Neste caso, não com os que hoje nos governam, mas com os que se deseja impor futuramente, num país que nunca se amou e de onde se fugiu, por cobardia, não por ideologia, nos tempos da guerra. A merecer as palmatoadas de quem sobre ele escreveu, e foram muitos os comentadores, para além do historiador João Pedro Marques. Nojo, é a palavra que a mim me acode - do discurso, da figura.
Alvos a abater: o Infante e o Padrão
É triste ver alguém com a posição de Álvaro Vasconcelos
perfilhar o wokismo, mesmo não sendo surpreendente face ao seu percurso e ao
facto de haver gente woke de todas as idades, qualidades e feitios.
JOÃO PEDRO MARQUES
Historiador e romancista
OBSERVADOR, 21 dez. 2022,
24:1732
A
propósito do recente lançamento de um livro seu, Álvaro Vasconcelos, nome conhecido na área dos estudos
estratégicos, deu
uma entrevista ao jornal Público que tem várias passagens de pasmar. Não estão em
causa as recordações africanas do entrevistado. Elas são o testemunho de uma
pessoa que viveu parte da sua infância e adolescência em Moçambique e que valem
justamente enquanto tal, isto é, como a visão pessoal de certos acontecimentos
a que se assistiu ou de que se ouviu falar. É verdade que o cenário que
Álvaro Vasconcelos descreve é uma espécie de África Minha de
pesadelo, com mulheres sistematicamente violadas, negros espancados na via
pública, escravatura e muitas outras violências; e é também verdade que essa
descrição não coincide, muito pelo contrário, como o próprio, aliás, reconhece,
com as recordações de outros brancos que viveram em Moçambique na mesma época.
Mas isso não a desvaloriza. Estamos perante o testemunho de uma pessoa com uma
sensibilidade, experiência e percurso próprios. Nessa óptica e nesse âmbito a
entrevista é informativa e interessante.
Mas
quando essa pessoa começa a falar da História de Portugal e da afirmação e
preservação da memória de um povo no seu espaço público, a entrevista torna-se
confrangedora, assente em opiniões surpreendentemente superficiais e pouco (e
mal) informadas, quando não absurdas. Tudo isso acontece
porque o entrevistado está a travar uma guerra ideológica e tem alvos
específicos a abater.
Álvaro
Vasconcelos começa por afirmar que em Portugal o racismo se apoia no
lusotropicalismo, isto é, numa narrativa colonial que diz ser “completamente
falsa”. Afirma, depois, que essa narrativa está patente “nos monumentos de
Lisboa, por exemplo, no Padrão dos Descobrimentos”, que tem, na frente, o
Infante D. Henrique. Passarei por cima das concepções — erradas a meu ver —
sobre a relação entre racismo e lusotropicalismo para me focar na
contestação do entrevistado à figura do infante. Álvaro Vasconcelos quer a
desconstrução da sua aura histórica, tarefa difícil porque em Portugal, na sua
perspectiva, há um culto desse personagem, “que por todo o lado é celebrado”, e
quando se toca nele “a reacção é brutal e não só daqueles que votam Chega”. Tal
reacção surpreende-o e — subentende-se — indigna-o porque na sua visão
incriminatória “o Infante D. Henrique (foi) o primeiro comerciante de escravos.”
Numa entrevista à RTP2 repetiu essa acusação em termos muito semelhantes, mas
ainda mais insólitos, considerando que “o Infante D. Henrique foi o primeiro
esclavagista.”
