Um texto de
extraordinária fundura, de EUGÉNIA DE VASCONCELOS, que trata de análise
literária para chegar aos tempos que passam, de bestialidade inconcebível, e a
um herói – tantos heróis! – destes tempos, numa Ucrânia de sucessiva destruição e reconstrução, heróis que se forçam à contenção
dos ódios justos, mantendo-se humanos, firmes na sua barreira contra a
pestilência de seres que continuam, impavidamente, monstruosamente,
impunemente, vomitando o Mal.
Natal de 2022, Guerra e Civilização
Zelensky também nos raptou
quando afirmou: preciso de armas, não de boleia. Regressámos ao sentimento
épico. Grandioso. À impossibilidade de ser escravo. À plena Liberdade. Esta é a
parábola ucraniana
EUGÉNIA DE
VASCONCELLOS. Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 16
dez. 2022, 24:148
«A guerra põe-nos em condições
diferentes, condições diferentes de existência. Condições em que temos de
escolher entre permanecemos humanos ou tornarmo-nos animais, terroristas,
violadores, saqueadores. Eu vi tudo isso. Todos vimos as consequências da
ocupação russa. Sim, na guerra há uma escolha. Uma escolha difícil de
fazer porque o ódio contra os inimigos domina-nos diariamente. O ódio contra
inimigos que nos tiraram a vida que tínhamos. Mas temos de suprimir o ódio.
Saber que é o inimigo, mas ainda assim lutar de acordo com as regras. Ou seja,
mantermo-nos humanos.»
Estas
palavras são de Volodymyr
Zelensky. Foram
ditas pelo presidente ucraniano a David Letterman, no seu My Nex Guest
Needs No Introduction, um episódio extra-ordinário, ou se preferir «especial»,
gravado em Outubro, em Kyiv, e hoje [14.12.22] disponibilizado pela Netflix.
Estas
palavras de Zelensky são as
palavras definidoras do que é a humanidade enquanto civilização. São a consciência de onde emana não apenas a
possibilidade da vida comunitária, organizada, portanto a política e o direito,
mas também o sentido histórico do ser, e mesmo a arte e a literatura. Desde
sempre e ainda hoje. O claríssimo tecido da natureza e fronteiras da humanidade.
Ao
assistir à entrevista, neste tempo de guerra e perda democrática e enquanto o
Natal se aproxima, e desde aquelas declarações de Zelensky logo
ao início, pensei recorrentemente em Cormac
McCarthy – e não por causa dos recentes The
Passenger e Stella
Maris que muito recomendo. Porque para McCarthy a expressão da nossa
humanidade, das zonas de sombra onde
a violência se esconde, à luz crua onde sanguínea se expõe, e a sua conquista, ou seja, o nosso resgate pela
civilização, ou quando não a aniquilação, tem sido, sucessivamente a matéria-prima
dos seus romances.
Cormac McCarthy escreve visões. Visões do mundo como ele é naquele instante em que
se lhe revela. Uma paisagem imensa num ponto do tempo. O lugar de rapto do leitor como foi de rapto para
o autor. E acrescenta a descrição do funcionamento desse mundo numa
parábola.
Zelensky
também nos raptou quando afirmou: «preciso de armas, não de boleia».
Regressámos ao sentimento épico. Grandioso. À impossibilidade de ser escravo. À
possibilidade da plena Liberdade. Esta é a parábola ucraniana.
McCarthy
tem duas obras-primas, Blood
Meridian e The Road.
Em ambas a linguagem é pura música cadente.
Na
primeira, Blood Meridian,
usando como pretexto o paradigma norte-americano, sincrético, onde a exaltação
dos valores da revolução francesa se aliou ao protestantismo mais branco, o
modelo do universo em vermelho sangue extrai a poesia do horror.
Blood
Meridian é uma parábola construída canibalisticamente. Da mastigação da Bíblia como de Moby Dick e das
confissões de Samuel Chamberlain. Na verdade, toda a literatura e
poética o são. Já não me
lembro quem foi, se Goethe, ou quem,
falava em ingestão. Foi Joyce? Usamos
os pensamentos dos outros para os pensarmos, para nos pensarmos.
E
agora, nesta hora literária por excelência, feita de vidas que se oferecem à
morte para defender um ideal de liberdade, como tão bem disse Steiner a
propósito de Hemingway, já não basta dizer Roncesvaux para que o leitor
logo antecipe a traição. Agora
nesta hora explicativa de Roncesvaux em nota de rodapé, nesta hora em que as
referências dos mais elementares conhecimentos, lugares fundantes da cultura,
são tidas por erudição ou eurocentrismo, como se pode entender uma guerra?
