Que se desenrola com as sucessivas e
naturais ilações a respeito das brejeirices sentidamente “culturais” destes
tempos, que provocam, no extraordinário Mestre, o sorriso da ironia mas da
preocupação também, e nos põe a todos prostrados de veneração perante tal
aliança difusora de luz.
O marxismo, a partir de Raymond Aron
Para Aron uma das forças do marxismo,
além de ser a transposição e a caricatura de uma religião de salvação, é poder
ser explicado, tanto em 5 minutos, como em 5 horas, em 5 anos ou em meio
século.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 10
dez. 2022, 24:188
Raymond Aron, o importante pensador conservador liberal ou liberal
conservador do século XX, dizia que
uma das forças do marxismo era “poder ser explicado em cinco minutos, em
cinco horas, em cinco anos ou em meio século”. O mesmo Aron, num comentário
a L’Ère des Tyranies, de Élie Halévy, escreveria que “o comunismo
era a transposição e a caricatura de uma religião de salvação”.
Estes
dois comentários sobre o marxismo como pensamento e o marxismo como ideologia
são importantes para explicar o seu sucesso entre os intelectuais e as massas
do Ocidente e do mundo, durante o quase século e meio que vai do Manifesto
Comunista (1848) à queda
da URSS (1991). E até a persistência das suas ideias e princípios, a sua
extraordinária sobrevivência como ideologia à experiência e ao fim do
“socialismo real”.
As
relações e sobreposições entre Cristianismo e Marxismo foram tratadas sistematicamente por Alasdair
MacIntyre, um dos
pais da Nova Esquerda britânica (mais tarde arrependido e convertido ao
catolicismo), em Marxism & Christianity. MacIntyre, hoje nonagenário, foi um intelectual engagé e
controverso, com colaborações simultâneas em publicações como a New Left
Review e o Encounter.
Em
vários dos seus escritos lembrou as duas funções que a religião desempenhava
para Marx: por um
lado, confirmava a ordem política, ao “sugerir que a ordem era de certo modo
legitimada pela autoridade divina”; por outro, através da ideia e da esperança
no Paraíso post mortem, consolava os pobres e oprimidos com a felicidade
futura e desmobilizava-os para os combates deste mundo. Isto levara o autor de O Capital a
concluir que “a primeira condição para a felicidade do povo era a abolição da
religião”. E
na nova ordem comunista, naturalmente, a religião seria dispensável, já que
desapareceria a ordem capitalista – os opressores e os oprimidos – e até o
Estado viria a ser também dispensado.
Marx e o Sermão da Montanha
Outros
companheiros e discípulos de Marx escreveram sobre o assunto: Engels encontrava pontos comuns entre o primitivo
cristianismo “expressão religiosa de uma comunidade oprimida, lutando pela
emancipação”, e o movimento operário,
enquanto Kautsky se adiantava
para considerar que o cristianismo pré-constantiniano admitia que essa
sociedade ideal se podia realizar e concretizar neste mundo.
A
grande atracção popular e social do marxismo e do comunismo estiveram nessa
semelhança aparente com os ideais cristãos de justiça, de solidariedade e de
comunidade, expressos em textos evangélicos como o Sermão da Montanha, com a sua enumeração das bem-aventuranças.
Enquanto o liberalismo e o capitalismo confiam nas artes da
iniciativa privada e da mão invisível como elementos do progresso social e
garantes da liberdade e do desenvolvimento, o
comunismo proclamava a vontade de impor, recorrendo à força, uma ordem de
justiça que podia assemelhar-se à ordem cristã. Por isso, ainda hoje, quer entre os marxistas
sobreviventes, quer entre alguns cristãos, a ideia de assimilação ética destas
duas correntes aparece como normal, sendo a desconexão atribuída ao acaso, à
necessidade e a erros humanos de aplicação.