Eis-nos
perante afirmações bombásticas, mas completamente falsas. “Primeiro comerciante
de escravos”? “Primeiro esclavagista”? É surpreendente que Álvaro
Vasconcelos suponha que a história da escravatura começou no século XV, quando
o Infante viveu, e que julgue que não havia escravos — milhões de
escravos — na Antiguidade e na Idade Média e pessoas — milhões de pessoas — a
comprá-los e a vendê-los. É surpreendente, também, que não saiba que aqueles
escravos negros que no século XI, por exemplo, afluíam ao Cairo ou a Bagdade,
tendo atravessado o deserto do Sara ou o Índico, eram levados por comerciantes de
escravos muçulmanos, antes ou muitíssimo antes de o Infante D. Henrique ter
vivido. Surpreendente, ainda, que ignore que a escravidão e o comércio de
escravos também já se praticavam em Portugal e noutras partes da Península
Ibérica muito antes do Infante haver nascido (sem termos de recuar ao Portugal
romano ou árabe, bastará lembrar que os escravos muçulmanos se vendiam e
compravam, e que no início do século XIII, por exemplo, se venderam em Lisboa
três mil escravos mouros provenientes da conquista de Alcácer do Sal).
Surpreendente, de novo, que desconheça que mesmo o comércio de escravos de
proveniência ultramarina — das Canárias, nomeadamente — começou um século antes
do tempo do infante. E estranho, por fim, que não perceba que mesmo que se
considerasse, por mera hipótese académica, que haviam sido os descobridores
portugueses a iniciar tão horrível prática, ainda assim seria desajustado
considerar o infante como “comerciante de escravos” no sentido estrito da
expressão, pois foi tão só alguém que beneficiou da escravização de pessoas (ou
da sua venda) porque lhe cabia um quinto do que fosse obtido pelos seus homens,
como era prática do tempo e não apenas em Portugal.
Será possível que Álvaro
Vasconcelos não conheça um único desses factos que refiro? Possível será, mas é
muitíssimo improvável. O que
sucede — suspeito eu — é que Álvaro Vasconcelos apagou inconscientemente todos
esses acontecimentos do seu espírito. Por duas razões diferentes. Em
primeiro lugar porque quando fala em escravos apenas considera os negros
escravizados por portugueses, todos os outros de origens e epidermes diferentes
são erros de casting no filme do seu pensamento e, por isso, podem
ser removidos da história narrada pelo entrevistado. Em segundo lugar, e mais
importante, porque Álvaro Vasconcelos pretende conotar negativamente o Infante
D. Henrique, anatemizando-o como primeiro prevaricador. O interesse é demolir,
denegrir, a figura do infante porque ela simboliza o primeiro impulsionador
daquilo a que chamamos Descobrimentos, um núcleo central da memória desta
nação; e, depois, levar esse infante demolido, às escolas e às cabeças dos
alunos do secundário — um intuito que Álvaro Vasconcelos assumiu, candidamente,
na RTP2. Assim, atacando a imagem do Infante D. Henrique, certeiramente
identificado como importante baluarte da nossa memória colectiva, se
desconstruirá a narrativa histórica impregnada do tal lusotropicalismo —
narrativa que, segundo Vasconcelos, abriria “caminho à extrema-direita.” Seria, então, urgente aquilo que designa por “descolonização da nossa narrativa histórica” e
na primeira linha dessa “descolonização” estaria o derribamento do infante.
Este desígnio é terrível por
perverter a verdade. O que haveria
que ensinar aos alunos do secundário é que o tráfico de escravos foi uma
actividade cuja origem se perde nas profundezas do tempo, e que foi
permanecendo na história humana, século após século, persistentemente, muito
antes de os portugueses se terem metido a praticá-la. Afirmar que o Infante
D. Henrique foi o primeiro comerciante de escravos é pura e simplesmente
aberrante. Não há nessa afirmação um grama de seriedade histórica, apenas pura
e dura ideologia. É lamentável que Álvaro Vasconcelos difunda essa falsidade
e é melancólico ver alguém com a sua idade e conhecimentos a dar voz
e corpo à agenda, ao radicalismo e ao enviezamento da ideologia woke.
