domingo, 11 de dezembro de 2022

Como sempre


António Barreto põe o dedo nas nossas feridas velhas de ignorância pretensiosa e atrevida – neste caso específico das colonizações que, afinal, contribuíram para o desenvolvimento a vários níveis do mundo e da humanidade. Mas Adão e Silva e outros da sua igualha, ou talvez por instigação do seu primeiro-ministro, esgrimem a autoridade actual em lambebotismo permanente, na mansidão do rebaixamento traiçoeiro e vil por conveniência própria. Aguardemos.

Opinião

Devolver e reescrever a História

Na questão da devolução de património, proceder a uma lavagem da história e a uma reescrita da mesma é do domínio do mais baixo oportunismo.

ANTÓNIO BARRETO

OBSERVADOR, 10 de Dezembro de 2022, 0:10

Há vários anos que se discute o tema da devolução de bens patrimoniais aos países de origem. Muito se disse, muito se discutiu. Ainda nos lembramos de Melina Mercouri, ministra grega da Cultura, que, há mais de 30 anos, exigiu a devolução dos mármores ditos Elgin, com origem no Pártenon e levados para Londres há mais de dois séculos.

De vez em quando, um “activista” africano ou europeu, um ministro mais atrevido ou até um presidente mais decidido (Macron, por exemplo) voltam a levantar o problema. Assim pretendem dar nas vistas, seduzir governos africanos, dar contrapartidas para negócios de matérias-primas ou mesmo contribuir para o que entendem ser as novas relações de cooperação. Estamos agora num desses momentos em que políticos e activistas decidiram renovar a polémica.

Mais: já houve vários museus, públicos ou privados, europeus ou americanos, que decidiram devolver umas peças com origens mais controversas ou mesmo escandalosas. Em Portugal, a polémica chegou tarde, mas chegou. Ou antes, está a chegar. O ministro da Cultura, Adão e Silva, referiu-se ao problema. Ainda há poucas reacções públicas, mas já conhecemos o ponto de vista crítico e muito certeiro de um conhecedor destes problemas, o historiador João Pedro Marques (Observador de 7 de Dezembro).

Ao tornar públicas as suas intenções de estudar a questão da eventual restituição, o ministro da Cultura acertou. Esteve bem igualmente ao garantir que qualquer decisão seria precedida de investigação cuidadosa sobre a origem e o modo de aquisição desses bens. Também não esteve mal ao iniciar o envolvimento oficial neste processo que está na moda há dezenas de anos.

O ministro errou ao anunciar, não que mandava estudar, sem preconceitos, mas que iria analisar o problema tendo em vista a devolução. Quer isto dizer que a intenção está manifesta e que já se está a preconceber as conclusões. Pior ainda, que se está a condicionar os “investigadores”. O ministro não pretende apenas conhecer a situação, quer restituir e devolver, só que não sabe o quê, a quem e como.

Esteve mal ainda quando veio a público anunciar que não haveria debate prévio ou simultâneo. Não faz sentido, em democracia, que um assunto de interesse geral, público, nacional e cultural, não seja livremente debatido na praça pública.

O ministro da Cultura errou ao garantir que a missão seria reservada, séria e discreta. Não disse a palavra “confidencial”, mas deixou bem claro que era disso que se tratava. Enganou-se absolutamente ao afirmar que o debate sobre uma matéria como esta, por ser polémico e delicado, deveria ser precedido de estudos reservados. Ora, tudo leva a crer que é exactamente o contrário: por ser controverso e difícil, o problema deve ser objecto de discussão aberta e ampla, para a qual toda a gente possa contribuir, sejam académicos, activistas, coleccionadores, comerciantes, profissionais e amadores. O assunto interessa não só a pessoas com ligações directas aos bens, mas a qualquer pessoa preocupada com a cultura, a identidade, a política e as relações internacionais.

O ministro da Cultura foi desastrado ao dar a entender que o Estado deverá ter uma visão de conjunto, que é como quem diz um plano de restituição, antes de ouvir toda a gente interessada e de conhecer as opiniões fundamentadas. O ministro mostrou a intenção de devolver bens patrimoniais às antigas colónias, como se não houvesse bens de outros países, adquiridos noutras comunidades, de outros Estados ou através de intermediários de países independentes.

