Como sempre,
afinal. Mas os livros esclarecem, e estas crónicas como a de Patrícia
Fernandes são boas sínteses justificativas
do mundo como vai, nos choques constantes entre os povos, de artifícios,
cinismos e solidariedades e mudanças, embrulhados na marcha dos tempos, em
resultado, também, de escritos que se pretendem reformadores…
Salvar o ano de 2022
Huntington defendeu um novo paradigma se aproximava,
com o declínio do Ocidente, conduzindo ao retorno das identidades nacionais: no
mundo pós-guerra fria as diferenças mais importantes são culturais.
PATRÍCIA FERNANDES
OBSERVADOR, 26 dez. 2022, 24:173
O ano de 2022 fica inevitavelmente
marcado pela invasão russa da Ucrânia, o que deu origem a uma explosão de
publicações em torno da história dos dois países e dos seus líderes. Mas um livro mais antigo que vale a pena
recordar é O choque das civilizações e a
mudança na ordem mundial, de Samuel Huntington. Publicado
em 1996, esta obra
apresentou-se em contraciclo com o espírito optimista que afirmava a vitória
das democracias liberais. Em sentido
contrário, Huntington defendeu que um novo paradigma se aproximava, com o
declínio do poder do Ocidente, conduzindo a um retorno das identidades nacionais: “no mundo pós-guerra fria as diferenças mais
importantes entre os povos não são ideológicas, políticas ou económicas. São
culturais.” O actual conflito, e aquelas histórias e biografias,
devem então ser interpretadas a partir de uma visão mais ampla da teoria
política, que permite analisar esta mudança paradigmática.
O
argumento de Huntington foi lido, na altura, como uma reacção à tese
de Francis Fukuyama sobre
o fim da história, mas o
pensamento dos dois autores acabou por convergir. O abandono do credo na vitória liberal levou
Fukuyama a debruçar-se sobre o crescimento dos movimentos identitários, à
esquerda e à direita, em Identidades, livro de
2018; e, em 2022, analisou o modo como o Liberalismo tem vindo a falhar no
cumprimento do seu projecto em Liberalismo e seus descontentes.
Esse descontentamento tem alimentado as franjas mais radicais da esquerda e da
direita, resultando num movimento comum de autoritarismo que
põe em causa um dos pilares fundamentais das sociedades liberais: a
liberdade de expressão.
Esse
ataque à liberdade de expressão tem vindo a ser identificado com a expressão
mais ampla de “cultura
de cancelamento” (cancel culture) e é
particularmente visível no mundo académico anglo-americano, impulsionado
pelo Social Justice movement.
Para compreendermos o seu sentido teórico-filosófico, temos de nos debruçar
sobre a Teoria Crítica da Raça, nascida
nas faculdades de Direito norte-americanas.
Para
quem pretende um primeiro contacto com esta teoria, a sugestão será começar
por Teoria
Crítica da Raça: uma introdução,
de Richard Delgado e Jean Stefancic, que expõe, de forma sucinta e clara, os
seus principais elementos. Fica um aviso à navegação: esta teoria não
assenta exclusivamente em argumentos loucos e descabidos. Pelo contrário, é
muitas vezes possível compreender o que levou os autores a formular estas
ideias. O problema é que a sua aceitação unidimensional e
acrítica nos faz cair numa posição tão radical como a defendida por Robin
DiAngelo, em Fragilidade Branca,
que descrevi aqui: e para este livro já é necessário
algum estômago, em especial porque nos faz mergulhar no mundo da epistemologia do eu.
A epistemologia do eu caracteriza-se
por fundar o conhecimento da realidade exclusivamente na experiência pessoal e
partir do princípio de que essa experiência é necessariamente verdadeira. Encontramos este elemento em DiAngelo,
mas também em Reni Eddo-Lodge, com Porque Deixei de Falar com
Brancos sobre Raça, e Ta-Nehisi
Coates, com Entre mim e o mundo, vencedor do National Book Award de 2015. Mas
importa recordar que é possível escrever sobre estes assuntos sem adoptar a
perspetiva do eu e um permanente tom de vitimização: em 1981, bell hooks publicou Não serei eu
mulher?, um livro
que se tornaria um clássico no domínio do feminismo negro e que vale a pena
ler.
Os problemas deste modo identitário de pensar a política e a
sociedade, bem como as consequências para as sociedades liberais, têm vindo
a ser progressivamente identificados. A partir de uma perspetiva filosófica, Helen Pluckrose e James Lindsay
apresentam, em Teorias Cínicas (2021),
uma abordagem muito detalhada às teorias
que dão forma às diferentes áreas do activismo académico crítico. E em
2022, temos A Guerra ao Ocidente,
de Douglas Murray, que, numa
perspetiva mais jornalística, procura denunciar os efeitos da Teoria
Crítica da Raça nos nossos dias.