Enviezamento
que, aliás, não fica por aqui. O Padrão dos Descobrimentos, como
símbolo da maior façanha ou empreendimento histórico deste país em que vivemos,
é outro dos seus alvos. Vasconcelos
considera que esse monumento “é obviamente uma ofensa aos africanos.” Não nos
explica por que razão o seria nem porquê apenas aos africanos e não igualmente
aos asiáticos e aos ameríndios. O que deixa bem explicado é o que gostaria
que se fizesse dele. De facto — confessou-o na entrevista à RTP2 —, não se
“importava nada que desaparecesse”, mas atendendo ao tal lusotropicalismo que
alegadamente infectaria ou aprisionaria as débeis mentes dos pobres
portugueses, acha esse objectivo “irrealista”. Por isso, contentar-se-á com a
construção, ao lado do dito Padrão, de “um (outro) padrão que contrastasse com
a narrativa dos Descobrimentos, que falasse das lutas de libertação nacional
(africana), do sofrimento que foi a escravatura…”
Trata-se
de uma tentativa de anular a carga simbólica daquele monumento específico, e a
sua importância para uma certa ideia de Portugal, mas, olhando mais para
adiante, é, obviamente, uma ideia peregrina que, a ser tomada à letra, nos
obrigaria a construir ao lado de cada monumento uma espécie de anti-monumento,
como uma fotografia e o seu negativo. Ao lado da estátua do Marquês de Pombal,
por exemplo, deveria implantar-se uma outra ou, pelo menos, uma inscrição, que
lembrasse as muitas violências que Pombal patrocinou ou a que deu cobertura. E,
claro, em coerência, estes princípios de garantia do constante contraditório
memorialistico ao nível da monumentalidade, da estatuária, etc., deveriam ser
adoptados universalmente. Ao lado do Arco do Triunfo os franceses deveriam
construir um outro arco evocando o sofrimento dos povos que os exércitos
napoleónicos dizimaram; ao lado das pirâmides de Gizé os egípcios deveriam
erigir um monumento às multidões de escravos que as puseram de pé; e assim
sucessivamente para a generalidade dos monumentos que existem por esse mundo
fora.
Trata-se de
uma concepção pueril e absurda, mas, ao mesmo tempo, megalómana como todas as
ideias milenaristas, porque atribui aos que a perfilham e difundem a função
quase divina de, por intermédio da figuração e da simbologia — isto é, da
monumentalidade —, pôr equilíbrio no mundo e corrigir os injustiças passadas.
Trata-se, em suma, de uma ideia woke.
Já
disse acima que é triste ver alguém com a posição de Álvaro Vasconcelos
perfilhar e divulgar as metas do wokismo, ainda que não seja surpreendente
atendendo ao seu percurso e ao facto de haver gente woke de todas as
idades, qualidades e feitios. Verdadeiramente surpreendente é a forma como
distorce ou amputa o conhecimento histórico e como procura menorizar a acção
histórica do homem branco. Um outro exemplo, para terminar. Vasconcelos
afirmou, na entrevista do Público, que “os ideais da Revolução francesa —
igualdade, liberdade, fraternidade — foram um grande progresso da humanidade.
Apesar disso, não se dava a igualdade, liberdade, fraternidade aos povos das
colónias.” Ora, não é exactamente assim. Logo no início da Revolução, a 4 de
Abril de 1792, a República Francesa concedeu igualdade de direitos políticos
aos homens livres negros ou mestiços, e, cerca de ano e meio depois, emancipou
os escravos. O facto de adiante, já na era napoleónica, as coisas terem
revertido, não apaga aquilo que havia sido feito pelos revolucionários
republicanos e que ficaria como um farol capaz de guiar os esforços
igualitários posteriores.
HISTÓRIA
CULTURA POLITICAMENTE CORRECTO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 32)
Américo Silva: Possivelmente Álvaro
Vasconcelos foi contagiado pelo síndrome do livrinho para vender, tal como o
Luís Rosa e muitos outros antes dele. A primeira vez que me apercebi desse
síndrome, foi quando o famoso padre da Lixa invadia o mercado com os seus
livrinhos na visita dos papas.
