terça-feira, 13 de dezembro de 2022

TERESA DE SOUSA, “uma cronista sem fronteiras”


Pelo menos, aparentemente. Porque objectivamente pendente de uma personalidade que se distingue por valores de inteireza moral, que estão na base de uma orientação política feita de equilíbrio, no seu sentido de pesquisa dos factos objectivos, sem concessões a uma subjectividade de natureza clamorosamente crítica, como a têm outros nossos analistas satíricos, de uma displicência nem sempre aceite, que nos educam e juntamente divertem.

Teresa de Sousa não faz humor. E todavia, é sempre com extremo prazer que a lemos, no rigor e seriedade das suas pesquisas com que, decididamente, alinhamos, ressalvadas as suas orientações políticas - nem sempre presentes, todavia - amantes que somos de orientação, neste caso, do foro histórico, a respeito do Oriente e de Putin, da Ucrânia que lhe merece todos os galardões, dos Estados Unidos, que decididamente são credores de toda a gratidão deste Ocidente que com eles forma tenaz barreira, desde o século passado bem demonstrada, contra os ventos do Oriente, e que rezamos para que seja frutífera neste nosso século, inesperadamente apanhado por um cataclismo de ferocidade e loucura que um Pacto sensato tornara impossível, mas que serve, contudo, de ameaça assustadora contra a integridade terrena global.

Opinião

Não é possível negociar com Moscovo

Estamos muito longe de qualquer possibilidade de negociações que sirvam os interesses da Ucrânia e os interesses das democracias ocidentais. Que são basicamente os mesmos.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 4 de Dezembro de 2022, 6:29

1. “Temos de fazer tudo o que for necessário para que a Ucrânia possa ganhar a guerra.” As palavras são da primeira-ministra finlandesa. Foram ditas na semana passada, em Sidney. Fazem parte da sua intervenção num think-tank australiano, na qual Sanna Marin teve a capacidade de dizer quase tudo o que é preciso dizer sobre a guerra neste momento. “Haverá, um dia, um tempo para a paz. Mas a paz só pode chegar nos termos em que a Ucrânia a definir. É preciso aumentar os nossos esforços para levar a liderança russa a perceber que só pode perder esta guerra – e que a perderá.”

As palavras de Sanna Marin, que lidera um país com uma fronteira de mais de 1600 quilómetros com a Rússia e cuja história lhe ensinou o que significa viver ao lado de um império expansionista e agressivo, resumem bem o que está em causa, quando a guerra entra no seu décimo mês e quando se volta a falar de negociações de paz.

O ponto de partida foram as palavras de Joe Biden, durante a conferência de imprensa conjunta com o seu homólogo francês, na quinta-feira passada, durante a qual disse estar disponível para falar com Putin desde que o Presidente russo ponha fim à guerra. O que disse Biden exactamente? “Existe uma forma de esta guerra acabar, uma forma racional: é Putin sair da Ucrânia. Parece que ele não o fará.” As suas palavras não deixam lugar para dúvidas. Foram ditas, de acordo com analistas em Paris e em Washington, para mostrar que não há divergências com Paris (e Berlim) sobre a melhor maneira de lidar com Putin. A França e a Alemanha quiseram manter, desde o início da invasão, uma linha aberta com Moscovo, para não fechar as portas a uma solução diplomática, na qual já acreditaram bastante mais. Na mesma conferência de imprensa, Macron não quis, por seu lado, deixar qualquer dívida sobre o que pensa hoje: eventuais negociações de paz só podem ser feitas nos termos e nas condições que a Ucrânia decidir.

Mesmo assim, a Casa Branca fez questão de clarificar o significado das palavras do Presidente, que “não tem qualquer intenção de falar com o senhor Putin neste momento”. “Como também [Biden] disse, Putin não demonstrou absolutamente nenhum interesse em qualquer espécie de diálogo”, esclareceu o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby.

2. Pouco depois desta conferência de imprensa, o chanceler Olaf Scholz tomou a iniciativa de telefonar ao Presidente russo. O telefonema durou uma hora. Segundo o Governo alemão, o chanceler transmitiu a sua condenação dos ataques russos a infra-estruturas civis e reafirmou “a determinação alemã em apoiar a Ucrânia, assegurando a sua capacidade de defesa contra a agressão russa”. Putin terá acusado o Ocidente de seguir uma “linha destrutiva” ao fornecer armas à Ucrânia, levando a que Kiev “rejeite completamente qualquer ideia de negociação”.

Coube ainda a Serguei Lavrov, o chefe da diplomacia russa, esclarecer numa conferência de imprensa em Moscovo as condições para uma negociação, que incluem a integração na Federação Russa dos territórios anexados em 2014 (Crimeia), mais as quatro regiões que Putin “anexou” em Setembro passado, algumas dos quais continuam sob controlo ucraniano, como Kherson. Lavrov também não se esqueceu de renovar a ameaça nuclear.

