derisoriamente belo, tão bem dançado. E
estrelado por Marcelino Sambé, hoje primeira figura do Royal Ballet (RB) que
conta quase mais prémios internacionais que anos de vida. Voltava ao S. Carlos
para dançar Albretch, voltava como grande estrela da companhia inglesa
(trazendo consigo uma etérea Giselle, Anna Rose O’Sullivan). A sala afogou-se em aplausos intermináveis,
reverenciando o jovem Marcelino. Sete anos depois reencontrei-o igual a ele
próprio, de tão sorridentemente acolhedor. Tínhamo-nos conhecido quando então
viera dançar a este mesmo palco, já inteiramente tocado pela graça que abençoou
a sua vocação de bailarino. Os anos, a vontade, a disciplina, ampliaram-lhe a
graça e os deuses aprioraram-lhe o génio. De tudo isto falamos depois no
“backstage”, com o palco aberto sobre a belíssima sala do S. Carlos, agora já
irrisoriamente vazia. Nesse tão particular momento em que um intérprete-criador
se reencontra com ele mesmo após deixar o seu personagem jazer sem vida sobre a
madeira do palco. Falamos da “felicidade”
do talento, falamos da
“obrigatoriedade de honrar as oportunidades,” como foi a entrada com uma
bolsa para a londrina Royal Ballet School, o convite para ficar, na companhia,
o caminho percorrido: sempre a subir até ás estrelas como ele.
4Camané. Foi ao CCB este ano e foi como sempre insuperável.
Ou como acho sempre que ele é quando canta e já o escrevi mil vezes. Por obra e
graça de si próprio consegue transmitir-nos que afinal se supera mesmo, em
relação à ultima vez, ao ano passado, a última actuação, ao disco mais recente.
Não está apenas a cantar, está a seguir o sopro da
criação. Não sei de mais ninguém que de cada vez nos convoque assim, para a
melancolia do fado, reinterpretando-se nessa superação de si mesmo. E no
entanto… Camané surge-me sempre misteriosamente fechado na concha de uma
timidez antiga, quase constrangida, como se, sem sombra de pose ou de
encenação, hesitasse ou descresse do seu talento: “Não sei como vai ser… não estou nada certo disto”…
Estamos nós felizmente, os que o ouvimos, deixando a nossa devoção encher salas
e plateias. Mas ele é assim. Não se pode fazer caso (e nunca ninguém nos disse
que a timidez era incompatível com a criação).
5Tiago Morin é musicólogo.
Mas ao escolher sê-lo, quis que a música fosse ouvida, que ela interpelasse,
agisse, interagisse. Professor, soube juntar gente, ensinou, entusiasmou. Teve
o dom de despoletar talentos que tem vindo a aperfeiçoar e de amadurecer
outros. A persistência recompensou o mérito: hoje tem um pequeno grupo em
Óbidos, que toca diversos instrumentos e canta a várias vozes. Foram eles que embalaram musicalmente a missa do
Galo deste ano, no Santuário do Senhor da Pedra, o castelo ao longe erguendo-se
das muralhas debruadas de luz. A performance musical foi quase admirável na
qualidade do reportório escolhido e na ambição dessa escolha. É assim que se
cresce num grupo com pouca idade e numa também pequena vila portuguesa. Mas
por entre o incenso e as velas acesas numa expectativa sempre renovada, foi
aquele fortíssimo halo musical que tornou ainda mais poético o mistério do
Natal e o seu espantoso anúncio.
PS:
Era para mim o “menino Mega”, coisas das redacções. E foi sempre assim durante
a nossa extraordinária vivência dos melhores anos da Revista do Expresso
(graças a Marcelo Rebelo de Sousa, que é bom nestas coisas). Prefiro hoje
deixar só a minha pena e guardar a sua memória onde cabe muita coisa. A minha
admiração, o António leva-a consigo. Não me é necessário cantar no coro do
“costume” nem ele me mereceria isso. Escrevo o que vi e o que vi basta-me como
despedida: muito frequentemente, daquilo que o António
Mega Ferreira antevia, pensava e depois concretizava, costumava
sair luz. Basta, basta-me, como epitáfio.
Era
um passageiro frequente da Revista do Expresso — escrevendo ou não nela – e
nunca esquecerei a velocidade estonteante com que naquele tempo sem
computadores ele ia até lá escrever à máquina alguma colaboração e como logo a
seguir, daquele mecânico, incessante matraquear, saíam textos invariavelmente
magníficos — sempre fez o que quis com as palavras. Partilhávamos a Itália —
quem não partilha a “segunda pátria de toda a gente” como disse alguém? — e
partilhávamos o Benfica vorazmente. Foram anos incrivelmente felizes
aqueles da Revista, com o Vicente, o Mega, o Seabra e os outros… Inesquecíveis.
(E embora dificilmente transmissíveis e impossivelmente repetíveis continuam,
digamos assim, persistentemente por contar).
O
sopro que habitava António Mega Ferreira foi sempre activamente polifacetado e
polifónico, tocou todos os instrumentos que quis tocar e alguns sublimemente e
a isto se chamará o poder de criar. Era enfim um desinstalado que acreditava.
Ah claro, era um diletante, mas só porque se podia dar a esse luxo: quem lho
negaria?
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