A
rasura do Memorando de Budapeste pela Rússia de Putin também é Roncesvaux.
McCarthy é um bom canibal
porque é um homem de rescrições. Em Blood Meridian temos
a Bíblia punitiva, protestante, redentora, revista por ele no silêncio de Deus
até na cruz do Seu próprio Filho – há os outros textos canibalizados, os tais
de Melville e Chamberlain, mas não quero alongar-me mais sobre Blood Meridian. Neste western dos westerns, a violência existe
como condição da existência, expressão de vida, expressão divina, expressão
humana, de superioridade humana.
No segundo dos seus romances
perfeitos, The Road, a superioridade humana são os
valores civilizacionais.
As personagens não têm nome. São o
pai e o filho. Mas porque
não têm nome, são um pai e um filho indefinidos: somos nós.
Somos
nós a caminho, numa estrada desconhecida e desde uma terra por nomear, a norte
do sul pretendido – o destino com que se justifica a viagem. Nós, numa
estrada, em viagem. É a vida de cada um.
Este percurso de norte para sul
acontece num tempo em que a civilização, por um incontado apocalipse, se
desfez. Quando a civilização se desfaz, também a humanidade que a ergueu se
desfaz. É o tempo da sobrevivência.
Sós,
pai e filho, caminham para sobreviver. Os outros que encontram são estranhos. E
desconhecidos. São
estranhos quando regressaram às entranhas da bestialidade. São desconhecidos
porque não se sabe se cada um deles é já um estranho ou ainda um homem. E são o
espelho da natureza humana dentro e fora da civilização.
Em cada decisão que preserva o valor humano, a ética, a inteligente
besta sadia, o reduto de humanidade salva-se e transmitida de pai para filho, e
inspirada pelo filho ao pai, a civilização refaz-se.
No entanto, este fazer a favor da humanidade e da civilização é,
essencialmente, esperança contra a realidade desesperada,
assente num passo de perigo a seguir a outro, e sob a ameaça iminente que
ronda, espreita, ruge: a do homem animal, amoral, reptilário, canibal.
Monstruoso. Bestial. Pior que tudo, a tentação de ceder aqui acreditando que
não se cederá ali, a negociação do compromisso impossível: é já o monstro
dentro quem sibila. É
o monstro dentro que é preciso domar, porque também é ele quem fareja os outros
iguais a ele, em redor, é ele que é o dono do medo que esconde para proteger, e
da faca que rasga para sobreviver.
Cormac Mcarthy fez um romance sobre a
essência do ser enquanto, do céu, a cinza cai. A cinza cai sobre a estrada:
restos frios do incêndio da civilização.
Duas
vontades em conflito, duas pulsões, um só homem para as integrar. Ou
por outras palavras, as de Zelensky que repito: «o ódio contra os inimigos
domina-nos (…) mas ainda assim lutar de acordo com as regras. Ou seja,
mantermo-nos humanos.»
A
ideia do Mistério. Do bem e do mal. Pensamentos clássicos, ambos substanciados,
quero dizer, feitos carne e ossos de gente, são traduzidas em acções dos personagens, na literatura como na vida.
Nesta guerra, como dentro de nós, o
capital de violência e amor, de destruição e civilização, revela-nos o céu
apocalíptico, quando o instante manifesta o tempo: o tempo que foi, o agora e o
fim dos tempos. Terrível e belo.
O lirismo também é feito do ideal de liberdade e democracia, e o
amor tem de superar a carnificina. É precisa força anímica. Aquela
força de «preciso de armas, não de boleia». A força de
séculos, a força de uma terra e de um povo que se fez um só corpo diante do
inimigo e um corpo de sacrifício pela civilização.
PS:
Regressarei a 30 de Dezembro. Desejo-vos Boas Festas.
A
autora escreve segundo a antiga ortografia
GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS (de 8):
João Ramos > bento guerra: Pois mas
gostaria de ver o tal M. Sousa Tavares se lhe invadissem a casa e o quisessem
pôr na rua, como é que ele iria fazer a tal “paz”, deixava os entrar e metia o
“rabo entre as pernas”… no caso presente deixemo-nos de lirismos e de frases
bacocas e vazias de qualquer valor real!!!
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