Julgo que se trata também de um problema
de exibicionismo corpóreo, malandro e tosco dos nossos tempos de liberdades, em
grande parte, incondicionais. Irracionais, certamente. Um maravilhoso trabalho
de MIGUEL GRANJA, já de alguns meses, mas que nos ilumina as mentes, e por isso
lhe estamos gratos e ao OBSERVADOR, que o recolocou.
Um mundo (re)infestado de demónios: o
progressismo é um neoprimitivismo
À medida que nos tornamos mais
progressistas, tornamo-nos também, inevitavelmente, mais primitivos – e,
portanto, mais violentamente intolerantes e mais tolerantes à violência.
MIGUEL GRANJA Autor
convidado da Oficina da Liberdade
OBSERVADOR, 08
jul. 2022, 01:1320
Compreender
um fenómeno – natural ou social – é sempre, em certa medida, desencantá-lo.
Desenfeitiçá-lo. Despi-lo da cápsula mágica que o camufla e com que hipnotiza.
Quando uma criança desmonta um brinquedo para compreender o mecanismo do seu
funcionamento, está de certa forma, mesmo que inconscientemente, a desencantar
o brinquedo: analisar é, de acordo com a etimologia grega, desmontar, decompor,
desfazer, soltar, partir em pedaços (já Descartes, no Discurso do Método,
impunha à análise a tarefa de dividir um problema em tantas partes quantas as
possíveis e necessárias à sua resolução: “diviser chacune des difficultés
que j’examinerais, en autant de parcelles qu’il se pourrait, et qu’il serait
requis pour les mieux résoudre”). Quando tentamos perceber um truque de
magia (como é que a mulher serrada ao meio não foi realmente serrada?; como é
que o ilusionista que atravessou a parede não atravessou realmente a parede?),
estamos no fundo a tentar “desmagicizar”, por via da decomposição analítica, o
fenómeno encantado. Da decomposição do brinquedo pela criança à
dissecação do sistema solar por Copérnico, vai uma diferença respeitável,
certamente – mas de grau, não de natureza. Compreender é desencantar.
Este “desencantamento do mundo” – expressão com que Max Weber descrevia o processo de
racionalização crescente das sociedades modernas e cujo termo alemão, Entzauberung,
indica a remoção (ent-) da magia, do feitiço ou do bruxedo (Zauber);
portanto, a acção de remoção de um encantamento –
vem acompanhado, não por acaso, de uma diminuição do recurso
colectivo à violência expiatória: onde
buscamos causas, não buscamos culpados; e onde não buscamos culpados, não
buscamos reparações; e onde não buscamos reparações, não buscamos penitências;
e onde não buscamos penitências, não buscamos linchamentos. Compreender o mundo e renunciar à
demonização são uma e a mesma coisa: compreender o mundo é, portanto –
invocando um famoso título de Carl Sagan –, desinfestá-lo de demónios.
Tornamo-nos menos violentos
sempre que somos capazes de renunciar ao recurso primitivo à superstição (por exemplo, danças da chuva ou sacrifícios
humanos) e, ao invés, de atribuir uma explicação racional a
fenómenos que, eventualmente, nos são prejudiciais ou, mesmo, ameaçadores da
nossa sobrevivência colectiva (por
exemplo, secas ou pestes), recusando assim ao expediente da busca de
demónios qualquer valor explicativo do real (a principal prova do poder
demoníaco é sempre justamente ser um poder oculto, que não se mostra, que se
furta à prova, residindo aí precisamente, nessa ocultação da prova, a prova de
si mesma: a falta de prova é a prova da prova). Desencantar o
mundo é compreender que nem a peste que se abateu sobre Tebas foi
causada pelo parricídio e pelo incesto de Édipo nem a Peste Negra do século XIV
foi causada pelo envenenamento dos poços por parte dos judeus: compreender as
causas reais das pestilências é ao mesmo tempo renunciar ao degredo de Édipo e
à caça aos judeus. A ética também é, em última instância, uma forma de
epistemologia.
