Existe um café, por baixo da minha casa,
onde costumo apanhar o sol diário das minhas ânsias de liberdade doméstica (após,
é certo, já ter desempenhado os costumeiros trabalhos de manutenção diária) com
a bica acompanhante das leituras favorecedoras da minha compreensão do mundo, mas
só depois de ter ido despejar o lixo no contentor azul dos papéis e no amarelo
dos objectos restantes menos degradáveis, além do contentor verde dos vidros, menos
diário este, contudo, dada a nossa parcimónia no uso da garrafeira. Mas ontem foi um dia trágico para mim, junto
aos tais contentores da minha actividade despejadora diária, que assim aligeira
uma sobrecarga de sacos atulhados em despejos semanais, esses mais pertença do
saco preto para o contentor cinzento, recentemente, aliás, acrescido do saco
verde fornecido pela Câmara para os lixos resultantes das comidas, e favorecedores
quer do fabrico do gás, ao que me foi dito, quer de adubos, segundo imaginava.
Mas foi um dia trágico, iniciado junto
dos contentores, com o aparecimento – eu diria que em queda, tão súbito foi –
de um rapaz moreno, talvez romeno, com as mãos cheias de calendários e bordas
de água, a pedir dinheiro para um bolo. Depois de protestar radicalmente, lá
tirei o euro do porta-moedas que daria para meio bolo, mas não desandou,
pedindo mais, e enfiando-me nas mãos um calendário com a Virgem de Fátima, que,
todavia, troquei por um de gatinhos. E nessas andanças, caíram os calendários e
os Bordas d’Água ao chão, baixando-me eu para os apanhar, com consciência de
culpa que, verifiquei posteriormente, não tinha. O moço ainda choramingou mais
um pouco, pedindo mais dinheiro, e afirmando-se revoltado com a sua exclusão
social, conquanto menos elegantemente expressa, e até, comovida, lhe fiz uma
festa no braço a dar-lhe coragem para ir aguentando o vale de lágrimas da sua
existência, que, aliás, o é do foro mundial, expressão que também ficou apenas
subentendida no nosso encontro emotivo, a que logo o moço se furtou,
atravessando rapidamente a rua para o lado oposto, enquanto eu regressava à
mesa do café, com súbito sentimento de culpa, a pensar que não lhe tinha pago o
calendário. Li o jornal da minha formação parcimoniosa, tomei a bica do meu
prazer q.b. e quando quis pagar, verifiquei que não tinha o porta-moedas no bolso do
casaco, compreendendo eu então o segredo da queda anterior dos calendários e
Bordas d’Água proporcionando o furto do porta-moedas, onde, para mais, guardava
momentaneamente toda a documentação identificadora e a auxiliar do meu estado
de saúde, que usara pouco antes e ainda não guardara no sítio próprio, em
desleixo impróprio…
Fiquei em choque, assistida pelos moças
do café, que chamaram a polícia, subi a casa para descarregar as lágrimas,
desci entretanto, enquanto o meu marido descera já para pagar o café e escutar
o relato pelas donas do café que tinham reparado no encontro, fui à CGD dar
baixa do multibanco, regressei e fui à polícia, onde o Artur logo apareceu,
avisado pelo pai, que veio a seguir. Tudo moroso, porque estava outro casal
participando o seu próprio assalto, e quando saí já entrara outra jovem para
participar o seu, o que me irmanou com eles, na humilhação sofrida. Entretanto,
o meu marido, que regressara a casa, telefonou a avisar que um casal de
brasileiros encontrara o porta-moedas e o viera entregar, com todos os
documentos e até algum dinheiro, só desaparecidas as duas notas de dez euros que
levantara na véspera. Fiquei, naturalmente reconhecida aos brasileiros, e esta
manhã, feitos os despejos e estando à mesa a fazer este rascunho das minhas
dores, passou um sujeito acompanhado de duas mulheres, a vender calendários e Bordas
d’Água que ainda me questionou, no sentido de lhe eu adquirir um Borda d'Água, mas a mãe da moça dona do café logo veio em meu
socorro, nem precisei de erguer a voz, informando que na véspera eu fora
roubada, o que bastante indignou o cigano e as respectivas acompanhantes, pelo paralelo subentendido, que logo
explicou que nem todos somos iguais, isto é, nem todos os vendedores como ele, roubam.
Para já, tenho quem me defenda no café, e por isso também, lhe estou grata, pois as histórias correm e os ciganos mais ainda, que se me perdoe o vocábulo do meu racismo indignado.
Vem este relato a propósito de um texto
de João Miguel Tavares, do Público de 26 de Novembro, que tem por título “O caso Luísa Salgueiro, uma história muito
mal contada”, que transcrevo, apenas para uma reflexão
sobre a nossa maneira de ser portuguesa assim compassiva, que se verifica
igualmente no caso por ele narrado, embora sejam outras, as suas ilações.
