Embora a maioria das vezes também eu fuja das entrevistas públicas dos programas da tarde, a pessoas que amam expor ou expor-se, conduzidas pelo fluxo encantatório das suas expressivas entrevistadoras, o certo é que já me tem acontecido viver alguns desses casos de sofrimento ou bondade humana presa ao sofá, em lágrimas sentidas, lágrimas, aliás, de acesso hoje mais fácil, dada a maior visibilidade dos desmandos praticados no mundo. Mas os momentos de leitura ou de contemplação ou audição de outras artes causam uma extensão de prazer de outras marcas, tem Paulo Tunhas perfeita razão, e o seu texto é perfeito a demonstrá-lo, desmascarando, para mais, o exibicionismo do “cacto” humano, na fragilidade da sua demonstração egotista por vezes de grotesco alarde.
Elogio de Carl Spitzweg
Sem a atenção, a imaginação necessária para compreender
a arte não funciona. E o que resulta dessa falta é uma indiferença mais ou
menos mal disfarçada.
PAULO TUNHAS
08 dez. 2022, 24:195
Acontecia-me, de vez em quando,
passar pela montra de uma tabacaria e ver as capas das revistas onde famosos de
vária pinta (na maioria para mim desconhecidos) abriam para nós, com uma
fotografia e uma frase, o seu coração. Falavam de paixões, de traições, de
fundas tristezas e de altíssimas alegrias. Uma actriz, que por acaso conheço
pessoalmente, numa semana estava a viver o melhor momento da sua vida, banhando
em felicidade, para, duas semanas depois, atravessar a mais dilacerante crise
sentimental, confessando, lá para o fim do mês, ter sido tocada pela graça de
um amor daqueles que já não se vêem. Mas mesmo quando nunca tinha ouvido falar
dos famosos, parava para ver. Não me reprovo nem me aplaudo. O facto é que
sempre me fascinou, mesmo quando é uma simples maneira de ganhar a vida, a
facilidade e o gosto que as pessoas têm em expor os meandros da sua alma, que
avança sem titubear nas variadas direcções do amor, do ódio, do desprezo da ira
e da devoção.
Entretanto,
a coisa piorou. Por causa destes telemóveis modernos, todas essas explorações
dos meandros do eu chegam-me directamente às mãos sem precisar de sair de casa
e sem que eu tenha quase a liberdade de continuar em frente sem olhar. Basta
uma pequena distracção, uma pequena pressão indevida do dedo, e, zás!,
entram-me pelos olhos dentro todas as traições de que a jornalista de televisão
foi vítima por parte dos colegas e coisas assim. E, de repente, o mundo é
ocupado quase em exclusividade por gente que não olha para fora de si, gente
que olha exclusivamente para si mesma, como se o mundo lá fora não existisse.
É
nestas alturas, assaltado pela melancolia, que me lembro do meu velho amigo Carl
Spitzweg. Desde que, há muitos anos,
vi alguns quadros dele na Ilha dos Museus de Berlim, que aquela pintura me
fascina. E sei, coisa rara, exactamente porquê.
Porque ele é o pintor da atenção por excelência. Nenhum outro
pintor tão bem retratou essa actividade imaterial da qual a filosofia, com
Malebranche ou Maine de Biran, fez um tema seu. Pode ser alguém a ler um livro,
ou um geólogo a olhar para uma pedra, ou um amador de cactos que os observa
escrupulosamente (há vários quadros dele com este último assunto). Ou ainda um
homem sentado no campo que olha fixamente para uma lebre que lhe retribui o
olhar.
O
sentimento de maravilhamento que se experimenta ao fixarmos a nossa atenção
nesses seres
presos pela atenção não se
conta. Porque,
decididamente, eles saíram, no momento pintado, para fora do tempo, para
fora daquilo que Schopenhauer, ao comentar a teoria estética de Kant, chamava
princípio de razão. Olham para certos fragmentos do mundo com tanta atenção que
é como se nada mais existisse. Eles próprios é como se desaparecessem através
da sua atenção ao objecto que os maravilha.
É
uma lição que convém não esquecer, a da atenção de Spitzweg. Não há prazer
estético que não viva da atenção. E não apenas, é claro, o prazer na pintura ou
na literatura. Com a música é exactamente a mesma coisa: pode-se falhar
perfeitamente uma peça musical, num concerto ou em casa, se não conseguirmos
obter a atenção necessária para verdadeiramente a escutar. Por uma razão
simples: sem a atenção, a imaginação necessária para compreender a arte não
funciona. E o que resulta dessa falta é uma indiferença mais ou menos mal
disfarçada.
Mais
genericamente, a atenção de Spitzweg é o exacto avesso da concentração
obstinada sobre si mesmo que no início falei e que é, no fundo, puro
desinteresse pelo mundo. E é um antídoto perfeito para a esfera crescente das
expressões do eu que, de Harry e Meghan à jornalista de televisão, nos invadem
o quotidiano com confissões das suas entranhas que, numa subversão anatómica,
querem expor à superfície.
Dito
isto, devo confessar que não sou suficientemente moralista para condenar sem
apelo nem agravo tais exposições. Às vezes, em momentos de especial boa
disposição, ainda me apanho a observá-las. Mas prefiro francamente, como as
figuras de Spitzweg, olhar para cactos. Parecem-me mais reais e menos
desesperadamente vazios.
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COMENTÁRIOS (de 8)
Cisca Impllit: Como gostei de ler este artigo!
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