Na conjugação entre o
pensamento da harmonia, e o discurso do brilho, sempre salientes em MJA.
Assim foi o registo deste Papa a falar
para Portugal
A conversa fluía, fluía, na
proximidade, na substância, na verdade. Servida sobretudo – e eis a essência –
por um fecundo caminho religioso, uma notável solidez teológica, uma
indiscutível autoridade.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 07 dez. 2022, 24:204
1Há
muito tempo li uma frase de Virginia Woolf
que me interpelou tanto que desde então me sirvo dela como um mandamento e uma
inspiração. Dizia a escritora que “nada acontece até ser contado”. De facto, que seria das coisas da vida e das coisas
do mundo, sem os contadores?
Ora
então dias após ter visto a entrevista do Papa Francisco, Paulo Portas
perguntou-me com um decidido “isto vai ser publicado, não vai?”. Não
tinha pensado nisso, não tinha aliás pensado em mais nada senão em ser capaz de
estar à altura de me sentar diante do sucessor de S. Pedro, numa sala do
Vaticano. Uma vez a entrevista feita, achava que já tinha pensado tudo.
Não
tinha. E foi então que ao mesmo tempo surgia também em cena o João
Amaral a falar-me de fazer um livro e a
evocar editores e foi então que depois entrou em cena a Guilhermina
Gomes. E de repente estava ali um quarteto
improvável que ninguém juntara e que sem nunca falar entre si a 4 ou sequer a 3
estava disposto para este livro. O papel de cada um foi muito diferente, o
empenho, o mesmíssimo.
Parti
em dúvida para a empreitada: uma coisa era a televisão, outra um livro.
Quando porém li pela primeira vez a entrevista – isto é, atendendo apenas às
palavras – percebi de imediato como ela era quase como um rio a correr… O
que a televisão tão bem captara, deslizara afinal inteiro e intacto para o
papel, com a mesma panóplia de momentos: momentos de reflexão, de fé, de
sanção, de anúncio, de luz, de promessa e desafio. Mas também momentos de humor
e também momentos de grande surpresa.
O
que é outra maneira de dizer que não se podia deixar de meter mãos à obra. E
fez-se o livro. Deixando o registo deste Papa a falar para Portugal,
para a sua Igreja, para os portugueses, para todos nós. Muito particularmente para os jovens que o
acolherão em Agosto de 2023, na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. E deixando
também o contributo para um retrato de alguém que de imediato percebemos que
nos irá surpreender. É que por mais que tivesse mil vezes antecipado como
era o Papa Francisco, como se desenrolaria a conversa onde tudo o que sabia era
que a minha responsabilidade teria sempre que ser maior que a emoção, fiquei
a anos-luz da realidade. E a realidade foi antes do mais a descoberta de
uma proximidade invulgaríssima, servida por um sorriso logo aberto, a
simplicidade, o afecto, uma genuína curiosidade pelo outro, a surpreendente
ausência de pressa. E o humor, claro: não confessou Francisco que rezava
todos os dias a um santo da sua predilecção para nunca perder o humor?
2A
convivência logo gerada ali na Casa da Santa Marta antes e depois da
entrevista, foi tão particular – tão amigável, natural, aberta, risonha – que
de repente, à despedida, me passou pela cabeça convidar o Santo Padre para ir
jantar connosco nessa noite ao Transtevere: parecia-me impossível que não
houvesse prolongamento. Mas pareceu-me possível que ele tivesse aceite.
Felizmente para o Santo Padre não houve nem uma coisa nem outra: nem
prolongamento, nem jantar…
Voltando à entrevista: ia ela nem
sequer a meio quando me apercebi que se criara um ambiente. Ou melhor, que fora
o próprio Papa que criara esse ambiente, esse clima onde a conversa fluía,
fluía, na proximidade, na substância, na verdade.
Servida sobretudo – e aqui chego à essência – por um fecundo caminho
religioso, uma notável solidez teológica, uma indiscutível autoridade, uma
decisiva capacidade de reformar. Falo de sabedoria, essa aprendida e depois amadurecida ao longo da sua
larga experiência como operário de Cristo. Encontrei um pastor que sem nunca se
afastar da disciplina institucional, sabe o que fazer nas marés de luz, ou
de esperança como nas de aflição ou sanção.
Conhece umas e outras e é por entre elas que conduz e apesar delas que
acredita. Não esconde a actual crise da Igreja mas troca a perturbação pelo
Espírito Santo, que tanto me evocou. Compreende os diversos ritmos, da
Igreja, acolhe os seus distintos andamentos. Ama a juventude que ele desafia a
transportar consigo de promessa um melhor mundo; percebe a fulcral importância
do Sínodo com o qual esteve sempre tão comprometido quanto empenhado. Elogia a
condição feminina numa das mais justas e luminosas homenagens à mulher ouvidas
no seu pontificado.
“A Igreja é feminina” voltou a dizer
aqui. E noutro passo, esta frase admirável: “uma mulher nunca abandona o que
está perdido”.
Resumo
da melhor forma citando o Padre Vasco no Prefácio, “as respostas do Santo Padre
são interrogações para nós”.
3Foi
enfim o encontro com um latino-americano chamado Jorge
Bergolio que, na primavera de 2013, mostrou
ao mundo crente e não crente que Francisco o Papa não seria incompatível com
Bergolio o jesuíta.
E continuaria na Santa Sé o que sempre fizera na sua Argentina natal:
levar os frágeis e fracos pela mão. Numa
igreja que ele sempre quis “em saída” e fazendo dela um “hospital de campanha”. Só perceberemos esta personalidade extraordinária
se também percebermos que Francisco, o Papa, nunca se poderia separar de
Bergolio, o Jesuíta. O pontificado teria obrigatoriamente de juntar os dois. Um
e outro servem o mesmo: Deus e a Igreja.
Dizem alguns que Francisco desconcerta? Desnorteia? Separa? Divide?
Não estou tão certa. Do que estou certa é que Cristo quando cá esteve não fez
outra coisa. E que dois mil anos e tantas marés depois a Igreja também cá está.
Adaptação
do discurso realizado na apresentação do livro “Francisco – O Caminho”
PAPA FRANCISCO IGREJA CATÓLICA RELIGIÃO SOCIEDADE LIVROS
LITERATURA CULTURA
COMENTÁRIOS (De 4)
Carlos Chaves: Caríssima Maria João Avillez, obrigado por mais este
seu livro, já incluí na minha “shortlist”. Uma “conversa” como descreveu só
pode acontecer quando a sensibilidade de ambos os interlocutores estão ao mesmo
nível. Um grande bem-haja por pôr a sua ao nosso serviço, à nossa disposição.
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