Independentemente
das formas de resistência que vão surgindo, é inegável que vivemos
hoje num paradigma identitário e a literatura revela-o abertamente. Longe vão os tempos do realismo de
inspiração comunista ou do estruturalismo sem autor. A literatura vive hoje
muito da incursão biográfica e das reflexões sociológicas que se retiram dela. Um bom exemplo é, agora em contexto francês, o de Édouard Louis,
que viu traduzido entre nós, em 2022, o seu primeiro livro: Para acabar de vez com Eddy Bellegueule, depois de História da violência (2019)
e Quem matou o meu Pai (2020). Os três livros giram em torno da sua experiência
com as duas Franças – a rural e a urbana – e o modo como elas condicionam e
enclausuram a identidade pessoal. Tratando-se de um autor tão jovem, fica a
dúvida sobre se Édouard Louis será capaz de escrever continuamente sobre as
mesmas experiências ou acabará por esgotar a sua capacidade criativa por estar
limitado a essa incursão biográfica.
Com
mais de 80 anos, Annie
Ernaux já não
levanta essa preocupação, apesar de encontrarmos na vencedora do Nobel da
Literatura de 2022 o mesmo estilo autobiográfico. Com uma particularidade: os livros de Ernaux são escritos à
distância. Esse distanciamento, temporal e intelectualizado, traduzem-se
numa escrita fria, objectiva, depurada de excessos, mas que não deixa de nos
envolver e de um modo quase imagético. Os anos, em particular, é como uma longa-metragem da sociedade
francesa que nos obriga ao reconhecimento desse ditador que é o tempo:
“Tudo se apagará num segundo. O dicionário
acumulado desde o berço até ao leito de morte irá desaparecer. Depois, o
silêncio e nenhuma palavra para o dizer. Da boca aberta nada sairá. Nem eu nem
mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de
uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até
desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.”
Resta
a literatura para salvar alguma coisa:
“Portanto,
o livro a fazer era um instrumento de luta.
Nunca abandonou esta ambição, mas agora, acima de tudo, gostaria de captar a
luz que inunda rostos doravante invisíveis, toalhas de mesa cheias de comida
desaparecida, essa luz que já lá estava, dentro das narrativas dos domingos da
infância, e nunca mais deixou de descer sobre as coisas no momento em que são
vividas – uma luz de outrora. Salvar (…). Salvar qualquer coisa do tempo onde
não voltaremos a estar.”
Boas entradas e um bom ano de 2023!
PS: Uma visão política identitária comporta como
consequência inevitável a limitação da liberdade de expressão. Nos Estados Unidos,
isso já é assumido como um problema académico e começa a ser discutido: no
início do mês de novembro, ao abrigo da Stanford University, foi organizada
uma conferência sobre liberdade
académica. O evento esteve envolvido em polémica, mas reuniu as mais relevantes figuras que discutem
habitualmente o tema, como Jonathan Haidt, Jordan Peterson, Greg
Lukianoff, Douglas Murray e Niall Ferguson
(a conferência foi gravada e as comunicações estão disponíveis aqui).
A lista de participantes é ampla, mas quando se perguntou quantos já tinham
sido cancelados, a maioria ergueu o braço. Como Francisco Bosco diz, em O diálogo
possível, estes acontecimentos não são excessos; são antes
exemplos que decorrem daqueles princípios teóricos.
COMENTÁRIOS:
Américo Silva: A ordem
mundial tem-se mantido bastante estável desde o neolítico, formada por
dominantes e dominados, primeiro em locais distintos, no século XIX num espaço
quase global que evoluíu para um império ocidental, e um remanescente eslavo,
asiático e indiano alternativo, os africanos no ocidente. Os senhores derivam
da nobreza medieval e dos judeus que transpuseram revoluções como a francesa, e
vivem acima das nações.
Américo Silva > Américo Silva: O
GOPT, grupo organizado predador de topo, quer os servos homogeneizados,
imigração, deslocalizações, fragmentação, autonomias, identitários, géneros,
feminismo, censura, controle de comunicação pública e privada, e abolição de
garantias sociais e jurídicas dos estados, que passam a estruturas auxiliares
de fomento das suas políticas, subsídios a imigrantes e outros. O resultado até
poderá ser positivo, quem sabe? TIM DO Ó
> Américo Silva: Bem descrito. Positivo para as elites
liberais dos mercados e da globalização, claro.
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