Jaime Nogueira Pinto, na escolha dos seus temas enriquecedores, que despertam lembranças de leituras
bem remotas.
De Dickens a Gogol – o Natal
nos livros
Com os vitorianos e, acima de tudo e
de todos, com Charles Dickens, o imaginário do Natal cristão ganhou uma
dimensão social, caseira, próxima, de consciencialização e redenção pessoal.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 24
dez. 2022, 24:167
Terá sido em Greccio, na
província de Rieti, no Lácio, na véspera de Natal de 1223, que S. Francisco inventou
o primeiro presépio. Era
um auto natalício, representando o primeiro dos Natais, com toda a criação a
louvar o Criador feito homem, o Deus Menino na manjedoura.
Os frescos de Giotto, na Basílica de Assis,
representam, assim, o mistério
da Encarnação, o mistério que irrompe no tempo e rasga o tempo, condição sine
qua non de todos os outros mistérios da Fé; o
mistério que, nos séculos seguintes, vai servir de tema aos grandes mestres do
Ocidente, crentes e não crentes.
Mas a história recente do
Natal – antes de se tornar uma oca e errática azáfama
mercantil; a história
e o imaginário do Natal como celebração em família da Sagrada Família, vai
ficar muita marcada pelos anglo-saxónicos.
Ainda
que, durante a Revolução Inglesa, Cromwell tenha proibido a festa, por cheirar
a “papismo” e a excessos pouco puritanos, Carlos II, o Merry King,
apressou-se a restaurar a celebração. Depois, com os vitorianos e, acima de tudo e de todos, com Charles
Dickens, o imaginário do Natal cristão ganhava uma dimensão social, caseira,
próxima, de consciencialização e redenção pessoal.
Chesterton, num famoso ensaio
sobre Dickens, nota que o conforto e a harmonia do Natal do
escritor vitoriano vivem precisamente do “contraste entre o calor e o vinho
dentro de casa e o Inverno e a neve e a chuva lá fora”.
Washington
Irving, escritor americano da primeira metade do século XIX, nos seus Sketches,
reflectia já esses “natais ingleses”. Dickens conhecia Irving e a sua
escrita e os dois encontraram-se e saudaram-se efusivamente na visita de Dickens aos Estados Unidos em
1842.
Irving popularizara na América a figura de S. Nicolau, numa
história sobre o naufrágio de um barco holandês em Manhattan e a visão de um
dos tripulantes do “bom S. Nicolau, aparecendo sob a copa das árvores, guiando
um carro carregado de presentes para as crianças”. No conto,
é S. Nicolau que diz aos
holandeses para se radicarem na Ilha de Manhattan,
tornando-se, assim, o fundador da cidade. De resto, Irving foi secretário
executivo da Saint-Nicholas Society of the City of New York até 1841. Era um escritor prolixo e os seus contos
foram determinantes para introduzir na América a tradição do Natal, do Natal
cristão, como festa da família.
Já a árvore de Natal parece ser de
origem alemã, aparecendo pela primeira vez na Rússia em 1817 com a imperatriz
Alexandra, mulher de Nicolau I. Foi
também Alexandra, filha
de Frederico Guilherme III da Prússia,
que introduziu na aristocracia russa o costume de trocar presentes pelo Natal. Foi
igualmente um alemão, o
príncipe Alberto, marido da rainha Victória, que levou a árvore de Natal para
Inglaterra.
A canção de Natal de Dickens
Mas o pai fundador do “tempo de Natal”,
foi Dickens. Apesar de uma referência anterior nos Pickwick
Papers, é em A Christmas
Carol que um certo imaginário
do tempo de Natal nasce no Ocidente cristão; um imaginário marcado pelo tempo
atmosférico – o frio e a neve, que atingem mais os pobres que os ricos e os
remediados; e pelo tempo social e individual – a solidão e a maldade do velho
Scrooge, avisado em sonhos das consequências do seu egoísmo, e a alegria simples
dos pobres e remediados.