É possível, provável mesmo, que se tenham cometido roubos e actos violentos para obter objectos de arte. É certo que alguns desses bens foram objecto de massacres, assassinatos e saques (no Benim, por exemplo). Mas também é certo que tal se fez em todos os tempos, em todos os países, em todos os continentes e relativamente a toda a espécie de bens. Como é verdade que alguns países foram autores desses actos (Portugal, por exemplo), ou vítimas (Portugal, por exemplo), ou intermediários (Portugal, por exemplo). Como ainda é certo que muitos desses bens vieram de países já independentes, colonizados ou não. Quer dizer: saqueados, roubados, oferecidos ou comprados. Que fazer com esta variedade de situações?

De que estaríamos a falar? De elenco público e privado? Feito por quem e com que poderes? E o património português que ficou em África? E os bens de portugueses apropriados por africanos?

Como agir com os bens em mãos privadas, adquiridos no mercado ou recebidos em herança? Deverá fazer-se uma lista de pessoas? Um exame às casas privadas? Uma exigência de declaração? Só os bens públicos é que serão objecto de investigação e eventual devolução? E os bens privados, tão ou mais valiosos?

De que bens e de que culturas estamos realmente a falar? África, Ásia, América Latina, Pérsia, Índia, Egipto… E os bens com origem em Portugal? E os bens portugueses em mãos europeias? Que fazer com bens transaccionados dezenas de vezes entre europeus, asiáticos e africanos? Que fazer com milhares de bens, muitos de grande valor e raridade, transaccionados todos os anos nos mercados e nos leilões de todo o mundo, com origem em países africanos e asiáticos já independentes? E se os vendedores são comerciantes conhecidos?

Não custa imaginar que, caso a caso, um país ou uma instituição decida devolver um bem a um outro Estado. Sobretudo se pensarmos, por exemplo, em bens que fazem parte do meio construído, como sejam pirâmides, esculturas, baixos-relevos, obeliscos, edifícios, muralhas e outros bens “pesados” que foram literalmente arrancados. É também admissível que certos saques tenham sido particularmente ilegítimos e violentos. Há casos conhecidos que poderiam ser analisados com o espírito aberto. Há ainda lugar para devolução de bens reclamados por legítimos proprietários. Mas, proceder a uma lavagem da história e a uma reescrita da mesma é do domínio do mais baixo oportunismo.

Até a ideia de inventário deve ser eliminada. De que estaríamos a falar? De elenco público e privado? Feito por quem e com que poderes? E o património português que ficou em África? E os bens de portugueses apropriados por africanos? E o património português que se encontra em países europeus? E o património africano em mãos de portugueses de origem africana? E o património chinês, tailandês, indonésio, colombiano, mexicano, persa, egípcio e árabe vindo de países que nunca foram colónias portuguesas? A mera ideia de inventário pressupõe logo roubo, ilicitude, apropriação indevida, desconfiança e suspeita. Ora, não se pode só suspeitar de uns e não de outros. Não se pode suspeitar de brancos e não de negros, nem de mestiços, chineses, indianos ou árabes.

Sociólogo

COMENTÁRIOS:

