Um tema importante
Em final de ano. Por Teresa de
Sousa, sempre aprumada e perspicaz, nas suas buscas de respostas, desta vez
em entrevista, às interrogações a respeito do posicionamento da Europa, num
mundo de competições.
Susi Dennison: na competição
EUA-China, “a Europa não vai querer escolher de que lado está”
Em 2022, a resposta da Europa à guerra
foi mais rápida, mais coesa e mais forte do que se poderia prever. O seu maior
desafio daqui para a frente é ter visão clara do mundo que emergirá desta
guerra.
PÚBLICO, 27 de
Dezembro de 2022, 21:00
Foto: Em
relação à guerra na Ucrânia, “a resposta da União Europeia foi mais rápida,
mais forte e mais coesa do que a maioria de nós poderia antecipar”, diz Susi Dennison DR
Susi Dennison
dirige o European Power Programme do European Council on Foreign Relations,
sendo a sua área de investigação preferencial a política externa e de segurança
europeia. Na
entrevista via Zoom que concedeu ao PÚBLICO, insiste em que a Europa não
precisa de abdicar das suas particularidades próprias para ganhar influência à
escala global.
A guerra na Ucrânia é, certamente, a
maior crise que a União Europeia já teve de enfrentar. Até agora, os governos e
as instituições europeias lidaram bastante bem com ela, talvez graças à
liderança americana. Isto quer dizer que a Europa percebeu finalmente em que
mundo vivia?
Sim. Se olharmos para este último
ano, direi que a resposta da União Europeia foi mais rápida, mais forte e mais
coesa do que a maioria de nós poderia antecipar. Na mudança sísmica que
resultou na vontade de pôr de pé os sucessivos pacotes de sanções, na vontade
de coordenar o apoio militar à Ucrânia ou de adoptar os mecanismos de protecção
para os refugiados, vimo-la tomar decisões que nos pareceriam inconcebíveis há
apenas dois ou três anos, na sua capacidade de funcionar como um actor político. Mas vamos enfrentar agora maiores dificuldades para
continuarmos a manter-nos juntos. Há dificuldades na aplicação dos pacotes
de sanções e, à medida que entramos no Inverno, há custos económicos e
políticos que decorrem dessas decisões que podem fazer-se sentir em alguns
Estados-membros. Há algum risco de que este consenso se quebre, até porque
creio que nos devemos preparar para um cenário de guerra prolongada. Inicialmente, havia na maioria das capitais europeias
a ideia de que estávamos perante uma mudança profunda, mas também continuava
a prevalecer o entendimento de que, numa perspectiva de mais longo prazo, as
relações com a Rússia poderiam ser retomadas. Agora, a
realidade com que a Europa se confronta é a de um mundo que mudou para sempre,
que estamos perante um longo conflito, que não voltaremos rapidamente a um
estado de paz na Europa e que vão continuar a sentir-se fortes tensões no
sistema internacional. Lidar
com os efeitos de longo prazo da guerra acabará por expor divisões entre os
Estados-membros: que papel a aliança transatlântica deve desempenhar; que papel
para a própria Europa no mundo, etc.
Estamos a caminhar para uma realidade
internacional em que a competição, para não dizer o confronto, entre grandes
potências se pode tornar o factor dominante. A Europa não estava preparada para
este mundo. Pensa que consegue adaptar-se?
Temos algumas coisas de que precisamos, mas
ainda não temos as estruturas de decisão, por exemplo,
que nos permitam, em primeiro lugar, mover-nos com a rapidez necessária e, em
segundo lugar, conseguir equilibrar os objectivos, muito diferentes, que a Europa
tem globalmente. Por
exemplo, a adopção pelos Estados Unidos do Inflation Reduction Act (IRA) obriga os líderes europeus a ter de lidar com uma
decisão fundamental: saber se devem continuar a agir de acordo com as leis
internacionais consagradas na Organização Mundial do Comércio sobre as ajudas
de Estado ou se, pelo contrário, devem dar prioridade à competitividade das
empresas europeias ao longo do período de transição verde. São escolhas muito difíceis, sobre as quais os
Estados-membros divergem. Creio que as estruturas europeias ainda não
possuem este tipo de mecanismos para decidir como equilibrar a liderança
europeia com a realidade de cada país.