Em grande medida, o aumento e a normalização da
violência política (física e verbal) a que temos assistido nas sociedades
modernas (lembremos, desde logo, o pesadelo hobbesiano que acossou as ruas
americanas no ano eleitoral de 2020 e a complacência rousseauniana – “mostly peaceful protests” – que
lhe foi genericamente dedicada) podem ser explicados a partir da observação de
um mundo (re)infestando-se de demónios. O
recrudescimento da violência expiatória e a expansão da mentalidade
progressista não são processos sociais independentes: pelo contrário, estão
ambos estreitamente vinculados ao regresso fulgurante do primitivismo. À medida
que nos tornamos mais progressistas, tornamo-nos também, inevitavelmente, mais
primitivos – e, portanto, mais violentamente intolerantes e mais tolerantes à
violência. Abdicando dos procedimentos racionais em favor dos ritos
sacrificiais, o progressismo não busca a explicação mas a expiação; não busca a
inquirição mas a inquisição; não busca a luz mas a pira; não busca a Academia
de Platão mas o Tophet de Moloch.
Uma das formas mais claras de
demonstrar a validade desta tese consiste em observar como o progressismo
recorre sistematicamente a narrativas baseadas em maléficos poderes ocultos
cuja ausência de evidência, evidentemente infalsificável, é a sua própria
evidência: onde
Descartes aconselhava partir, o progressista amalgama (a
estatística, em mãos progressistas, é praticamente indiscernível da exegese de
entranhas animais); e
onde aconselhava o necessário e o possível, o progressista impõe o inefável e o
infalível. Na verdade, onde há
fenómenos sociais cujas causas são explicáveis racionalmente, o progressista,
para quem os rigores do raciocínio lógico são infinitamente menos atraentes do
que os ardores da pregação emocional, vê demónios actuando às ocultas, servos
demoníacos de amos demoníacos: a “masculinidade tóxica”, como outrora o envenenamento dos poços; o “supremacismo branco”,
como outrora a depravação homossexual; o “apocalipse climático antropogénico”, como outrora a fúria punitiva divina. Provas? Nenhuma. Tudo
isto é “sistémico” e “estrutural”, vocábulos-abracadabra de uma
gramática-grimório cuja função (performativa e não constativa, para usar uma
célebre distinção de J.L. Austin) é, secularizando o ocultismo, furtar-se à austeridade
do empirismo e, por via de uma teia infinita de interseccionalizações [sic],
fazer convergir todas as opressões imagináveis (e, sobretudo, imaginárias) para
o funil identitário de uma única pele demoníaca, uma única prole demoníaca, um
único genital demoníaco: “masculinidade tóxica”, “supremacismo branco”, “racismo
sistémico”, “heteropatriarcado”, “neofascismo”, etc., não são, bem-entendido, nomes de problemas sociais: são nomes de demónios: nomeá-los é invocá-los,
invocá-los é exorcizá-los, exorcizá-los é persegui-los.
O famoso adágio
de Alexandria Ocasio-Cortez (“There’s a lot of people more concerned about
being precisely, factually, and semantically correct than about being morally
right.”) ou a famosa tese de Joacine
Katar-Moreira (“Um negro pode discriminar e ser preconceituoso com um branco, mas
não pode ser racista com ele, porque este último não tem estruturas
(históricas, políticas, económicas e sociais) que o oprimam com base no seu
fenótipo.”) constituem
dois exercícios de delírio progressista cujo prestígio intelectual alcançado, e
sempre crescente, é apenas compreensível à luz do actual regresso, na versão
“woke”, do primitivismo (de
resto, a tese de Joacine é uma aplicação exemplar do adágio de Alexandria).
No mundo infestado de demónios em que habitam AOC e JKM (mas cujo contágio
necromântico pode capturar cabeças aparentemente insuspeitas de simpatias
ocultistas como Boris Johnson que, provavelmente não tendo lido a biografia
sobre Churchill que provavelmente não escreveu, atribuiu a
invasão da Ucrânia pela Rússia ao facto de Putin não ser uma mulher);
no mundo infestado de demónios em que habitam – dizia eu –, a
mulher foi realmente serrada ao meio e o homem atravessou realmente a parede.
Não há, não pode haver, outra explicação. Demónios. Um mundo infestado de
demónios.
