segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Relato de uma professora


Que abandonou as suas funções, Alexandra Simões Silva, texto que a Paula me entregou, no café familiar domingueiro da manhã, último deste ano, pois o café só reabre depois do dia 1 de 2023. Só alterei a ortografia, não adepta que sou do AO 90, que os professores são forçados a adoptar. Sim, já várias vezes temos aqui exposto sobre o difícil papel da docência, hoje, neste país donde o respeito pelas normas clássicas desapareceu, superado pelo igualitarismo parolo dos conceitos democráticos que supervalorizaram, todavia, por falsa fraternidade e exibicionismo grosseiro, os poderes dos mais fracos - em idade, estatuto social, deformações (aparentes ou reais) da personalidade: no fundo desinteressados, os defensores das actualizações ideológicas, daqueles valores sólidos da formação educativa, apoiada em conceitos clássicos de rigor moral e intelectual. E um governo que permite o boicote dos números estatísticos, para apresentar resultados favoráveis, adulterando assim uma realidade menos benigna no que toca a confrontos com outros povos, como a autora do texto informa, na sua exposição biográfica, é bem digno de repúdio por tal libertinagem moral. O “Ser e o Nada”, o “Ser e o Não ser” aplicados não à problemática da Vida e da Morte, mas à de uma realidade de falcatrua, que é a que nos descreve Alexandra Simões Silva no seu excelente relato autobiográfico, de uma mente moldada nos princípios do rigor, este, hoje, uma muralha gradualmente a desabar, se desaparecerem as Alexandras Simões Silva do nosso espaço cultural, capazes de denunciar. Para além disso, todo um processo de risco físico, em certos casos de ensino, que a sua experiência colheu. Ou apenas de desgaste físico e psicológico, pela generalização de uma escola que fraternalmente abarca todas as categorias mentais, retirando credibilidade ao ensino e manipulando as consciências, ou reduzindo a auto-estima de quem estudou para se afirmar através do estudo e da competência progressiva, pesem embora os desvios da fraternidade, mais apelativos de um trabalho de sensibilidade, conquanto meritório, mas apelativo de outros espaços de acolhimento.

«Hoje os professores manifestam-se uma vez mais. De todos os impropérios que lhes podem chamar, a opinião pública tende a centrar-se nos preguiçosos, nos parasitas, nos intelectualmente deficitários, enfim, tudo o que uma horda de pais, incapazes de reconhecer o quão tendenciosas e manipuladoras são as opiniões dos seus filhos, propensos à preguiça académica, advoga. A culpa é sempre do professor.

A verdade é que ser professor é uma das mais nobres profissões. A evolução de um país baseia-se na forma como os seus professores, profissionais de saúde e justiça são tratados. Escusado será dizer que muitos dos dois últimos foram e ainda são formados na escola pública que é, actualmente, tão negligenciada.

Deixei a profissão docente, com grande pena minha, há uns anos. Fi-lo, não porque não adorasse ensinar, fomentar o espírito crítico, partilhar da efervescência da juventude que ensinava. Fi-lo porque me sentia maltratada. Porque passar alunos seria prioritário. Mesmo que não viessem às aulas. Mesmo que agredissem os professores. Governos, ministros, ministérios e alguns directores empurram os professores para uma obrigatoriedade que obedece ao número e não à qualidade. E os professores cedem. Perante a pressão, perante os processos, perante os votos patéticos para passar o menino (não raras vezes intelectualmente incapaz, arrogante e indisciplinado. Preguiçoso, já nasceu assim). Os professores cedem, saudosos da qualidade que prometeram exigir. E depois pressionam-nos os pais, que exigem resultados, com o esforço unilateral do docente, já que ao discente basta existir. Afinal, será influencer, o seu grande sonho. E depois, tudo o resto. Um salário mau. A ausência de subsídios de deslocação para os que vivem nos cus de judas. A ausência dos subsídios de risco para aqueles que estão enfiados num contentor com alunos armados (sei do que falo). O desgaste de quem trata, ensina, educa e acarinha os autistas, os hiperactivos, os ansiosos, os deprimidos, e mais 300 alunos ditos normais, o que, nos tempos que correm, é alvo de grande discussão. Muitos a necessitarem de apoio de psicólogos escolares, que escasseiam, em vez de colocarem mais esse peso nos ombros dos professores. Também muitos deles a precisar de ajuda para lidar com tanta pressão e diversidade.

Estou muito solidária com os meus antigos colegas. Acima de tudo porque a escola pública merece o reconhecimento devido. Porque os pais com menos possibilidades financeiras nunca poderão recorrer aos colégios onde os herdeiros dos paizinhos políticos se refugiam longe do bombardeamento da escola pública. E porque os alunos bons, como eu fui, merecem subir mais do que a geração anterior. E merecem ter essa hipótese.

Abandonei o ensino para ter qualidade de vida, porque reconheci que apesar dos meus esforços e potenciais qualidades no exercício da profissão (os meus alunos o dirão) isso não me garantiria casa, carro e o prazer de poder fazer coisas que me fazem feliz. Porque dar aulas, no contexto actual, já não chega. Tenho muitas saudades mas, infelizmente, não me vejo a regressar. Os professores são, infelizmente, muito mal-amados e tratados. Merecem muito mais respeito. Merecem reconhecimento. Merecem uma vida tão nobre quanto a sua tarefa. Caso contrário, abandonaremos os alunos à sua sorte. À imagem do que os governantes fazem com a escola pública.

Se os jovens e os pais tiverem essa consciência, juntam-se à luta dos professores. Pelo Bem comum.

                                                       Alexandra Simões Silva

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