No geral, há ainda várias questões sobre como articular o nível europeu e o
nível nacional de forma a tornar o processo político mais fácil para podermos
ir mais longe. A
realidade com que a Europa se confronta é a de um mundo que mudou para sempre,
que estamos perante um longo conflito, que não voltaremos rapidamente a um estado de paz na Europa.
Hoje,
a competição entre os EUA e a China pela hegemonia mundial é já o factor
estruturante da ordem internacional. Também vemos
que, em Washington e em Pequim, a competição tecnológica dominará o
futuro. Ora, a Europa está a
ficar para trás nestes domínios fundamentais.
Onde é que a Europa se coloca nesta
competição? Qual é o seu lugar no mundo? Concordo
que esse é o principal factor determinante do ambiente internacional.
Creio que o que a Europa conseguiu, em 2022, quanto à percepção
da Rússia como uma ameaça estratégica comum terá agora de conseguir também para
avaliar colectivamente a sua relação com a China. Mas creio que há ainda uma forte dissonância entre
as capitais europeias sobre como lidar com essa relação, em virtude dos fortes
laços económicos de alguns Estados-membros com a China. A Europa não vai querer escolher de que lado está,
nesta competição determinante. Vai tentar ser um actor global
independente, que consegue gerir a sua relação com estes dois grandes actores
globais, fazendo escolha independentes. Não
sabemos ainda quais vão ser as repercussões da guerra na Ucrânia no que
respeita à nossa dependência dos EUA e, provavelmente, nunca seremos
equidistantes entre os EUA e a China, e ser independente não implica
necessariamente que o sejamos. Mas
creio que há escolhas fundamentais que a Europa terá de fazer, se quiser ter um
papel relevante no sistema internacional. Será certamente um dos grandes
desafios que vai enfrentar no próximo ano.
Mas por quanto tempo a Europa pode
manter-se dependente dos EUA no que respeita à sua própria segurança e, ao
mesmo tempo, manter as vantagens das boas relações económicas com a China? Os
Estados Unidos vão pedir-lhe — já estão a pedir — uma definição.
Já
estamos a enfrentar vários problemas novos, como, por exemplo, a necessidade de garantir cadeias de abastecimento
a partir de locais muito mais próximos e mais confiáveis. Isso implica, por exemplo, criar
relações mais fortes com a nossa vizinhança.
Mas também sabemos que, no essencial, a Europa tem dificuldade em
influenciar a narrativa global, em comparação com os EUA ou a China. Creio que o impacto das sanções nos mercados
energéticos à escala global e a forma como o Sul global olha para as suas
consequências será um factor-chave.
Claro que a Europa
se queixa da estratégia económica da Administração Biden que visa,
precisamente, responder a alguns dos problemas que já referimos. Mas ainda não estamos a ver que seja capaz de
entender-se sobre uma estratégia para lidar com essa nova realidade, que foi
criada, primeiro, pela pandemia e, agora, pelo impacto económico da guerra. Em Berlim
ou em Bruxelas, considera-se que não é uma boa ideia abrir uma guerra económica
com os EUA. Em Paris, pensa-se de forma diferente.
De
que é que a União Europeia precisa para conseguir lidar com este tipo de
situações?
Eu
diria que, se
olharmos para os acordos em torno do fornecimento de energia, compreendemos que
a Europa aprendeu a lição sobre as consequências da sua dependência em relação
à Rússia. Mas o que a Europa constatou também foi que os EUA se
tornaram rapidamente num importante fornecedor de energia, sobretudo com o gás
natural liquefeito, o que quer dizer que há um forte risco de poder substituir
uma velha dependência por uma nova.