3. Putin não mudou de posição, nem quer negociar seja o que for. Face à derrota no campo de batalha, mudou de estratégia – espalhar o terror na população ucraniana, continuando a bombardear bairros inteiros e destruindo sistematicamente todas as infra-estruturas civis que lhe permitem sobreviver. Desde Setembro, os mísseis russos e os drones comprados ao Irão têm como único alvo as redes de abastecimento eléctrico e as infra-estruturas de distribuição dos bens de primeira necessidade, incluindo a água. Destruir a Ucrânia pelo frio e pela penúria passou a ser o objectivo. Até agora, sem resultados visíveis. Entre o frio e a Rússia, os ucranianos continuam a preferir o frio. Entre a escuridão e a Rússia, continuam a preferir a escuridão. Entre o medo dos mísseis e a Rússia, os ucranianos provam todos os dias uma capacidade inabalável para vencer o medo.

Com a guerra a entrar numa nova fase, determinada pelas condições muito duras do Inverno, Putin vai querer tirar proveito da situação para multiplicar os bombardeamentos às infra-estruturas e à população civil (enquanto tiver munições) e para tentar fortificar posições no terreno. Já percebeu que não pode ganhar a guerra. Não consegue “desmoralizar” o Ocidente. Vai apostar, provavelmente, num “conflito congelado” que lhe permita, mais tarde, apresentar aos russos uma “vitória” sobre o Ocidente e sobre os “neonazis” ou, na versão mais recente, os “adoradores de Satã” que moram em Kiev. Precisa de satisfazer os extremistas do regime, que surgem diariamente nas televisões a criticar abertamente a inépcia dos generais e a exigir a destruição completa dos ucranianos. As probabilidades não lhe são favoráveis, pelo contrário. As tropas ucranianas estão mais bem preparadas para enfrentar o frio. Sabem exactamente o que têm de fazer. Podem continuar a contar com o apoio militar ocidental. Enquanto tiveram o apoio americano, a guerra corre a seu favor.

4. Há ainda alguns aspectos da estratégia americana que a Administração decidiu não clarificar publicamente. Destruir o regime de Putin ou enfraquecê-lo ao ponto de deixar de ser uma ameaça, pelo menos num futuro previsível? Não é uma decisão fácil de tomar. Até onde ir no fornecimento de armas à Ucrânia para evitar qualquer risco de escalada do conflito sem, contudo, a impedir de manter a ofensiva militar? Que condições devem existir no terreno para que haja margem para abrir negociações? Onde está a linha vermelha que convém não ultrapassar, na derrota das tropas russas? Na Crimeia, como defendem alguns analistas?

Não são decisões fáceis de tomar. São decisões que só os Estados Unidos estão em condições de tomar, mesmo que levem em conta os pontos de vista e os interesses dos seus aliados europeus. Como também disse Sanna Marin, em Sidney, é preciso dizer “francamente” que a Europa continua a depender quase totalmente dos Estados Unidos para garantir a sua segurança. “Entre os nossos parceiros e aliados, os Estados Unidos continuam a ser o nosso parceiro vital e permanente.”

5. O que não quer dizer que os europeus não tenham até agora desempenhado o seu papel. Mantiveram-se unidos. Garantem uma parte, não despicienda, da ajuda militar e económica à Ucrânia. Tomam posições políticas que clarificam sem margem para dúvida o que pensam hoje da Rússia de Putin. O Parlamento Europeu aprovou por grande maioria uma resolução que condena a Rússia como “Estado que patrocina o terrorismo”. A Comissão defendeu a criação de um tribunal internacional especial para julgar os crimes de guerra e contra a humanidade cometidos pelas tropas russas. O Conselho de Ministros da União está prestes a aprovar o nono pacote de sanções. Os governos europeus entenderam-se sobre um tecto máximo de 60 dólares para a compra do petróleo russo, de forma a continuar a atingir a principal fonte de financiamento da guerra.

6. Subsiste a questão: ainda ninguém sabe quando e exactamente como é que a guerra vai terminar. Por enquanto, a única conclusão possível é a de que estamos muito longe de qualquer possibilidade de negociações que sirvam os interesses da Ucrânia e os interesses das democracias ocidentais. Que são basicamente os mesmos.

Podemos voltar às palavras da primeira-ministra finlandesa. “Quando a Rússia, que é um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, viola a Carta das Nações Unidas com total impunidade, ignora e viola a lei internacional e comete crimes de guerra, todos nós temos muito a perder – na Europa, na região do Indo-Pacífico e em qualquer outro lugar do mundo.”

Timothy Garton Ash vai um pouco mais longe. Num artigo publicado no Guardian a 23 de Novembro, defende que “não haverá paz duradoura na Europa enquanto Putin se mantiver no Kremlin”. Não o podemos remover, mas podemos contribuir para criar as condições nas quais os próprios russos queiram finalmente abandonar o caminho de autodestruição em que ele lançou o país deles”.

Também a Rússia beneficiará de uma derrota na Ucrânia. Não estamos, definitivamente, no momento de negociar com o ditador de Moscovo.

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