quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Somos todos uns p’rós outros


Existe um café, por baixo da minha casa, onde costumo apanhar o sol diário das minhas ânsias de liberdade doméstica (após, é certo, já ter desempenhado os costumeiros trabalhos de manutenção diária) com a bica acompanhante das leituras favorecedoras da minha compreensão do mundo, mas só depois de ter ido despejar o lixo no contentor azul dos papéis e no amarelo dos objectos restantes menos degradáveis, além do contentor verde dos vidros, menos diário este, contudo, dada a nossa parcimónia no uso da garrafeira.  Mas ontem foi um dia trágico para mim, junto aos tais contentores da minha actividade despejadora diária, que assim aligeira uma sobrecarga de sacos atulhados em despejos semanais, esses mais pertença do saco preto para o contentor cinzento, recentemente, aliás, acrescido do saco verde fornecido pela Câmara para os lixos resultantes das comidas, e favorecedores quer do fabrico do gás, ao que me foi dito, quer de adubos, segundo imaginava.

Mas foi um dia trágico, iniciado junto dos contentores, com o aparecimento – eu diria que em queda, tão súbito foi – de um rapaz moreno, talvez romeno, com as mãos cheias de calendários e bordas de água, a pedir dinheiro para um bolo. Depois de protestar radicalmente, lá tirei o euro do porta-moedas que daria para meio bolo, mas não desandou, pedindo mais, e enfiando-me nas mãos um calendário com a Virgem de Fátima, que, todavia, troquei por um de gatinhos. E nessas andanças, caíram os calendários e os Bordas d’Água ao chão, baixando-me eu para os apanhar, com consciência de culpa que, verifiquei posteriormente, não tinha. O moço ainda choramingou mais um pouco, pedindo mais dinheiro, e afirmando-se revoltado com a sua exclusão social, conquanto menos elegantemente expressa, e até, comovida, lhe fiz uma festa no braço a dar-lhe coragem para ir aguentando o vale de lágrimas da sua existência, que, aliás, o é do foro mundial, expressão que também ficou apenas subentendida no nosso encontro emotivo, a que logo o moço se furtou, atravessando rapidamente a rua para o lado oposto, enquanto eu regressava à mesa do café, com súbito sentimento de culpa, a pensar que não lhe tinha pago o calendário. Li o jornal da minha formação parcimoniosa, tomei a bica do meu prazer q.b. e quando quis pagar, verifiquei que não tinha o porta-moedas no bolso do casaco, compreendendo eu então o segredo da queda anterior dos calendários e Bordas d’Água proporcionando o furto do porta-moedas, onde, para mais, guardava momentaneamente toda a documentação identificadora e a auxiliar do meu estado de saúde, que usara pouco antes e ainda não guardara no sítio próprio, em desleixo impróprio…

Fiquei em choque, assistida pelos moças do café, que chamaram a polícia, subi a casa para descarregar as lágrimas, desci entretanto, enquanto o meu marido descera já para pagar o café e escutar o relato pelas donas do café que tinham reparado no encontro, fui à CGD dar baixa do multibanco, regressei e fui à polícia, onde o Artur logo apareceu, avisado pelo pai, que veio a seguir. Tudo moroso, porque estava outro casal participando o seu próprio assalto, e quando saí já entrara outra jovem para participar o seu, o que me irmanou com eles, na humilhação sofrida. Entretanto, o meu marido, que regressara a casa, telefonou a avisar que um casal de brasileiros encontrara o porta-moedas e o viera entregar, com todos os documentos e até algum dinheiro, só desaparecidas as duas notas de dez euros que levantara na véspera. Fiquei, naturalmente reconhecida aos brasileiros, e esta manhã, feitos os despejos e estando à mesa a fazer este rascunho das minhas dores, passou um sujeito acompanhado de duas mulheres, a vender calendários e Bordas d’Água que ainda me questionou, no sentido de lhe eu adquirir um Borda d'Água, mas a mãe da moça dona do café logo veio em meu socorro, nem precisei de erguer a voz, informando que na véspera eu fora roubada, o que bastante indignou o cigano e as respectivas acompanhantes, pelo paralelo subentendido, que logo explicou que nem todos somos iguais, isto é, nem todos os vendedores como ele, roubam. Para já, tenho quem me defenda no café, e por isso também, lhe estou grata, pois as histórias correm e os ciganos mais ainda, que se me perdoe o vocábulo do meu racismo indignado.

Vem este relato a propósito de um texto de João Miguel Tavares, do Público de 26 de Novembro, que tem por título “O caso Luísa Salgueiro, uma história muito mal contada”, que transcrevo, apenas para uma reflexão sobre a nossa maneira de ser portuguesa assim compassiva, que se verifica igualmente no caso por ele narrado, embora sejam outras, as suas ilações. Quanto a mim, é sobretudo a compaixão que guia os passos lusitanos, tanto os esmoleres de que sirvo de exemplo, como os das ligações amigáveis entre conhecidos que Luísa Salgueiro exemplifica - mau grado, repito, a explicação divergente de JMT - e daí que vivamos todos não direi na paz dos anjos, mas apenas nas coordenadas altruísticas do nosso bem-fazer, conquanto umas visivelmente mais parolas do que outras.

O texto de João Miguel Tavares:

Opinião

O caso Luísa Salgueiro: uma história muito mal contada

A história de que Luísa Salgueiro foi constituída arguida apenas por ter nomeado uma chefe de gabinete sem concurso público é areia atirada para os nossos olhos.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 26 de Novembro de 2022, 0:00

Durante 15 dias, aquilo que ouvimos foi isto: o Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, num momento de manifesto delírio persecutório, decidira constituir arguida a presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro, por ter nomeado sem concurso a sua chefe de gabinete.

A indignação parecia justificada e o erro escandalosamente grosseiro, já que a lei prevê que um político possa escolher de forma discricionária os elementos do seu gabinete. A notícia foi divulgada pela revista Sábado, e vinha acompanhada de reacções de Luísa Salgueiro: “Como é que é possível um procurador dizer isso? Mas algum autarca alguma vez abriu concurso para escolher o chefe de gabinete?”

Uma legião de políticos e de comentadores apressou-se a sair em defesa de Luísa Salgueiro. Ribau Esteves, presidente da Câmara de Aveiro pelo PSD, declarou: “Este processo da Luísa Salgueiro não tem qualquer sentido. A lei é clara. Sou presidente de câmara há 25 anos, já nomeei sete vezes chefes de gabinete, adjuntos e secretários e sempre de acordo com a lei. Onde é que está a dúvida?” Isilda Gomes, presidente da Câmara de Portimão pelo PS, disse: “Se ela é arguida, eu também sou. Eu e todos os presidentes de câmara.” Francisco Assis acrescentou: “Estamos perante um grave atentado ao funcionamento do Estado de direito perpetrado por um procurador da República.”

Só que, desde o início, essa é apenas metade da história. Facto: o despacho do procurador refere que o “recrutamento da chefe de gabinete, sendo cargo de direcção intermédia, deveria ter sido precedido de concurso público”. É um erro claro de interpretação da lei, que deveria ter sido prontamente corrigido. Não foi. Mas o auto de constituição de arguida explica a outra metade da história, que ficou fora dos comentários sobre este caso – e que é a metade fundamental. Luísa Salgueiro é suspeita de, “abusando dos poderes e/ou violando os deveres inerentes às suas funções”, ter nomeado Marta Laranja Pontes como sua chefe de gabinete “por influência conjugada de Joaquim Couto, Manuela Couto e José Maria Laranja Pontes”.

É falso o que Luísa Salgueiro disse aos jornalistas: não, a sua “constituição como arguida” não se refere “exclusivamente à nomeação” da sua chefe de gabinete; e, não, essa nomeação não “foi feita da mesma forma que é feita por todos os presidentes”. Aquilo que o Ministério Público alega é que existe um triângulo de influências constituído pelo casal Joaquim Couto (histórico socialista) e Manuela Couto (empresária), por José Maria Laranja Pontes (antigo presidente do IPO do Porto e pai de Marta) e por Luísa Salgueiro.

O IPO do Porto contratou serviços (duvidosos) de comunicação a uma empresa de Manuela Couto por 360 mil euros, e esta terá intercedido para que Marta Laranja Pontes ascendesse a chefe de gabinete de Luísa Salgueiro. Segundo o Observador, “existem indícios de que a própria empresária terá garantido a uma sua funcionária um dia depois da nomeação que a subida de posto da filha do presidente do IPO do Porto só teria acontecido após a alegada influência de Joaquim Couto junto de Luísa Salgueiro”.

Se é verdade ou mentira, cabe à Justiça apurar. Mas a história de que Luísa Salgueiro foi constituída arguida apenas por ter nomeado uma chefe de gabinete sem concurso público é areia atirada para os nossos olhos. Ainda por cima, com o patrocínio de muito boa gente que deveria ler melhor as notícias antes de opinar sobre elas com tanto fervor.

O autor é colunista do PÚBLICO

 

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