Mesmo assim há uma enorme diferença. Sim, mas em
termos de relações económicas e da resposta ao Inflation Reduction Act, o que vemos é uma tendência nas capitais europeias
para assumir que a relação transatlântica se vai manter confiável e benéfica. Ora, como verificamos com os anos de Trump, também
pode deixar de o ser. O que tenho observado mais recentemente é que há uma
ligeira mudança, maior prudência, nesse pressuposto de que os EUA são a
potência na qual podemos sempre confiar. Essa ingenuidade acabou por se virar contra nós. A Europa
sobrestimou a boa vontade da nova Administração no sentido de levar em
consideração os interesses e as necessidades europeias. O Presidente Emmanuel
Macron foi a
Washington discutir tudo
isto e não voltou com nada de concreto.
Sobre a resposta europeia, tem havido um relativo consenso em torno
da ideia de que a Europa deve ser um actor económico de tipo diferente. A nossa própria abordagem da transição verde é
diferente da dos EUA, quando tentamos pôr de pé uma liderança pelo exemplo, em
vez de uma estratégia de “Europa primeiro”. Isto é importante e é positivo. Do meu ponto de vista, a Europa devia manter esta
estratégia e demonstrar aos outros grandes actores mundiais que ela é possível.
É crucial para a Europa defender que a cooperação internacional continua a ser
indispensável para enfrentar os desafios globais e que é preciso que o sistema
internacional que venha a emergir depois deste choque preserve este princípio.
O problema é que o mundo caminha em
sentido contrário. É verdade e
é esse o maior desafio que a Europa enfrenta neste momento. Mas creio que a sua
afirmação como um actor geopolítico não deve ser apenas emular o comportamento
dos outros actores globais. O que a Europa pode trazer para o palco
internacional é uma abordagem diferente, que vai no sentido de reforçar a
cooperação internacional e o sistema que a sustenta.
Qual será o melhor caminho para que a
Europa se torne mais forte e mais influente no mundo? O caminho é trabalhar na coesão entre os Estados-membros, é delegar mais
autoridade para o nível europeu nas áreas políticas fundamentais. Já há domínios em que isso acontece, como na economia. Precisamos de fazer o mesmo noutras áreas. Por
exemplo, no domínio da energia, já foram dados uma série de passos ao longo deste ano,
mas, quando chegamos à compra conjunta ou à transparência entre Estados,
ainda há relutância. Mas não penso que a resposta esteja na criação de
novas estruturas, até porque há que reconhecer que há bastantes diferenças
entre as capitais europeias sobre o melhor caminho a seguir. Creio que se trata,
sobretudo, de desenvolver uma percepção estratégica comum, uma compreensão
comum sobre o mundo com que temos de lidar. Foi esta,
creio, uma das razões pelas quais fomos capazes de reagir aos acontecimentos em
2022 muito mais depressa do que nos anos precedentes. Tenho esperança de que
haverá condições para algumas melhorias institucionais, mas a nossa fraqueza
tem residido fundamentalmente na falta de coesão política com que encaramos os
desafios colocados pelo mundo que nos rodeia.
O problema é que a crescente
influência de partidos extremistas e populistas em quase todos os países da UE
dificulta essa coesão política.
O
que acho interessante é que, quando esses partidos mais extremistas chegam ao
poder, a própria realidade ou, se quiser, a situação
geopolítica, obriga-os à contenção e a restringir muitas das promessas que
fizeram antes. Vimos
recentemente a mudança gradual de Giorgia Meloni, a partir do momento em que chegou ao poder em
Itália. Não tem havido oposição às sanções aplicadas à Rússia.
O Governo sueco não tem feito oposição às políticas de imigração, como se
previa. Onde penso que há um risco da influência desses governos ao nível
europeu pode ser em áreas de natureza mais global e internacional: por exemplo,
nas políticas de combate às alterações climáticas.
