Quando os princípios morais despegam.
O ano da guerra
Os ucranianos dão-nos o mais sensível
dos exemplos do que é o amor da liberdade e de algo que antes tínhamos uma
notória dificuldade em perceber na sua plena dimensão: o patriotismo.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 29
dez. 2022, 00:19
O
artigo de hoje – exceptuando, é claro, o post scriptum – é um pouco uma
revisitação de alguns dos aspectos que mais me ocuparam o espírito desde a
invasão russa da Ucrânia, e isso logo desde um artigo publicado a 24 de Fevereiro, dia
do início da invasão, mas obviamente escrito ainda a 23. Os tópicos são
organizados de forma contínua a partir do fio condutor da ideia de má-fé.
Eles têm menos a ver com os desenvolvimentos da guerra do que com a recepção,
caseira e não só, dos argumentos dos dois lados. Mais precisamente,
interessou-me, desde o princípio, perceber o tipo de argumentação daqueles que,
de modo diverso mas convergente, exprimiram simpatia pela posição de Putin e
manifestaram desprezo pela de Zelensky e dos ucranianos.
2022
foi o ano da guerra, uma guerra de conquista, à antiga, em plena Europa. Houve
agressor e um agredido, um invasor e um invadido. O invasor foi brutal, não hesitando perante nenhuma
selvajaria nem nenhum massacre, tratando o invadido como uma raça inferior que
devia, se necessário, exterminar. O invadido foi heróico, conseguindo
resistir a uma força muito superior e infligindo-lhe, no plano militar, várias
derrotas importantes. De
um lado, a barbárie; do outro, o desejo da civilização. De um lado, a Rússia; do outro, a Ucrânia. De um
lado, Putin; do outro, Zelensky. Isto é o óbvio, aquilo que é manifesto,
patente, tanto à consciência comum como àqueles que têm por obrigação pensar.
Está perante os nossos olhos, salta aos olhos – fura os olhos, como dizem os
franceses.
Esta
evidência merece ser repetida as vezes que for preciso. E são muitas, porque,
ao longo deste ano, ouvimos
vozes que militantemente a negam, que se declaram por ela insatisfeitos.
Tecnicamente, esta recusa da evidência é um traço próprio da má-fé, tal como
Sartre a analisou. O homem da má-fé, com efeito, redefine a verdade como “evidência
não-persuasiva”: “A má-fé captura evidências, mas encontra-se antecipadamente
resignada a não ser preenchida por essas evidências, a não ser persuadida e
transformada em boa-fé”.
É
muito instrutivo ver o processo através do qual a má-fé se
manifesta neste caso concreto, os meios através ela não se deixa persuadir pela
evidência. O
primeiro, e o mais decisivo, é a inversão da relação entre agressor e agredido.
Assim, contrariamente às aparências, não foi a Rússia que agrediu a Ucrânia.
Foi a Ucrânia, joguete dos Estados Unidos, da NATO, do Reino Unido e da União
Europeia (ela própria um joguete dos Estados Unidos), que, provocando a Rússia,
a obrigou a reagir, defensivamente, à provocação ucraniana. É como se se
dissesse que fora Abel a matar Caim e não o inverso. O fundamento desta inversão repousa, como
é bom de ver, naquilo que se poderia chamar o princípio da causalidade única. Há um único agente verdadeiro neste nosso mundo:
os EUA, que contam com várias correias de transmissão. Tudo o resto é
resistência a essa causalidade única, e esse estatuto garante uma inocência
primordial. Num sentido profundo, Putin não pode ser acusado de invadir a
Ucrânia, a sua
atitude foi puramente reactiva.
Isto
predispõe o homem de má-fé, que nega ser persuadido pela evidência, a, sem
paradoxo, aceitar, em maior ou menor escala, a mentira organizada em sistema do regime autocrático
de Putin, que
prolonga um velho método da defunta União Soviética, que por sua vez se
enraíza até em tradições czaristas. O discurso de Putin é todo ele uma
teia sistemática de mentiras, até ao mais ínfimo detalhe. A mentira não é nele
um acidente: é uma essência. Ela pode manifestar-se como uma alucinação do
passado com intenção política, como no célebre artigo de 2021, cujo
argumentário é, nos seus traços gerais, reminiscente do de Hitler para
justificar as suas primeiras conquistas (a questão da língua, etc.). Ou como na
utilização da expressão “operação
militar especial” em vez de
“guerra”. Ou de um número infinito de outras maneiras que
seria ocioso enumerar. A atitude vem já dos dias imediatamente prévios à
guerra. Um conhecido colunista do Expresso, por exemplo, poucos dias
antes da invasão, garantia ainda a pés juntos que a Rússia não invadiria a
Ucrânia, definindo a postura de Jens Stoltenberg como o mais execrável
“belicismo”: seria uma espécie de “Dr. Strangelove”. E com que
base? Putin havia declarado taxativamente que não tinha a mais remota intenção
de invadir a Ucrânia. A
aceitação inquestionada da mentira – e da mentira que salta aos olhos, tanto
mais que tem uma longa história precedente – é o complemento natural da recusa
da evidência persuasiva. É um pouco como nas teorias da conspiração: recusa-se
radicalmente a crença partilhada pela comunidade para aceitar ferozmente um
mecanismo explicativo absurdo sem qualquer assento na realidade observável.
