De notícias graves, que minimizam o
assunto gritante da tal viragem identitária do tema bem urdido desse estudo tão
actual (por PATRÍCIA FERNANDES).
I- NOTICIÁRIO do dia
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teme que conflito na Ucrânia se torne numa guerra entre Rússia e Nato
há uma hora Putin
diz não saber se poderá confiar num eventual acordo de paz com Kiev
há uma hora Navalny
classifica de "vergonhosa" pena de cadeia a opositor russo
II -A viragem identitária
a partir do
momento em que avançamos na lógica identitária o compromisso deixa de ser
possível pois as identidades não são negociáveis, o que nos deixa na terrível
situação de luta política permanente
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
OBSERVADOR, 05 dez. 2022, 24:1819Instalar
1Identity
Politics
O
termo identity
politics terá
sido usado pela primeira vez no manifesto do Combahee River Collective, de 1977, e deve ser entendido como uma reacção
ao movimento dos direitos civis, que marcou a política norte-americana nos anos
50 e 60 do século XX. Este
movimento, simbolizado pela figura de Martin Luther King Jr., lutou
pela abolição da segregação e discriminação legal nos Estados Unidos e pela
reivindicação de iguais direitos civis, tendo culminado com a aprovação do
Civil Rights Act, de 1964.
Em
sentido contrário, a ideia de política identitária é estabelecida com o
argumento de que direitos iguais legalmente estabelecidos não garantem uma
condição de igualdade e justiça. Isto
acontece porque alguns indivíduos, gozando de uma identidade que os coloca em
grupos socialmente oprimidos, nunca conseguirão usufruir de condições de
igualdade. O princípio liberal do indivíduo como detentor de direitos
iguais garantidos pela lei, diz o argumento, não seria capaz de garantir uma
cidadania plena a certos grupos sociais, na medida em que, por se
ser mulher, gay, negro, latino-americano ou muçulmano, se estará sempre em
situação de marginalidade.
Por
essa razão, torna-se necessário um novo posicionamento: a reivindicação de uma política que considere essa
identidade. Só políticas
identitárias se
traduzirão em medidas capazes de garantir um gozo efetivo da cidadania por
parte daqueles que pertencem a grupos oprimidos – sendo as mais populares
dessas medidas as de affirmative action ou discriminação positiva.
É esta ideia de política identitária
que tem sido avançada pelas Teorias Críticas que marcam o espaço
académico e político norte-americano.
Notemos que o objetivo da teoria crítica
enquanto ferramenta intelectual é o de providenciar uma análise (crítica) ao
modo como as instituições funcionam, em particular ao modo como elas refletem a
hierarquia de poder na sociedade, perpetuando sistemas de opressão sobre grupos
marginalizados (sendo que cada pessoa
pode pertencer a vários grupos e, portanto, ser marginalizada e oprimida de
formas concorrentes).
E
para quem subscreve o que, genericamente, se tem vindo a designar como Justiça Social
Crítica, a justiça social implicará desmantelar as regras do
sistema vigente (nomeadamente o universalismo liberal e a ideia de direitos
individuais) como forma de garantir equidade
(e já não igualdade) para os
grupos oprimidos. Como dizem
Richard Delgado e Jean Stefancic, em Teoria Crítica da Raça: uma introdução:
“Ao
contrário de algumas disciplinas académicas, a teoria crítica da raça possui
uma perspetiva activista. Ela tenta não apenas compreender a nossa
situação social mas também modificá-la; não apenas investigar como a
sociedade se organiza em função de divisões raciais e hierarquias mas também
transformá-la para melhor.”
2A viragem identitária
Se
considerarmos os princípios teóricos da democracia liberal, o aparecimento de
perspectivas diferentes, nomeadamente críticas do próprio sistema, não seria um
problema. O pluralismo que o sistema democrático liberal diz
oferecer permitiria que diferentes vozes ocupem o espaço público e apresentem
as suas reivindicações. No entanto, o sucesso do argumento identitário introduz
um aspecto capaz de ferir mortalmente o liberalismo. Para tornar esse aspecto claro, recorrerei a uma
formulação popular na filosofia: a ideia de viragem.