Para que o delírio explícito se torne prova irrefutável, basta que o
contágio delirante se primitivize, isto é, se comunique boca-a-boca (os mantras
alucinatórios são quase sempre doenças oralmente transmissíveis): nas
televisões, nas rádios, nas universidades, nos concertos, nos cinemas, gera-se
um efeito de bola de neve a partir do qual cada um deduz a sua convicção na
existência de demónios da convicção dos demais que, por sua vez, deduziram a
sua exactamente da mesma forma encantatória, duplicatória e contaminatória. A crença (inabalável e maioritária) em demónios não
exige outra evidência de si que não a concordância colectiva que ela própria
cria e replica. Parecendo
que não, uma seita de alienados a lançar à água uma mulher acusada de
bruxaria para testar se ela flutua também pode ser considerada uma comunidade
epistémica. Parecendo que não, um grupo de especialistas a falar na televisão
sobre o nexo entre a crise climática e a violência de género, ou entre a crise
climática e o “racismo ambiental”, também pode ser considerado uma seita de
alienados. É
a unanimidade da crença que cria a evidência e não o contrário. Perguntem à mulher
afogada que afinal não era bruxa.
E é justamente esta concepção
demonológica do real que está na base da histórica predisposição progressista – da Paris de 1793-94 à Minneapolis de 2020, passando
pela São Petersburgo/Petrogrado de 1917 – para o recurso à violência. Afinal, como, senão recorrendo à violência, se
combatem demónios? Como, senão recorrendo à guilhotina, à bala ou ao fogo?
Acaso foi através da persuasão dialógica ou da troca epistolar que São Jorge da
Capadócia venceu o dragão de Silene? Para trespassar um dragão não basta ter
uma espada: é necessário, antes de tudo, inventar o dragão (não por
acaso, um dos capítulos do livro de Sagan é intitulado “The Dragon in My
Garage”). Não é, portanto, de admirar que o progressismo,
vanguarda do retrocesso, seja sempre contemporâneo do regresso dos autos-da-fé,
ainda que as suas modalidades modernas se expressem em engenhos também eles
mais hodiernos (e desmaterializados, como convém a adeptos do incorpóreo): “queimar” um “facho” na “praça pública” é uma
expressão que extrai o seu sentido das fogueiras inquisitoriais, também elas
ocorrendo em praças públicas diante de uma multidão – ontem usufrutuária
presencial, hoje usuária digital – sedenta, hoje como ontem, de capturar e
punir demónios, sobretudo quando são invisíveis: anjo das trevas que escapa ao
olho não escapa à labareda. A distinção entre o Santo Ofício
e a “cancel culture” é, também aqui, como a criança e Copérnico, de grau, não
de natureza.
Se
a regra cartesiana da evidência
era: “jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não
conhecesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a
precipitação e a prevenção, e de nada incluir nos meus juízos que não se
apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito que eu não tivesse
nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida” – a regra
progressista, isto é, primitivista, é: jamais acolher alguma coisa como
verdadeira que eu não subordine forçosamente à ideologia, isto é, evitar cuidadosamente
a realidade e os factos, e nada incluir nos meus juízos que não se apresente
tão vago e tão indistintamente ao meu espírito que eu não tenha nenhum
obstáculo para pô-lo ao serviço do preconceito. Também isto, não duvidem, é um
discurso do método. Descartes, bem ou mal, com sucesso ou sem ele, pretendeu
superar o “demónio da dúvida”, usando a própria dúvida como método de superação
da dúvida. Os Descartes modernos e primitivistas, pelo contrário, não pretendem
a superação, mas a supressão da dúvida. Não pretendem um método racional contra
o engano de “génios malignos”: pretendem, como os hierofantes em que se
inspiram, um mundo de enganos reinfestado de demónios.
Os
pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna
poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da
Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade
sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que
querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade
e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá
chegar.
OFICINA DA LIBERDADE POLÍTICA RACIOCÍNIO INTELIGÊNCIA COMPORTAMENTO SOCIEDADE FILOSOFIA POLÍTICA
COMENTÁRIOS (De 20)
Armando Azevedo, 08/07/2022: O Miguel Granja é um dos muito
poucos que me fazem ainda andar por aqui no Observador. Mais uma pérola!
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