Casagrande  Iniciante: Onde, quando, é que Costa foi mandatado para devolver património português a África? Onde é que isso — questão magna para a memória histórica de um povo — consta do programa eleitoral sufragado pelo partido de Costa? Como é que este país deixa passar em claro este ultraje?  10.12.2022 19: 16                L. Mauger Experiente : Um conhecido que durante toda a vida trabalhou por conta de outrem numa ex-colónia Portuguesa, porque não tinha direito a nenhuma pensão de reforma decidiu investir o que conseguiu amealhar em quatro humildes apartamentos na cidade onde morava. O plano era ter um lugar onde viver e garantir algum rendimento quando não pudesse mais trabalhar, no seu cantinho do mundo no Portugal ultramarino. Após a independência deste país africano, os seus apartamentos foram nacionalizados sem qualquer indemnização, perdidos a favor de um estado africano ladrão. Até o apartamento onde residia foi perdido quando já como “estrangeiro“ teve de ausentar-se por mais de três meses desse país por razões de saúde. Pergunto ao ministro que está tão preocupado com os direitos de propriedade, porque não se empenha antes na restituição ou pagamento da propriedade roubada nos últimos 50 anos aos portugueses e seus descendentes? 10.12.2022 17:42                  nuno Experiente : Sejamos realistas. O ministro da Cultura actual é um comentador político e desportivo que se afirmou ao colo do companheirismo partidário e de um servilismo académico pouco conhecido. Fala bem, mas não diz quase nunca nada. Não se espere densidade daquela gente. Quanto aos objectos, deixem-nos a ganhar pó até a subida das águas os submergir.  10.12.2022 17:39  Imperador Núbio Experiente: Entre a negação e a raiva. São as duas primeiras etapas. Virão outras. 10.12.2022 17                Maria-Ceratioidei Moderador: Excelente texto, questões importantíssimas, a razão deve prevalecer sempre, uma discussão séria impõe-se. Há de facto casos que são suficientemente conhecidos para uma avaliação e decisão imediatas. Faz sentido devolver bens cuja aquisição foi inequivocamente danosa sem discussões infrutíferas. Outros casos há em que não se sabe o suficiente para tomar decisões. Considero importante distinguir entre aquisições em nome do Estado e aquelas feitas por pessoas privadas. Não se comparam bens patrimoniais pessoais com o bem patrimonial do Estado. Em nome da Nação e do Povo Português (neste caso). E nunca em nome de fortunas privadas, para isso já existem tribunais. Aquisição lícita é quando se paga pela compra. A ilícita é um roubo. Se o ladrão é privado, prisão. Se o ladrão é o Estado, ui! 10.12.2022 14:28            João Silva.544792  Iniciante  Acho muito bem que o Presidente Macron, que levantou esta questão, faça um inventário de todos os bens preciosos que foram levados para França na sequência das invasões francesas. Como se sabe, os soldados de Napoleão, embora derrotados das três vezes que invadiram Portugal, puderam levar livremente para o seu país, todos as peças preciosas que puderam arrebatar. Provavelmente, vamos todos puxar de uma cadeira à espera que cheguem os bens roubados... 10.12.2022 11:47             pintosa Experiente: Excelente complemento ao artigo de João Pedro Marques num jornal concorrente (porque neste raramente o deixam escrever coisas destas).           Velha_do_Restelo  Iniciante : Precisamente!              Mascarenhas  Iniciante: É de uma estupidez inacreditável esta intenção do actual responsável pela pasta da Cultura. Devolver objectos acumulados legitimamente ao longo de um processo civilizacional onde se preservaram essas heranças e se evitou a sua destruição — como aconteceu em África — é mesmo de ignorância atrevida. Basta ver como a Civilização Europeia resgatou e salvou patrimónios culturais por esse mundo que estariam hoje totalmente perdidos, por incúria, ignorância, instinto destruidor desses povos...Este problema não será responsabilidade apenas do Ministro, o Costa é claramente o mentor da ideia e por diversas vezes demonstrou desprezo pela história portuguesa ( p.ex Casa do Bicos ). Como é que um país assim quer ter lugar no futuro com gente desta? Como é que esta gente não é responsabilizada?  10.12.2022 09:55                   Jorge Manuel da Rocha Barreira Experiente : A sua análise é própria de um colonialista que não sabe o que foi a colonização, mas há muitos como você. Durante o período da colonização foram roubadas obras de arte indígena, que obviamente são propriedade dos países saqueados. Imagine que o sr. toma conhecimento que obras de arte ou outros bens de estimação, foram roubados aos seus avós ou bisavós e que estão em poder de descendentes desses larápios. O senhor não ansiava que esses bens lhe fossem devolvidos? E não seria uma atitude digna que os descendentes desses usurpadores devolverem aquilo que não fazia parte do seu património, até serem roubados? Este é o grande drama da colonização, é que pensamos que aquilo que ficou em nosso poder, não sendo nosso de origem,, nos pertence para sempre. O seu comentário é de parvo.  10.12.2022 12:16                 Experiente : Ah, a Culpa, a eterna Culpa dos europeus, colonialistas, e em negócios de escravatura com os poderes (negros) africanos. Culpa nunca expiada e que exige a eterna reparação de tudo! Como bem diz AB, pelo meio reescreve-se a história! Que pena não sermos africanos, e ainda melhor negros, pois teríamos pelo menos a esperança de os franceses, que nos invadiram e roubaram em princípios de oitocentos, nos devolverem as carradas de tesouros artísticos que levaram para França. E, aí teríamos a oportunidade de devolver aos brasileiros, algo do que lá tirámos. Creio que os africanos deveriam ficar orgulhosos por exibirmos nos nossos museus a cultura deles! Alguma dela, são gritos contra o colonialismo! Mas não! Enviemos de volta e escondamos tudo isso dos olhos europeus, ... para expiar a Culpa!

 

 

Nenhum comentário: