Culturalmente, afectivanente, em laços de admiração e de empatia, como bem demonstra MJA, em lindo Requiem.
Tributo a Nélida
Nélida
Pinõn notou, mas passou adiante, presa a uma surpresa intrigada: que poderia
querer dali uma portuguesa em tão despropositados preparos na Academia a que
ela presidia?
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 23
dez. 2022, 24:258
1Foi há muito tempo que a conheci, algures
entre a terra e o céu, voando sobre o grande oceano a que ambas pertencíamos.
Uma deste lado do Atlântico, a outra, do outro. Num longo voo entre Lisboa e o
Rio, abri um jornal brasileiro e de repente dei com Nélida. A descoberta foi
tão forte que consigo hoje rever esse momento como se tivesse acabado de o
viver. Inteiro. Um momento raro, cheio, transbordante de espanto e o fulgor, de
onde a fábula e a realidade escorriam com o mesmo generoso ímpeto.
Nélida Pinon, escritora e efabuladora mas
que nessa hora o jornal ouvia na qualidade de recém eleita primeira mulher para
a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL). Suprema honra. Passava-se
isto nos idos de noventa do outro século, num arco temporal onde não só eu ia
muito ao Brasil como tentava manter-me atenta ao seu ar do tempo político e
cultural, sobretudo no Rio, S. Paulo, Brasília. Escrevendo, reportando,
entrevistando. Mas ainda não a Nélida Pinon. Lendo porém a “matéria”
jornalística que nos apresentava a nova presidente da ABL decidi durante o
próprio voo que ela seria prioridade absoluta na estadia carioca. E foi.
(Lembro-me até de ter pensado em como a minha irmã Maria José iria gostar de
também ler aquele texto, que recortei e trouxe para Lisboa. E gostou).
Como as coisas são. Ou podem ser: a
leitura casual de um jornal durante um solitário voo sobre o Atlântico
transformou-se por obra e graça de algum duende, na semente de uma fortíssima
amizade que, quase de forma instantânea, brotaria dias depois. Florescendo
sempre fecunda, sempre com viço, até há dias atrás. Quando sem pré aviso nem
despedida, longe do seu berço natal e de seus amigos, ela partiu de um hospital
lisboeta, para destino que olhava com o fascínio que pode trazer a incerteza.
2Dois ou três dias depois da chegada ao
Rio de Janeiro, pedi para ser recebida na Academia. Inexplicavelmente
apresentei-me mal vestida (alpergatas, bermudas, etc., um disparate que a
leveza carioca e o verão tropical nunca explicarão, nem perdoarão). Nelida
notou, mas (vim a sabê-lo por ela mais tarde) passou adiante, presa a uma
surpresa intrigada: que poderia querer dali uma portuguesa em tão
despropositados preparos, numa Academia de Letras e por ela presidida? (Nélida
amava Portugal e ainda mais os portugueses. A sua fidelidade era de aço “doublée”
do encanto seu verbo cantado. Sabia “a riqueza e plasticidade da língua
portuguesa” que achava “opulenta e generosa” e que “nunca falhara a ninguém no
Brasil, nem na poesia, nem na prosa”).
Sôfrega de curiosidade e pronta ao
deslumbramento expliquei simplesmente que fora um artigo de jornal que ali me
levara e que face ao que lera “tinha de a conhecer”. E ela, que ria com os
olhos, que semicerrava com delícia quando as coisas ou a vida lhe iam a
contento, riu. E iniciou então uma coreografia de palavras com as quais e por
entre as quais deambulou, numa navegação em língua portuguesa como vira poucas.
Percebi instantaneamente que estava ali em carne e osso a voz feminina
talvez mais singular que me fora dado ouvir até então.
Mais que mulher de letras, “escolhedora”
de palavras, inventora de fábulas e mais que “escritora”, porque havia estrépito
e anúncio no que escrevia, era uma criadora. Serei sempre incapaz de a
resumir e menos ainda de definir. Ficaria aquém. Fiquei sempre.
3Alguns dados prosaicamente
indispensáveis: Nélida Pinõn nasceu em
Espanha em 1937, os quatro avós eram galegos, passou a infância em Portugal,
estudou filosofia, leccionou em várias universidades, vivia no Brasil (“ a
minha família no Brasil é mais jovem que as palmeiras imperiais de D. João
VI”). Publicou o seu primeiro livro em 1961, escreveu muitos, ganhou diversos
prémios literários, internacionais.
“Guardo desde criança uma irrestrita
fidelidade ao destino da escritura” contou um dia, “sou filha dos livros e da
imaginação. Desfrutei de uma liberdade de pensar e de inventar desde menina”.
Escrevi sobre ela algumas vezes (e de
alguns desses bocados de prosa me sirvo hoje), porém sempre com mais timidez
que segurança, e nunca sobre a sua literatura. Faltava-me competência e saber,
Nélida transcendia. E eu interrogava-me como radiografar com as minhas próprias
palavras um discurso disconforme com o seu aparente caos? E no entanto… tudo
nela contagiava, e me contagiava: o
brilho da verve, a energia intelectual, uma cultura também ela opulentíssima, o
fulgor da sua inteligência, a originalidade sempre em estado puro, não era
igual a ninguém, não “fazia” lembrar ninguém, não se parecia com ninguém: era o
tal estrépito. Não, não era caótica mas a arte, sim: “a arte tem uma origem
caótica”, dizia. Porventura como naquelas suas vivíssimas incursões
orais por esse português verbo amado, quando, dias fora ou noites dentro,
animava fóruns ou salas de qualquer pátria com o sopro de um espírito alerta, a
luminosidade da sua cultura, a alma feminina e feminista. Uma originalidade com assinatura.