Esta percepção omite duas questões essenciais: primeiro, que Marx é um
seguidor do materialismo de Feuerbach
e ele próprio um materialista que nega a
categoria de “ser” a tudo aquilo que não é apreensível pelos cinco sentidos. Isto devia ser decisivo para congelar paralelos a
despeito das afinidades utópicas milenaristas manifestados, por exemplo, na
simpatia de Marx e Engels por Thomas Müntzer, a mais radical figura da dissidência
protestante, que chefiaria os anabaptistas e a revolta dos camponeses contra os
príncipes e que, depois da derrota, acabaria torturado e morto em Mühlhausen
pelos príncipes apoiados por Lutero.
No plano filosófico,
Marx e os marxistas consideravam-se herdeiros dos Iluminados e Enciclopedistas
do século XVIII, do racionalismo e do cientismo; e, consequentemente, atacaram,
proibiram e perseguiram as religiões, todas as religiões. Assim, tal como os republicanos franceses da Convenção
e do Terror, os discípulos de Marx, chegados ao poder, dedicaram-se a liquidar
sacerdotes e fiéis de toda e qualquer religião, visto que todas eram
desnecessárias
Pode dizer-se, com verdade, que os objectivos justicialistas do
comunismo foram também traídos ou corrompidos por alguns líderes comunistas,
humanos como quaisquer outros. Mas,
no caso do marxismo-leninismo, a própria natureza dualista da evolução social,
baseada na luta de classes, no conflito permanente de uma narrativa maniqueísta
em que os bons deviam exterminar os maus e as raízes do mal, nunca poderia
harmonizar-se com o cristianismo. Tudo isto
se tornou muito mais grave e violento nos socialismos reais, com a abolição da propriedade privada – logo de qualquer
base económica de independência face ao poder – e das religiões. Talvez por isso as ditaduras de esquerda, republicanas
e socialistas, tenham
sido, historicamente, muito mais repressivas e letais do que as de direita, à
excepção do totalitarismo identitário nacional-socialista. De
resto, qualquer regime ditatorial ou autoritário de direita, do fascismo
italiano ao salazarismo português, foi muito menos sanguinário que os seus
equivalentes comunistas, embora seguidores convictos ou arrependidos das
utopias e distopias comunistas continuem a proclamar a superioridade moral de
tais regimes – como se as experiências históricas, da URSS à China maoista, não
tivessem existido e alguém nos garantisse que os seus princípios, outra vez
postos em prática, teriam outro desfecho.
Da douta ignorância
Quanto
à notória facilidade de explicar rapidamente o marxismo, Aron concluía que “era
possível a quem não sabia nada de história do marxismo ouvir com ironia alguém
que tinha passado a vida a estudá-lo”.
Infelizmente, esta possibilidade estende-se, entre nós, a quase tudo –
não só ao marxismo mas também ao fascismo, ao liberalismo, ao capitalismo, ao
nacionalismo, à História de Portugal e até ao Império Romano e às Invasões
Bárbaras. Há gente que aprendeu tudo em cinco minutos – e não estão só nas
redes sociais e nas caixas de comentários, mas têm voz nos media populares
e de referência e nos debates públicos; gente que tem lugar cativo entre a
elite comentarial, dissertando e opinando sobre tudo, geralmente segundo as
regras do maniqueísmo dominante e dizendo mais ou menos o mesmo.
O marxismo tem a vantagem de
ser uma receita fácil, quase tão fácil como a explicação do mundo pelas
insídias do Demónio, para os primitivos, ou da economia pela mão invisível,
para os sofisticados. O mundo é
injusto e há duas classes: o
proletariado, que é explorado e a burguesia, que o explora; são os modos de produção e desenvolvimento das forças
produtivas que determinam as etapas do desenvolvimento histórico, feudalismo,
capitalismo, socialismo (com um período embaraçoso e inominado entre o feudalismo
e o capitalismo). Tudo se joga a partir de uma dogmática de categorias
estabelecidas modernamente pelo “marxismo analítico”, como a de Gerald Cohen
em Karl Marx’s Theory of History: A Defence.
Confesso
que sou um velho leitor de Marx, autor com quem convivo há mais de 60 anos e
que, confesso também, tem textos interessantes e por vezes até inesquecíveis,
na sua síntese provocatória – “o moinho de vento deu a sociedade do
suserano, o moinho a vapor dará a sociedade do capitalismo industrial”.