Lourenço de Almeida: Parece-me óbvio que o Álvaro Vasconcelos é apenas mais um
complexado mentiroso, que se preocupa com o Infante de há 500 anos que lhe faz
sombra mas não se incomoda com os "libertadores" de Angola e
Moçambique cujas acções levaram directamente à morte de 2 milhões de pessoas e
a atrasos civilizacionais que fazem com que muito milhões vivam miseravelmente
e morram muito mais novas do que se morre no resto do mundo. Talvez devesse vir
a Angola ou a Moçambique ver quantos "escravos" há actualmente e quem
são os seus senhores, para se deixar de parvoíces! José Pinto
de Sá: Vasconcelos foi um dos
principais dirigentes do PCP(m-l) e da AOC, o único grupo maoísta português
reconhecido pelo Partido Comunista da China, ou seja, designado como seu
representante oficial em Portugal. Já em 1975 a AOC propunha a substituição da
esfera armilar na bandeira portuguesa pela estrela vermelha do
internacionalismo proletário (chinês) a encimar o castelo de Guimarães... Tristão: Esta guerra total ao ocidente que Douglas Murray descreve tão
bem no seu livro, tem como um dos seus principais objectivos desconstruir,
pedra sobre pedra, a história europeia fazendo dela a origem de todos os males
na terra, ou seja, ficarmos presos num ciclo de eterna punição. O
wokismo no seu melhor. Temos o dever e a obrigação, cada um de nós, de
estar devidamente informados para travar esta guerra. No relato que o João
Pedro Marques faz, para além de toda a narrativa absurda do meliante, o que
também me espantou muito foi que afirmações deste calibre não sejam
imediatamente contestadas pelo jornalista de serviço, deixando assim passar em
claro autênticas enormidades sem serem expostas ao ridículo. O Infante Dom
Henrique ser o primeiro comerciante esclavagista não lembra ao mais ignorante
entre os ignorantes, merece imediata punição 🙂 José
B. Dias: Quando os factos não servem à
Nova História ... criam-se uns novinhos em folha! O que nunca pode ser posto em
causa é a narrativa do racismo!
Maria Augusta Martins: Cada vez percebo menos. Há 50 anos os povos das ditas províncias ultramarinas nelas viviam
mais ou menos sossegados tirando algumas surras de cavalo marinho aplicadas
como correctivo de asneiras feitas (tal como cá na Metrópole). Veio a dita
libertação, expulsaram os colonos, maioritariamente brancos, mas não só, pois
também vieram pretos e indianos. Passou-se uma geração e mais um pouco e
os filhos e os netos (especialmente estes) dos desgraçados colonizados fogem a
sete pés das amplas liberdades que as suas pátrias lhe proporcionam e vêm viver
e reproduzir-se na terra de quem tão "violentamente os escravizou".
Ei-los por toda a nossa geografia! Não consigo entender e cada vez vejo mais
descendentes desses povos por cá. Será defeito meu? António de
Mendonça: E porque é que ele não volta para Moçambique e averigua o que se
passa na zona de Cabo Delgado e arredores? JOSÉ MANUEL: até é possível que o
Vasconcelos tenha problemas de consciência, por alguma coisa que ele ou a
família tenham feito em Moçambique, mas eu que nunca lá fui e todos os outros
que nunca lá foram ou lá estiveram e não tiveram essas práticas não temos nada
a ver com a sua má consciência. Curiosamente, ignoram e nada fazem contra
a escravatura praticada nos dias de hoje, tanto em alguns países africanos,
como nos países de leste ou asiáticos, exercida pelas suas amadas pátrias
vermelhas sobre os seus vizinhos subjugados e obrigados a trabalhar para os
kamaradas, razão para tantas invasões... Diogo
Araújo Dantas: Muito
bem. Pobre
Portugal: É assim que estamos: para os jornalistas e políticos, “verdade” e
“seriedade histórica” são os inimigos a abater. Maria Nunes:
Mais um a querer
impor a ditadura do pensamento. No fundo um ignorante e um pequeno ditador, que
nem um mínimo de História da escravatura sabe. Um incompetente.
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