Tudo
isto – toda esta actividade
ininterrupta da má-fé – é
engendrado por um entusiasmo negativo em relação aos EUA. Mas não convém
esquecer um elemento, por assim dizer, positivo, que é talvez mais poderoso do
que o entusiasmo negativo: o amor
fáctico pelo poder nu e brutal, de que Putin é um magnífico exemplo. Tal amor é uma paixão dominante em vária gente, da
direita à esquerda. Ele releva do desejo de dominação em estado puro, um facto
psíquico que, se formos freudianos, podemos fazer remontar ao inconsciente e
associar a um desejo de omnipotência. E é afim de um ódio à
democracia que habita, por vezes, os mais pacatos espíritos. Por mim, estou convencido que este aspecto é
fundamental. O desejo de dominação é um facto psicológico bem atestado que não
devemos em situação alguma subvalorizar.
Uma consequência directa deste amor pelo poder bruto é o desprezo
pelo sofrimento humano, ou, pelo menos, a suspensão das emoções associadas à
compaixão nos nossos corações. De uma certa maneira, é isto o mais chocante, o
que mais vai contra os sentimentos comuns e as intuições morais justas que
fundam a nossa concepção desinflacionada do bem e do mal. Como não padecer – sem ser pela proclamação de um
abstracto e vazio amor pela paz – com o sofrimento e a derrelição dos
ucranianos, sujeitos à pura barbárie da agressão russa? Há aqui, nesta colossal
falta de empatia, uma miséria humana – não convém nestes casos ser macio com as
palavras – que é o
produto do amor pelo poder nu e cru.
Sob
uma forma atenuada, esta paixão deixa-se ainda ver naqueles que se
comportam como os amigos de Job se comportavam.
Lembrar-se-ão que estes recomendavam a Job uma aceitação imitigada das suas
provações. Os novos amigos de Job fazem a mesma coisa aos ucranianos. Mesmo
quando não dizem que, para evitar o sofrimento, não deviam ter resistido à
invasão russa, aconselham-nos a cedências de vária espécie, em nome de uma
espécie de bom-senso espúrio.
Felizmente, os ucranianos não os
ouvem. Eles dão-nos o mais sensível dos exemplos do que é o amor da liberdade e
de algo que antes tínhamos uma notória dificuldade em perceber na sua plena
dimensão: o patriotismo. Como se
sabe, Deus, no fim do livro bíblico, reprova a atitude dos amigos de Job e
manifesta a sua compreensão por este. Esperemos que Deus não tenha mudado de
doutrina. A sobrevivência das nossas democracias está crucialmente em jogo.
PS. António Costa escolhe governantes calamitosos
sensivelmente com a mesma frequência com que os oligarcas russos caem de
janelas. Mas a sua roliça pose majestático-kitsch da merecidamente célebre capa
da Visão indica que ele se encontra tão longe de admitir
responsabilidade nestas trapalhadas como Putin de reconhecer publicamente a sua
nos fatais voos dos seus concidadãos.
Desta vez a coisa envolveu a TAP, que ele comprou com o nosso dinheiro por
motivos de fervente patriotismo e que se prepara agora para vender pelos mesmos
exactíssimos motivos. Pelo caminho, e com um igualmente indomável patriotismo,
meteu por lá não menos de 3,2 mil milhões de euros dos contribuintes.
Sugiro aos portugueses que façam uma vaquinha e
que fretem o último avião da TAP e enviem Costa, os seus ministros e os seus
secretários de Estado com uma passagem de ida sem volta para o Yemen, para aí
“encerrarem este capítulo da sua vida profissional”, “abraçando agora novos
desafios”. Ou então que peçam, para o mesmo fim, dinheiro emprestado à
ex-secretária de estado do Tesouro, um mero epifenómeno (mais um) do costumeiro
desmazelo irritado de António Costa: 500.000 euros – um terço do que a pobre
rica senhora queria para sair da TAP – devem chegar. Ou, ainda melhor, ao
próprio Costa. Quem nos arranca 3,2 mil milhões de euros com tanta
facilidade para satisfazer tão volúveis desejos de ter “caravelas voadoras”,
como disse num momento de intenso lirismo (a sua imagética poética já nos tinha
dado as surrealistas “vacas voadoras” oferecidas a Alexandra Leitão), pode-se
bem permitir este pequeno luxo. E, na viagem, terá tempo para se perguntar:
“Quem foi pior? Eu ou ela?”.
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