No
domínio filosófico, usamos a expressão “viragem” (turn, em língua inglesa) para sinalizar um momento de
mudança decisivo no modo como articularmos as ideias filosoficamente. A
mais conhecida destas expressões é a de linguistic turn ou viragem linguística, que pretende significar uma consciencialização por
parte dos filósofos de que a linguagem desempenha um papel fundamental no nosso
pensamento, pelo que se deve tornar objecto de reflexão filosófica. Notemos
que a expressão não significa que, a partir de agora, a linguagem vai
desempenhar um papel fundamental – significa, antes, que a linguagem sempre
desempenhou um papel fundamental, mas que só a partir de determinada altura os
filósofos se tornaram conscientes disso ou passaram a reconhecê-lo.
Analisemos agora o argumento dos
movimentos identitários. Ao
introduzir a ideia de que existem políticas identitárias, isto é, políticas
que expressam os interesses de certas identidades, este argumento contém no seu
interior o seguinte pressuposto: as políticas vigentes são, elas mesmas,
resultado de uma identidade específica e é por essa razão que precisamos de
outras políticas que defendam outras identidades. A viragem identitária que pretendem promover
encontra-se então aqui: importa que nos tornemos conscientes de que todas
as políticas são identitárias e que se as actuais são prejudiciais aos
grupos oprimidos é porque resultam de um grupo opressor.
É
nesse sentido que os movimentos feministas identitários entendem que o sistema actual resulta do patriarcado; os movimentos LGB falam em heteronormatividade; e os movimentos
trans referem políticas cisgénero.
Mas
talvez o melhor modo de compreender o funcionamento da viragem identitária
resulte da argumentação presente na Teoria Crítica da Raça (TCR): a ideia central da TCR é a de que devemos reconhecer
a raça como fenómeno socialmente construído para manter um sistema de
privilégio para os brancos.
O daltonismo (o não
ligar a cores/raças) deve ser, por isso, abandonado porque só nesse momento
seremos capazes de compreender que o racismo é inerente à nossa sociedade e que
todos os brancos beneficiam dele. É isto que Robin DiAngelo (a partir dos “estudos
críticos da branquitude”) nos diz
em Fragilidade Branca:
“No
seu livro The Racial Contract, Charles W. Mills defende que o contrato
racial é um acordo tácito, e por vezes explícito, entre os membros dos povos da
Europa para afirmar, promover e manter o ideal da supremacia branca em relação
a todos os outros povos do mundo. Este acordo é uma característica intencional
e integral do contrato social, subjacente a todos os outros contratos.”
(Na
mesma linha, encontramos Derrick
Bell, o fundador da TCR, que defende
que a evolução dos direitos dos negros nos Estados Unidos decorre da convergência de interesses entre
brancos e negros – e não em resultado de uma correcção social sincera.)
Vejamos
como o argumento funciona: 1) a TCR afirma que devemos esquecer o princípio
liberal do daltonismo, isto é, o princípio de acordo com o qual devemos
ignorar a raça; 2) pelo contrário, devemos reconhecer que as identidades
raciais existem, embora sejam social e culturalmente construídas; 3) e isso
acontece porque o sistema actual é instituído para beneficiar uma das
identidades raciais (os brancos) em detrimento das restantes.
Nas últimas décadas, é este o
argumento que tem sido introduzido no espaço público, conduzindo a uma viragem
identitária. Se a
deixarmos enraizar (é possível resistir?), entraremos num novo paradigma e
passaremos a ver todas as políticas como resultado de identidades específicas e
não como políticas universais. E é aqui que a viragem identitária ameaça directamente
o liberalismo e os seus valores universais (o que é explicitamente reconhecido
e pretendido pelos Críticos). De facto, a universalidade é a base
do nosso sistema: consideramos o ser humano de modo universal e por isso falamos
em Declaração Universal de Direitos Humanos. Mas o argumento identitário diz-nos que esta
narrativa é apenas uma narrativa, resultado de uma identidade
específica: a do homem branco, cis, heterossexual, etc.