Como é que a Europa vai reagir às
consequências da guerra ao longo do próximo ano? Infelizmente, a guerra vai continuar. Penso que a UE chegou a um momento em que vai ser
difícil ir mais longe em matéria de sanções económicas e até que vai ser mais
difícil aplicá-las a nível nacional. A Europa não vai querer fazer muito mais,
nomeadamente em matéria de ajuda militar, para evitar que essa ajuda possa
contribuir para uma escalada que leve ao confronto com a NATO. Mas também não vai querer fazer menos. A opinião pública europeia e as lideranças europeias
compreendem que esta é uma guerra que se trava na Europa e que resulta de uma
agressão militar. Vão continuar, espero eu, com níveis similares de ajuda à
Ucrânia, incluindo a ajuda militar, que os ucranianos têm demonstrado saber
utilizar incrivelmente bem contra os agressores russos. Mas temo que, no
próximo ano, iremos assistir a uma espécie de impasse ou a um conflito mais ou
menos congelado. Também não vejo que a Rússia tenha muito mais ao seu dispor
para conseguir alterar a situação.
Isso pode querer dizer que os
cidadãos europeus vão ter de aceitar algumas mudanças nas suas prioridades. A Europa vai
precisar de gastar muito mais com a defesa e, provavelmente, menos no Estado
social. Penso que os europeus não estão preparados para abdicar do seu
modelo social. Se olharmos para as sondagens, vemos que estão
extremamente preocupados com a situação económica. Mas também
percebem que este modelo, assente no pagamento de impostos elevados como
contrapartida para uma qualidade de vida cada vez melhor, está em grande medida
posto em causa. É por
isso, aliás, que estão mais disponíveis para votar em partidos que antes
ocupavam os extremos — querem experimentar outra coisa. Creio que será extremamente
perigosa uma mudança que valorize as despesas militares e de segurança e que
abandone o financiamento do modelo social. Mas reconheço que são escolhas
muito difíceis. É
importante, também, que se compreenda o papel que a própria UE desempenha no
que diz respeito à nossa segurança, entendida em termos mais globais. De facto, ela pode agir como uma potência de dimensão
continental, quando são as grandes potências de dimensão continental que estão
a ditar as regras do jogo. E isso também contribui de forma fundamental para a
segurança europeia.
A nossa fraqueza tem residido
fundamentalmente na falta de coesão política com que encaramos os desafios
colocados pelo mundo que nos rodeia.
Falou da importância da dimensão
continental. Como é que a Europa deve lidar com o alargamento à Ucrânia,
Moldova ou aos Balcãs ocidentais? Penso
que é um mau momento para isso, quando a Rússia está a travar uma guerra de
agressão também contra a ideia do Estado de direito. Não creio que encontrar
atalhos para facilitar novas adesões seja útil. Penso que é vital percorrer o caminho das reformas
económicas e políticas necessárias aos países que querem entrar, ou seja,
respeitar os Critérios de Copenhaga. Mas também considero que, num ambiente de
segurança que é ameaçador para esses países, devemos assumir compromissos e
reforçar a cooperação em domínios como a energia ou a segurança. Há imenso
espaço de cooperação que podemos desenvolver com esses países. A ideia de
Comunidade Política Europeia de Macron pode ser um bom modelo para desenvolver
esta cooperação.
Como é que olha para o mundo em 2023?
Está pessimista? Sou optimista por natureza, mas penso que
estamos a viver tempos muito ameaçadores. E penso que muito vai depender da
capacidade dos líderes europeus para gerir bem as tensões políticas que têm
mantido o processo de integração a funcionar até hoje. Precisamos que os nossos
líderes sejam capazes de responder aos desafios que os nossos cidadãos encaram
com maior receio. E penso,
sobretudo, que a União Europeia não se pode dar ao luxo de não ter uma visão
clara para enfrentar o novo ambiente internacional com que tem de lidar.
TÓPICOS MUNDO BALANÇO 2022 GEOPOLÍTICA EUROPA DIPLOMACIA GUERRA NA UCRÂNIA ANTEVISÃO 2023
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