Scrooge
diz secamente ao sobrinho Fred, filho da sua irmã Fan, que o Natal é “a humbug”,
“uma farsa”, mas Fred, empolgado, contradi-lo, definindo o tempo de Natal como
“a good time; a kind, forgiving, charitable, pleasant time”, sobretudo por ser
um tempo em que “os homens e as mulheres abrem os corações livremente e pensam
nas criaturas abaixo deles como companheiros de caminho para a sepultura”. Ebenezer Scrooge não se convence com esta
apologia de Fred feita de “fellow-passengers to the grave”, mas os
eloquentes espíritos natalícios que o visitam de noite vão elucidá-lo sobre as
oportunidades perdidas no passado, a verdade do presente e o castigo futuro,
levando-o ao arrependimento.
Dickens foi um crítico da
Inglaterra vitoriana, a Inglaterra da industrialização, que retratou em Hard
Times; e a crítica repete-se em A Christmas Carol, onde os maus são ricos,
agiotas e exploradores, e os bons pobres, remediados e explorados. Nesta
crítica, está implícita a condenação do Liberalismo e do seu utilitário
“Enrichissez-vous”, que reduz ao lucro resultante da exploração dos pobres a
procura e o “direito à Felicidade”.
Dickens é um crítico da ética capitalista e da “mão invisível”. Nos seus romances, o capitalismo liberal
sem freios religiosos, éticos ou legais, surge como um sistema em que só os
poderosos e os ricos podem ser livres e em que o poder e o dinheiro dão as mãos
contra os pobres.
No entanto, na sua canção de Natal, os
símbolos da riqueza e da miséria são individuais – o patrão rico,
explorador, sem remorsos, Ebenezer Scrooge, e o seu empregado, Bob
Cratchit. Scrooge, além de
explorar Cratchit, exibe uma moral darwinista, em que os pobres são “deplorable”
e totalmente dispensáveis quando deixam de ser úteis como instrumentos de
produção.
Dickens, pouco antes de escrever A Christmas Carol, tinha
visitado Manchester e contemplado a condição dos trabalhadores; tinha também
uma memória viva da humilhação familiar, de quando o pai estivera preso por
dívidas. Mas o autor de David Copperfield não se envolve nunca
numa diatribe social colectiva ou numa apologia da luta de classes, seguindo
antes um caminho de consciencialização e arrependimento pessoal, cristão.
Scrooge,
que o leitor tem razões suficientes para detestar, vai ser salvo por uma
sucessão de visões do passado, do presente e do futuro, guiada pelos espíritos
do Natal; visões que vão trazer ao egoísta e despótico capitalista a outra face
do seu mundo e do mundo: o amor de Belle trocado pelo amor ao dinheiro; o seu
sócio Marley, errático e acorrentado, dando-lhe a imagem do que lhe pode vir a
suceder se não se arrepender; a alegria familiar dos sobrinhos, com Fred,
apesar de tudo, a defendê-lo dos que o atacam; o pequeno Tim, na casa dos
Cratchit, condenado ao seu último Natal; e, finalmente a imagem da sua própria
morte, o horror do fim ante a alegria dos seus devedores.
Quando acorda na manhã de Natal,
Ebenezer Scrooge é outro homem, arrependido e redimido pelas visões da noite.
O Natal dos russos
Dickens foi conhecido e popular na Rússia entre os anos 40 do século
XIX e a revolução de 1917. Em 1849, no jornal político-literário Sovremennik (Contemporâneo),
fundado por Alexandre Pushkin, o autor
de David Copperfield era descrito como “o mais notável novelista
europeu contemporâneo”, pelo sentido humanista ou humanitário das suas
histórias e a sua natural simpatia pelos danados e humilhados na “puritana
Inglaterra”.