Quanto a mim, é sobretudo a compaixão que guia os passos lusitanos, tanto os
esmoleres de que sirvo de exemplo, como os das ligações amigáveis entre
conhecidos que Luísa Salgueiro exemplifica - mau grado, repito, a explicação
divergente de JMT - e daí que vivamos todos não direi na paz dos anjos, mas
apenas nas coordenadas altruísticas do nosso bem-fazer, conquanto umas visivelmente
mais parolas do que outras.
O texto de João
Miguel Tavares:
Opinião
O caso Luísa Salgueiro: uma história muito mal contada
A história de que Luísa Salgueiro foi
constituída arguida apenas por ter nomeado uma chefe de gabinete sem concurso
público é areia atirada para os nossos olhos.
PÚBLICO, 26 de
Novembro de 2022, 0:00
Durante
15 dias, aquilo que ouvimos foi isto: o Departamento de Investigação e Acção
Penal do Porto, num momento de manifesto delírio persecutório, decidira constituir arguida a presidente da Câmara
de Matosinhos, Luísa Salgueiro, por ter nomeado sem concurso a sua chefe de
gabinete.
A
indignação parecia justificada e o erro escandalosamente grosseiro, já que a
lei prevê que um político possa escolher de forma discricionária os elementos
do seu gabinete. A notícia foi divulgada pela revista Sábado, e vinha acompanhada de reacções
de Luísa Salgueiro: “Como é que é possível um procurador dizer isso? Mas
algum autarca alguma vez abriu concurso para escolher o chefe de gabinete?”
Uma
legião de políticos e de comentadores apressou-se a sair em defesa de Luísa
Salgueiro. Ribau
Esteves, presidente da Câmara de Aveiro pelo PSD, declarou:
“Este processo da Luísa Salgueiro não tem qualquer sentido. A lei é clara. Sou
presidente de câmara há 25 anos, já nomeei sete vezes chefes de gabinete,
adjuntos e secretários e sempre de acordo com a lei. Onde é que está a
dúvida?” Isilda Gomes, presidente da Câmara de Portimão pelo PS, disse: “Se
ela é arguida, eu também sou. Eu e todos os presidentes de câmara.”
Francisco Assis acrescentou: “Estamos perante um grave atentado ao
funcionamento do Estado de direito perpetrado por um procurador da República.”
Só
que, desde o início, essa é apenas metade da história. Facto: o
despacho do procurador refere que o “recrutamento da chefe de gabinete, sendo
cargo de direcção intermédia, deveria ter sido precedido de concurso público”.
É um erro claro de interpretação da lei, que deveria ter sido prontamente
corrigido. Não foi. Mas o auto de constituição de arguida explica a outra
metade da história, que ficou fora dos comentários sobre este caso – e que é a
metade fundamental. Luísa Salgueiro é suspeita de, “abusando dos poderes e/ou
violando os deveres inerentes às suas funções”, ter nomeado Marta Laranja
Pontes como sua chefe de gabinete “por influência conjugada de Joaquim Couto,
Manuela Couto e José Maria Laranja Pontes”.
É
falso o que Luísa Salgueiro disse aos jornalistas: não, a sua
“constituição como arguida” não se refere “exclusivamente à nomeação” da sua
chefe de gabinete; e, não, essa nomeação não “foi feita da mesma forma que é
feita por todos os presidentes”. Aquilo que o Ministério Público alega é que existe um
triângulo de influências constituído pelo casal Joaquim Couto (histórico
socialista) e Manuela Couto (empresária), por José Maria Laranja Pontes (antigo
presidente do IPO do Porto e pai de Marta) e por Luísa Salgueiro.
O
IPO do Porto contratou serviços (duvidosos) de comunicação a uma empresa de
Manuela Couto por 360 mil euros, e esta terá intercedido para que Marta Laranja
Pontes ascendesse a chefe de gabinete de Luísa Salgueiro. Segundo o Observador, “existem indícios de que a própria
empresária terá garantido a uma sua funcionária um dia depois da nomeação que a
subida de posto da filha do presidente do IPO do Porto só teria acontecido após
a alegada influência de Joaquim Couto junto de Luísa Salgueiro”.
Se
é verdade ou mentira, cabe à Justiça apurar. Mas a história de que Luísa
Salgueiro foi constituída arguida apenas por ter nomeado uma chefe de gabinete
sem concurso público é areia atirada para os nossos olhos. Ainda por
cima, com o patrocínio de muito boa gente que deveria ler melhor as notícias
antes de opinar sobre elas com tanto fervor.
O autor é
colunista do PÚBLICO
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