Mas esta relação entre forças produtivas e relações sociais, ou
seja, entre possibilidades tecnológicas, infraestruturas económicas e modelos
sociais determinantes das relações humanas, subordinada à economia, esqueceu a
política e a autonomia do poder político. Assim,
apesar das reservas do próprio Marx, sublinhando a necessidade da “prática
revolucionária” e o papel do proletariado para acelerar “o acontecer da
História”; apesar das reflexões de Gramsci sobre o Estado e o “aparelho
ideológico”, para muitos comunistas e anticomunistas o marxismo
acabou por ficar na versão da Vulgata, que é a do determinismo economicista.
Semelhante determinismo, quer na versão paradisíaca dos comunistas
quer na versão pessimista dos anticomunistas, tem a vantagem de ser inelutável,
já que a História e as forças mais ou menos cegas que a conduzem, se
encarregarão disso.
Hoje,
o marxismo-leninismo da clássica luta de classes – Burguesia versus Proletariado – jaz morto e enterrado. E não só pelo reaganismo, pelo tatcherismo e pelo fim da União Soviética, mas pelas próprias esquerdas radicais, que abandonaram as causas dos
trabalhadores pelas pequenas causas de outros oprimidos e de outras opressões.
Mas
a persistência do paralelo religioso subsiste,
agora já não tanto na laicização do Sermão da Montanha, mas mais na deturpação
da visão de Isaías – quer na sua primeira fase justiceira, quando “o espírito da sabedoria e do entendimento
fere os tiranos com os decretos da sua boca e os maus com o sopro dos seus
lábios” (e aqui o activismo dos “sábios e entendidos” continua); quer
na sua segunda fase idílica, de planetária harmonia final, em que “o
lobo habita com o cordeiro, o leopardo se deita ao lado do cabrito e o leão
come palha como o boi”. Também
S. Paulo, quando escreve que “não há homem nem mulher, grego ou judeu, escravo
ou homem livre porque todos somos um só em Jesus Cristo”, é consciente ou
inconscientemente banalizado na idílica indiferenciação truncada dos novos
marxismos imaginários. O que se mantém é o voluntarismo da luta e a tentativa
de substituir a religião pela realização pagã e forçada na terra de uma
comunhão com coisa nenhuma e de um estado paradisíaco sem Deus.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR POLÍTICA
COMENTÁRIOS (de 8):
V. Oliveira: Uma cátedra!
Obrigado Sr. Jaime Nogueira Pinto! Constitui, juntamente com "E o resto é história", os únicos motivos de
consulta ao Observador.
Maria
Nunes: JNP, obrigada por transmitir aos seus
leitores a sua enorme sabedoria. José Oliveira: Texto magnífico! Francisco Assis: Aron , um dos mais lúcidos e inteligentes pensadores
políticos do século XX, não foi um puro conservador liberal. Foi talvez o
filósofo que melhor teorizou uma posição política centrista. Rui
Lima: Entre muitos das minhas leituras dos
jornais, há 2 personalidades que eu temia deixar de ler: um já foi VPV , outro
é JNP a quem eu desejo que continue a escrever por mais 40 anos pois por essa
data também eu deixarei de ler. Tema apaixonante o sobre que escreve hoje,
cristianismo e o marxismo de certa forma tocam-se e opõem-se, a luta em favor
dos desgraçados da terra sempre existiu é um sonho da humanidade penso
que tem a ver com as nossas origens dramáticas o não ter para comer era a morte,
daí somos geneticamente solidários temos simpatia por quem sofre. Procuramos
sempre o bem estar do homem primeiro pela via religiosa se não fosse na Terra
seria no Céu, hoje exigimos a recompensa em vida, o comunismo falhou, hoje é o
capitalismo que nos dá o prometido paraíso até o partido comunista da China
percebeu. A
Sameiro: Há
muito tempo que não lia uma análise tão bem feita e profunda!!
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