“A cultura capta os instantes dos homens,
está entre eles para semear a discórdia, o fluxo das emoções desmedidas mas
reveladoras”.
Era
uma mulher múltipla e sem idade. De “muitos tempos, épocas e eras”, lembrava-me
por vezes uma feiticeira, ou maga, ou mágica. Uma coisa assim, que eu nunca
vira, de cuja singularidade era difícil dar notícia: de que modo transmitir a
novidade de que ela era portadora?
“Sou herdeira dos celtas, dos druidas,dos
deuses pagãos, sou uma mulher do século II, quando os deuses estavam soltos e
desabridos, porque sabiam que iam ser desalojados da terra por força da
presença dos cristãos, vorazes e devoradores.”
Nessa época de idas e vindas além-mar,
como esta que hoje refiro havia outros e mais diversificados périplos pelo
Brasil fora, mas a rede de amigos era sobretudo no Rio que se ia tecendo. A
malha foi ficando fortemente cerzida — artistas, escritores, arquitectos,
políticos, jornalistas, músicos, cantores, diplomatas — mas logo desde o dia da Academia Brasileira de Letras, Nélida teve
lugar cativo nesse valiosíssimo lote de amizades e cumplicidades. Em lugar de
destaque. Ou mesmo à parte. Como competia e lhe competia.
4Se o conhecimento da escritora e então
presidente da Academia Brasliseira de Letras nessa inesquecível tarde
quente do Rio de Janeiro, me retribuiu, ampliada, a primeira impressão que dela
recebi, como agradecer a maravilhosa
doçura do que se seguiu?
Foi tudo tão natural. A primeira vez que Nélida
veio a Lisboa, avisou antes, ligou à chegada, foi ao Campo Grande, conheceu
todos. A partir dessa espécie de baptismo familiar os laços entre os da nossa
casa e da casa da Maria José e do Jaime passaram a ritual: imutável e
maravilhoso. No Brasil, idem, quando algum de nós lá ia e fomos sempre muito. O
ritual durou anos e anos, resistiu a distâncias e pandemias, durou sempre,
durou até agora. Conseguindo manter-se
intacto embora dorido, após a partida da Zezinha que desfez a Nélida de dor.
5Há coisas que nos desconcertam pelo seu
acerto. A Nélida foi um presente que a
vida nos deu. Começou com um acaso, terminou com um compromisso
natural, de amizade. Generosa, aparatosa, sublime, Nélida Pinõn merece o céu
onde estará a ver a chegada do Menino Jesus aqui abaixo, mesmo se não
acreditava muito nele. Acredita ele, nela.
6Faço questão em que esta breve, sentida e tão
sentimental evocação seja com as palavras da própria Nélida Pinõn. Sobre a
mulher. Uma homenagem feminista fortissimamente interpelativa que em nada se
confunde com os despojos feministas que agonizam hoje dentro de destroçados
fantasmas. Ouçam-na. Apetece cantar esta linguagem tão própria:
“A memória da mulher encontra-se na
Bíblia. Ainda que não tivesse sido ela a interlocutora de Deus. Esta memória
encontra-se igualmente nos livros que não escreveu. Uma memória que os
narradores usurparam enquanto vedavam à mulher o registo poético da sua
experiência. Ao se fazerem eles, porém, desta memória os intérpretes únicos,
fatalmente nutriram-se da malha de intrigas, dos diálogos amorosos, das
confissões feitas no leito de morte, da preciosa matéria, enfim, guardada no
coração feminino. Em algum lugar desta mulher e unicamente ali, alojaram-se
para sempre os espinhos das intermináveis peregrinações humanas sobre a terra,
sem os quais nenhuma obra de arte teria sido escrita. Portanto a mulher bem
pode proclamar, em nome do legado que cedeu á humanidade, ser ela também a
outra cara de Homero, de Shakespeare, de Cervantes. Guardiã eterna dos
sentimentos oriundos dos homens e dos deuses, a mulher preservou no aqueduto da
sua singular memória a fulgurante e dramática história universal. Preservou os
vestígios de uma memória ancestral que, somada ao seu próprio foco narrativo, a
induziram a exercer no passado o seu ofício de olheira. A praticar no meio de
tantas afrontas, a rebelião que constituía simplesmente em fazer aflorar, cada
dia, a sua memória recalcitrante, preterida sempre pela memoria eloquente e
sábia do homem…”
Comentários /odos8
Ana Crespo de Carvalho: Que agradável e emocionante leitura. Que vou reler e
saborear. Os ocos o que têm a dizer sobre a Nelida e que
morreu uma "douda" que deixou 4 apartamentos a 4 cães . .... Manuel Fernandes: De vez em quando - e infelizmente muito
poucas vezes - tropeçamos num texto que nos diz que nos preocupamos demais com
as coisas que nos maçam (a política, a nossa própria imagem e importância, a
coscuvilhice mediática, o medo do que não podemos controlar) e de menos com o
que faz de nós humanos e diferentes: a capacidade de sentir a beleza ou de
suportar o drama de cada dia que vivemos. Quando tal acontece temos de respirar
fundo, parar e aproveitar. Domingos Rita: Excelente prosa. Nos tempos que correm é
sempre bom ler algo como este texto. Feliz Natal para si e familiares. obrigado. Carlos Chaves: Caríssima Maria João Avillez, obrigado por
esta sua crónica que senti como de Natal. Hoje a sua maravilhosa escrita e o
seu conteúdo, emocionaram-me. Bem-haja e desejos de um Feliz Natal.
Maria Nunes: Comovente homenagem a Nélida Pinõn. Boas Festas MJA. A B: Linda homenagem a Nélida Piñon! Alexandre Barreira: Pois. Morre o homem (mulher). Fica a obra.
Boas festas ! Fernando
CE: Bonito texto. Feliz Natal.
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