Os grandes escritores russos também escreveram sobre o Natal: Tolstoi contou o
Natal de um velho sapateiro que queria dar ao Menino Jesus um par de sapatos; Dostoievsky inventou a
história do menino pobre ao pé da árvore de Natal, símbolo de todos os meninos
pobres, que Cristo recebe na sua Luz; e Chekhov conta um Natal em que uma mãe
analfabeta pede a um tal Yegor que lhe escreva uma carta à filha, que partira
há quatro anos para São Petersburgo.
Antes deles, em 1832, já Nicolau
Gogol,
aquele que Vladimir Nobokov considerou
o primeiro entre os escritores russos, tinha publicado um conto da véspera de
Natal, passado em Dikanka, uma aldeia da Ucrânia. No conto Véspera
de Natal, o ferreiro Vakula, que ama perdidamente Oxana, é vítima do Diabo, que
rouba a lua, com a cumplicidade da mãe do ferreiro, a bruxa Solokhy, para
atormentar o pobre e apaixonado ferreiro, um homem bom e um piedoso cristão.
Gogol, um agnóstico em procura atormentada da Fé, foi um
desses autores com o sentido da presença adormecida, dissimulada, mas
permanente do Mal em coisas aparentemente sem importância – coisas “Poshlost” –
como em O Capote.
Os natais na Rússia acabaram em 1917, com a revolução bolchevique, que fechou
igrejas, matou e prendeu sacerdotes e procurou acabar com o Cristianismo na
URSS. A partir de 1928, depois de uma tentativa de substituir
o feriado de Natal por uma festa do Komsomol (a Liga da Juventude Comunista), o
25 de Dezembro passou oficialmente a ser um dia normal.
Entre os horrores da Fome e do Terror,
em 1935, Estaline quis restaurar um simulacro de “Natal”, com um Avô
do Gelo soviético, Ded Moroz, e a sua neta Snegurochka, a Menina da Neve, que traziam
presentes para as crianças socialistas. Isso já não no Natal, um mito
burguês que não tinha nada a ver com o Socialismo Científico, mas no
princípio do Ano, para comemorar o Ano Novo. Não terá servido de muito.
Curiosamente, por uma destas coincidências misteriosas da História,
a União das Repúblicas Socialistas acabou no dia de Natal de 1991. Gogol faria
um grande conto sobre o tema.
NATAL SOCIEDADE LIVROS LITERATURA CULTURA
COMENTÁRIOS
José Ramos: Mais uma vez,
como acontece com Jaime Nogueira Pinto, uma aula de uma erudição fantástica. O
dia de Natal de 1991 foi um presente inestimável para os povos e países que
constituíam a União Soviética, que nunca foi realmente uma união nem era
propriamente soviética. A Rússia, principalmente a Rússia, não o soube aproveitar.
Para Jaime Nogueira Pinto, do empedernido agnóstico que eu sou, um Santo
Natal. Francisco Almeida: Obrigado pela crónica, interessante e erudita como
sempre. Devo ser um caso perdido do espírito natalício, pois a crítica de
Dickens à "mão invisível" e ao capitalismo sem os freios da religião
e de ética só me fez lembrar a IL. Os meus desejos de um Santo Natal. José Ramos > Francisco Almeida: Não me parece que a IL defenda a falta de ética ou que
a ignore. A Ética é anterior ao Cristianismo e a "mão invisível" ou
Adam Smith jamais tiveram alguma coisa a ver com a imoralidade e a ganância
desenfreadas. Darwin, também não. Maria Madeira: Artigo muito interessante. Bom Natal Maria Tejo: Obrigada pela sua crónica. Sempre um manancial de
sabedoria. Tenha um Santo Natal. Maria Nunes: JNP, obrigada por mais uma excelente crónica. Votos de
um Santo Natal.
Diogo Araújo Dantas: Obrigado pela (re)visita à literatura natalícia inglesa
e russa. Muito interessante análise de Dickens e os russos, embora confesse que
não conheço a obra de Gogol. Um Santo Natal para si e sua Família.
Nenhum comentário:
Postar um comentário