3A democracia liberal em perigo
Para além de visar o liberalismo, a
viragem identitária afecta de modo profundo os nossos sistemas democráticos.
Vejamos em que sentido.
Em
primeiro lugar, e na medida
em que a lógica identitária força à identificação identitária, estes
movimentos accionam o identitarismo inverso – o que nos Estados Unidos se tem traduzido pelo
crescimento de movimentos nativistas e de identidade branca. Em boa verdade, esta activação não é menosprezada
pela TCR: como Robin DiAngelo diz, a sinceridade de quem reconhece o seu
racismo é preferível aos progressistas que recusam aceitar que são racistas.
Em
segundo lugar, a visão
identitária introduz uma nova lógica de legitimidade política: essa
legitimidade passa a resultar do lugar que determinada pessoa ocupa na
sociedade considerando a sua identidade (ou diferentes identidades). É aquilo a que os brasileiros, numa expressão
deliciosa, chamam “o lugar de fala”. A partir desta perspetiva, a validade das nossas
afirmações vai depender do lugar que ocupamos e que nos colocará mais ou menos
perto da verdade: alguém que fale a partir de um grupo oprimido terá um acesso
mais privilegiado à verdade porque a sua experiência de opressão é uma
experiência mais real e verdadeira de como o sistema funciona. E todas
as vozes que não coincidam com a descrição do mundo validada pelos Críticos
serão desvalorizadas como resultando de posições de privilégio ou de falsa
consciência, sendo, por isso, menos verdadeiras. A consequência, em última
instância, é a de que todo o
artefacto do discurso argumentativo e racional deve ser esquecido: ele resulta
da forma de ver o mundo do opressor, com o objectivo de desvalorizar a
experiência real de opressão.
Em terceiro lugar, se toda a política é identitária, deixa de haver
espaço para o mecanismo em que assenta a democracia liberal: a representação. Se o sistema é apenas reflexo de uma identidade
dominadora, nenhuma instituição nos pode representar, nem devemos aceitar a
ideia de que alguém possa defender interesses nacionais ou universalmente
humanos. A nova representação (a representatividade) deverá
ser identitária, pois só assim se garante que a voz do oprimido é ouvida e que
ele participa no sistema.
Por fim, recordemos que o funcionamento da democracia
liberal assenta em diferentes vozes, que trocam argumentos no espaço público,
tendo em vista negociar e chegar a um compromisso. A velha forma de percepcionar
a política centrada em interesses económicos e na pertença a classes garantia
esse espaço de discussão, negociação, cedências e compromisso. Mas a
partir do momento em que avançamos para uma lógica identitária, o compromisso
deixa de ser possível pois as nossas identidades não são negociáveis, não podem
ser alvo de compromisso. E isso deixa-nos na terrível situação de luta
política permanente.
PS:
Convoco, desta vez, o caso de Brett
Weinstein como exemplificativo da radicalização emocional a que
podem conduzir as demandas identitárias: Weinstein opôs-se à proposta de um
dia de ausência voluntária de brancos na Evergreen State College (por
considerar que era discriminatória), e a reacção estudantil acabou por conduzir
à sua demissão.
COMENTÁRIOS (de 19)
Carlos Chaves: Caríssima
Patrícia Fernandes, obrigado pela detalhada explicação em como as
lógicas/políticas identitárias nos conduzem inexoravelmente ao confronto, à
abolição do compromisso e dos princípios universais. Não admira serem estas
políticas promovidas e tão acarinhadas pela esquerda radical.
Paul C. Rosado: É
verdade. Para mim, desde o início que este foi o maior perigo desta loucura
identitária. O fim do compromisso e muito maior dificuldade de votar no campo
oposto àquele com que nos identificamos mais, mesmo se o momento histórico e a
situação económica o exigirem. Essa é a essência da democracia: a mudança
quando determinado grupo político se torna perigoso ou ineficaz na governação. Agora
isso é muito mais difícil. A tendência é: maioria dos reformados, mulheres e
minorias culturais votarem à esquerda; maioria dos homens trabalhadores votarem
à direita. E vai ser difícil sairmos daqui.
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